Acórdão nº 2086/08.0GBABF.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 24 de Setembro de 2019

Magistrado ResponsávelCARLOS BERGUETE COELHO
Data da Resolução24 de Setembro de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1. RELATÓRIO Nos presentes autos, de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos no Juízo Local Criminal de Albufeira do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pela alínea e) do n.º 2 do art. 204.º, ex vi n.º 1 do art. 26.º, do Código Penal (CP).

O arguido apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos.

Realizado o julgamento, na ausência do arguido, e proferida sentença, decidiu-se absolvê-lo do crime de que era acusado.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões: 1 - O Ministério Público recorre da douta sentença proferida nos autos a 28/02/2019, que absolveu o arguido AA da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, pº e pº pelos artigos 203.º n.º 1 e 204.º n.º 2 al. e), ambos do Código Penal, impugnando a decisão preferida sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artº 412.º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal, por entender que, salvo o devido respeito, o Tribunal "a quo" absolveu o arguido devido a uma errada apreciação da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como da prova documenta] e pericial que foi carreada para os autos, em particular o auto de notícia, o relatório de inspecção judiciária, o relatório de apreciação técnica, a informação pericial de identidade de um vestígio palmar e o certificado de registo criminal do arguido.

2 - Entende o recorrente terem sido incorrectamente julgados os factos descritos nos pontos a) e c) dos factos não provados). No que respeita aos factos provados, entende o recorrente terem sido incorrectamente julgados os factos constantes do ponto 2) dos factos provados, na parte em não se determina o valor de qualquer um dos bens ou do numerário subtraídos, dado que da prova testemunhal produzida e do teor do auto de noticia, resulta apurado o valor do numerário e de pelo menos um dos bens furtados, ao contrário do que entende o Tribunal "a quo".

3 - Também quanto aos factos provados, o recorrente entende terem sido incorrectamente julgados os segmentos decisórios dos pontos 1) a 5), na parte que incorporam um juízo de indeterminação quanto à autoria dos fados, ao fazer-se uso da expressão "pessoa não concretamente identificada", porquanto, tal decorre logicamente da impugnação do ponto c) dos factos não provados e considerando que a já mencionada prova permite imputar tal autoria ao arguido.

4 - Em suma: impugna-se a matéria de facto, provada e não provada, quando conduz a um juízo dubitativo quanto à autoria do furto e também na parte que conclui que os bens e numerário subtraídos são de valor indeterminado, de modo a "desqualificar" o furto, de harmonia com o artº 204º, nº 4 do Cód. Penal, o que poderia atribuir eficácia à desistência de queixa que foi oportunamente formulada pelos ofendidos a fls. 86 e 88 dos autos.

5 - Quase toda a informação vertida no auto de notícia, enquadra-se claramente nos actos cautelares, necessários e urgentes, que o órgão de polícia criminal praticou, tendo em vista assegurar os meios de prova, nomeadamente, o exame dos vestígios do crime e a recolha de informações junto das pessoas, tendo em vista a descoberta dos agentes do crime, tudo de harmonia com o artº 249º do CPP. Logo essa informação não pode, pura e simplesmente, ser desconsiderada.

6 - Assim sendo, resulta do auto de notícia e do que foi apurado pelos militares autuantes em momento muito próximo à consumação do furto, que o autor do ilícito entrou no interior do apartamento, escalando para a varanda do quarto principal, forçando, de seguida, a janela do referido quarto. Ou seja, houve necessariamente passagem pelo varão da varanda que foi escalada e onde vieram a ser recolhidos os vestígios palmares e digitais.

7 - Acresce que por contacto directo com os ofendidos apurou-se, de forma espontânea e em acto contínuo ao furto, que entre os bens subtraídos se encontrava uma mala tipo tira colo de cor cinzenta e um telemóvel da marca Sony Ericsson, bem como uma quantia em numerário não inferior a € 50,00, o que coloca em crise o facto provado ínsito no ponto 2) vii ("uma quantia em numerário não concretamente apurada" e o facto não provado da alínea a).

8 - Na sessão de julgamento do dia 18/02/2019, as testemunhas AL (gravação digital no sistema "Citius Media Studio", entre as 14h 25m e as 14h e 41m) e a testemunha MR (gravação digital no sistema "Citius Media Studio", entre as 14h 42m e as 14h e 52m), prestaram declarações, das quais é possível retirar de relevante, o seguinte, conforme transcrições nas motivações supra: o acesso ao quarto, situado num primeiro andar, deu-se pela varanda, onde está o corrimão que tinha apostas as impressões digitais recolhidas; a máquina de barbear subtraída era de marca "Philishave" (marca de referência no mercado) e tinha um valor comercial não inferior a € 150,00; entre os bens subtraídos encontrava-se, de facto, uma carteira, que a ofendida afirma ser de pequenas dimensões podendo, por isso, não ser uma carteira de tira colo.

