Acórdão nº 669/19 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Novembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução13 de Novembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 669/2019

Processo n.º 452/19

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., aquele Tribunal, por decisão proferida em 25 de março de 2019, julgou o recurso interposto pelo então recorrente e arguido «totalmente procedente» e julgou «inconstitucional o primeiro segmento normativo do art.º 131º/1 C.P.P., na parte em que determina taxativamente a incapacidade dos interditos por anomalia psíquica para depor em Processo Penal, normativo que assim se desaplica, por contrário aos princípios do direito a uma justiça equitativa na vertente de procura da verdade material (arts.º 20º/4 C.R.P. e 6º C.E.D.H.) e da proibição do excesso, na restrição dos direitos, liberdades e garantias individuais (art.º 18º/2 C.R.P.)».

Por decisão proferida no âmbito dos mesmos autos, o filho do arguido, por si arrolado como testemunha, declarado interdito por anomalia psíquica, fora declarado incapaz para depor como testemunha, ao abrigo do disposto no referido preceito do Código de Processo Penal.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido pugnou pela concessão de provimento ao recurso do arguido. As assistentes, porém, consideraram que a jurisprudencial constitucional por este indicada em seu abono (fundamentalmente, o Acórdão n.º 359/2011), se refere apenas a casos em que a testemunha é ofendida e assistente, em contraste com o que sucedia no caso dos autos.

O tribunal recorrido decidiu na linha da primeira posição referida, apresentando para tanto, no essencial, a seguinte fundamentação:

«Dispõe o art.º 131º/1 C.P.P., que "qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos casos previstos na lei".

Ou seja: determina a lei em abstrato e independentemente do caso concreto, que os interditos por anomalia psíquica não têm capacidade para depor, em Processo Penal.

É o que sucede no caso dos autos. Decorre com efeito, de fls. 88/90 (sentença em Ação de Interdição), que a testemunha sofre de Perturbação Global do Desenvolvimento, compatível com Síndrome de Asperger, pelo que foi declarada interdita por anomalia psíquica. Decorre ainda da fundamentação de facto da sentença, que a mesma tem um grau de incapacidade multiuso permanente global de 60% (sessenta por cento).

Sabe-se que fundamento da interdição por anomalia psíquica é o facto de a pessoa se mostrar incapaz de se gerir a si própria e seus bens (art.º 138º/1 C.C.).

Ora e logo à partida, esta incapacidade é diferente da capacidade para depor, isto é, para fazer um relato de algo que viu, com objetividade e segurança. Ou seja: alguém pode ser incapaz de se autorreger, mas capaz de referir de forma verdadeira algo a que assistiu.

Simplesmente e por razões certamente de segurança jurídica, decidiu a lei que estas pessoas não podiam depor, por os seus depoimentos poderem, em abstrato, lançar mais confusão sobre os factos em apreciação, dado o seu handicap psicológico.

Mas logo e em clara contradição, diz-nos a lei civil que a capacidade do interdito é equiparável à do menor, exceto quanto às especificidades do instituto (art.º 139º C.C.). Em termos antagónicos, os menores não são incapazes para depor em Processo Penal (cfr. art.º 131º C.P.P.), enquanto os interditos o são.

Sobre a Constitucionalidade desta incapacidade se vêm debruçando os Tribunais, há mais de dez anos.

E, surpreendentemente, não foi o Tribunal Constitucional, no Acórdão citado, o primeiro a suscitar a questão, mas o Tribunal da Relação de Lisboa, nos seus Acórdãos de 22/5/2007, Nuno Gomes da Silva e de 23/11/2010, Paulo Barreto, ambos em www.dgsi.pt.

O Acórdão do Tribunal Constitucional citado pelo recorrente, n.º 359/2011, de 12/7, publicado na 2ª Série do D.R. de 3/10/2011, abordou também a questão.

Todos se pronunciaram pela inconstitucionalidade daquela parte do art.º 131º/1 C.P.P., mas em casos em que a testemunha era o próprio ofendido e até se tinha constituído assistente. Lembre-se que à prestação de declarações pelo assistente são aplicáveis as normas referentes às testemunhas - art.º 145º/3 C.P.P - e logo, aquele art.º 131º/1 C.P.P.

Estas decisões basearam-se em vários princípios Constitucionais, como o direito à prova e a uma justiça equitativa (arts.º 20º/4 C.RP. e 6º C.E.D.H.), o acesso ao direito (art.º 20º/1 C.R.P.) ou o princípio da igualdade com outros portadores de anomalia psíquica grave, mas não declarados interditos e até com os menores (art.º 13º C.R.P.).

Depois destes, sobre a mesma factualidade e no mesmo sentido, se pronunciou ainda o Acórdão da Relação de Coimbra de 9/3/2 016, Inácio Monteiro.