9 - Estas declarações, colocam em crise a matéria de facto assente (na parte em que não apura o valor da máquina de barbear subtraída), a matéria de facto não provada (na parte em que não conclui pela subtracção, além do mais, de uma mala), e ainda a fundamentação de facto, no segmento em que coloca hipóteses alternativas para o surgimento da impressão palmar do arguido no corrimão da varanda, já que tal impressão era evidente a olho nu, logo, recente, e estava aposta na varanda por onde ocorreu o escalamento e que dá directamente para o quarto que foi assaltado.

10 - Do relatório de inspecção judiciária e relatório fotográfico anexo de fls. 7 a 11, do relatório de apreciação técnica de fls. 13 a 16 e da informação pericial de fls. 23 a 27, resulta a existência de marcas visíveis de entrada forçada através da janela do quarto, confinante com a varanda.

11 - Desses elementos de prova resulta que o local onde decorreram os eventos, é um primeiro andar, sendo, portanto, consentânea com as regras da normalidade, a tese de escalamento; sendo que foi recuperado um vestígio palmar no varão da varanda escalada, na parte superior horizontal do ferro da varanda, vestígio palmar esse que corresponde ao arguido, de acordo com o relatório pericial de fls. 24 a 27.

12 - Resulta também do teor do relatório de apreciação técnica de fls. 13 a 16, bem como do relatório pericial de fls. 24 a 27, que, além de um vestígio palmar foi também recolhido um vestígio digital, o qual, pela forma de aposição ou pelas condições de conservação, acabou por não possuir um valor identificativo positivo. 13 - Resulta também destas provas o seguinte: o vestígio palmar foi recolhido no exterior da habitação, local de mais fácil acesso em caso de entrada ilegítima e mais exposto aos rigores do tempo, o que implica um maior degradação dos vestígios palmares e digitais, Tal leva à conclusão que o vestígio recolhido era recente ou muito recente, bem como nítido, como se retira a olho nu da fotografia nº 8 de fls. 11.

14 - Só uma amostra palmar e uma amostra digital, com valor identificativo positivo foram recolhidas, o que não se compadece com a tese, apresentada na sentença, que aquele local era muito frequentado em termos turísticos e, portanto, sujeito a contaminações lofoscópicas, o que implicaria necessariamente o surgimento de mais amostras.

15 - Tendo sido recolhido um vestígio palmar e um vestígio digital; tal harmoniza-se mais com o acto de agarrar o corrimão, como quem escala para a varanda, do que com o acto de pousar a mão no corrimão, a partir da varanda.

16 - Resulta do certificado de registo criminal do arguido que o mesmo já foi condenado, além do mais, por sentença transitada em julgado a 04/01/2019, no âmbito do processo nº ---/ 1l.5PLSNT, do Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3, numa pena de prisão de 4 anos e 6 meses, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de furto qualificado, pº e pº pelos artºs 203º e 204º, nº 2, al. e), ambos do Cód. Penal, isto por factos praticados a 13/06/2011 (fls. 207).

17 - A prática de crimes de contra o património não é, assim, fenómeno estranho ao percurso de vida do arguido. O modo de actuação específico para tal conduta é conhecido do arguido. A desconsideração do património alheio está presente no pretérito vivencial do arguido, facto atestado por condenação transitada em julgado.

18 - Sem que com isso se belisque o principio da presunção da inocência, não se pode, no entanto, considerar que o facto em apreciação é manifestamente estranho ao percurso de vida do arguido, que factos desta natureza exorbitam a sua pretérita vivência e, consequentemente, que a sua incriminação é perfeitamente "Kafkiana", ao arrepio do seu modo de vida conhecido ou, até, da possibilidade admissível.

19 - Pelo exposto, o tribunal deveria considerar provada a autoria do crime, por parte do arguido, com base na conjugação dos seguintes indícios: (i) existência de impressão palmar e digital, sendo a primeira inquestionavelmente do arguido, no corrimão da varanda da fracção assaltada, que se situa num primeiro andar; (ii) localização dessa impressão, na varanda, junto à porta que foi forçada para permitir o acesso aos bens furtados, sugerindo que o arguido se apoiou aí para aceder à dita varanda por escalamento; (iii) pré-existência daquela impressão em relação ao momento da queixa e presença recente dos indícios no local, dado que, tratando-se de um espaço exterior, tal não permitiria que perdurassem muito tempo; (iv) inexistência de relação entre o arguido e os ofendidos, que desse qualquer explicação alternativa para a presença daquela impressão e (v) inexistência de qualquer explicarão...

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