Mas, depois de tudo isto uma outra evolução jurisprudencial houve, decorrente do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/17, de 12/7, publicado na 2ª Série do D.R de 17/5/2017.

Aqui, a matéria de facto era já um pouco diferente, pois estava em causa um ofendido não constituído assistente e que era assim simplesmente testemunha e já não sujeito processual interessado.

Aqui, a fundamentação do Acórdão já foi buscar um outro princípio Constitucional, além de se referir o direito a uma justiça equitativa.

De novo se falou neste princípio Constitucional e de Direito Internacional Convencional, na sua versão relativa à obtenção de uma decisão justa e baseada na procura da verdade material e desta feita, também baseada no princípio Constitucional da proibição do excesso de restrições legais, aos direitos, liberdades e garantias (art.º 18º/2 C.R.P.).

Aí se entendeu, com efeito, que esta restrição não era apta a satisfazer o que se queria fazer prevalecer (a segurança e justiça das decisões), pelo que era excessiva, na própria terminologia do art.º 18º/2 C.RP.

Entendeu-se como mais adequado à realização da justiça, que caso a caso seja o Juiz a verificar da aptidão física e mental da testemunha, como aliás dispõe o art.º 131º/2 C.P.P. e que é aplicável aos menores.

Aliás, o testemunho prestado deverá ser sempre livremente apreciado pelo Tribunal (art.º 127º C.P.P.).

Aí se diz, nomeadamente que

"A questão que aqui se coloca não diz apenas respeito ao depoimento das vítimas, mas ao de qualquer pessoa declarada interdita em razão de anomalia psíquica".

Ou seja: de toda e qualquer testemunha, nem se invocando sequer já, o princípio do acesso ao direito, em que se pressupunha que a vítima era assistente.

Ao que acresce que, no caso dos autos, a incapacidade permanente global da testemunha não era de 100% (cem por cento) ou próxima, mas de 60% (sessenta por cento), do que decorre que a mesma teria aptidão psicológica para ainda alguns atos da vida diária.

Podem e devem os Tribunais Comuns fazer a fiscalização em concreto da Constitucionalidade das leis, não podendo aplicar leis inconstitucionais (art.º 204º C.R.P.).

Termos em que o recurso apresentado deve ser julgado totalmente procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da lª parte do art.º 131º/1 C.P.P. - na parte em que se determina a incapacidade para depor dos interditos - e admitindo-se assim, a referida testemunha a depor.»

2. O Ministério Público interpôs então recurso de constitucionalidade dessa decisão, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, tendo depois apresentado alegações que apresentam, fundamentalmente, o seguinte conteúdo:

«2. Apreciação do mérito do recurso

2.1. Como se dá conta na decisão recorrida, a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 131.º, n.º 1, do C.P.P. já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional.

Assim, o Acórdão n.º 359/2011, julgou inconstitucional a norma constante do artigo 131.º, n.º 1, aplicável por remissão do artigo 145.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de determinar a incapacidade para prestar declarações em audiência de julgamento da pessoa que, tendo no processo a condição de ofendido, constituído assistente, está interdita por anomalia psíquica;

O Acórdão n.º 396/2017, julgou inconstitucional a norma do artigo 131.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na dimensão em que estabelece a incapacidade absoluta para testemunhar de pessoa que, tendo no processo a condição de vítima ou ofendida de um crime, está interdita por anomalia psíquica;

O Acórdão n.º 486/2018, julgou inconstitucional a norma do artigo 131.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na dimensão em que estabelece a incapacidade absoluta para testemunhar de pessoa que, tendo no processo a condição de vítima ou ofendida de um crime, está interdita por anomalia psíquica, por violação do princípio da igualdade e do processo equitativo, conjugado com o princípio da proporcionalidade.

2.2. Como se viu no presente recurso, a pessoa à qual não foi permitido prestar depoimento não era um ofendido no processo, nem assistente, mas sim testemunha arrolada pelo arguido.

Porém, a fundamentação constante dos arestos referidos é perfeitamente transponível para o caso dos autos.

(...)

2.4. Note-se ainda que, como na situação que se verifica nos presentes autos a pessoa em causa era uma testemunha indicada pelo arguido, poderia também convocar-se o artigo 32º, nº 1, da Constituição.

2.5. O artigo 9.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, veio dar nova redação ao artigo 131.º, n.º 1, do C.P.P., que passou a ser a seguinte:

Art.º 131.º

Capacidade e dever de testemunhar

1- Qualquer pessoa tem capacidade para ser testemunha desde que tenha aptidão mental para depor sobre os factos que constituam objeto da prova e só pode recusar-se nos casos previstos na lei.

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