Acórdão nº 542/08.0TAVRL.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 01 de Março de 2010

Data01 Março 2010
ÓrgãoCourt of Appeal of Porto (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REC PENAL.

Decisão: NEGADO PROVIMENTO.

Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 604 - FLS 107.

Área Temática: .

Sumário: I - No âmbito do abuso de confiança, a actuação do agente animu domini carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que ele já está a dispor da coisa como se fosse sua.

II - A mera negação de restituição não significa necessariamente uma apropriação ilegítima: para que esta se verifique torna-se necessária a verificação de circunstâncias inequivocamente reveladoras de um arbitrário animus rem sibi habendi ou de que inexiste fundamento legal ou motivo razoável para a recusa.

Reclamações: Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 542/08.0TAVRL.P1 Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: I RELATÓRIO No termo do inquérito que, com o nº 542/08.0TAVRL, correu termos nos serviços do MºPº do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, o MºPº, considerando não terem sido recolhidos indícios da prática pelos denunciados B………. e C………. do crime de abuso de confiança que lhe era imputado, proferiu despacho de arquivamento dos autos, nos termos do nº 1 do art. 277º do C.P.P.

Discordando desse despacho, o denunciante, D………., constituiu-se assistente e requereu a abertura da instrução e, realizada esta, foi proferido despacho que manteve o arquivamento dos autos, não pronunciado os arguidos pelo crimes de abuso de confiança que o assistente lhe havia imputado.

Inconformada com a decisão instrutória, dela interpôs recurso o assistente, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que pronuncie os arguidos pelo referido crime, formulando as seguintes conclusões: “1 - A motivação do recurso que ora se apresenta deve-se à discordância do ofendido no processo supra ido quanto à d. decisão de não pronúncia dos arguidos.

2 - No seu requerimento de abertura de instrução, o ofendido, em síntese, alegou que existem nos autos indícios suficientes da prática dos arguidos de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artº 205 do Código Penal.

3 - Levadas a cabo as diligências instrutórias bem como o debate instrutório, a final, veio a Mª Juiz a quo a decidir pela não pronúncia dos arguidos, não assistindo razão ao Tribunal a quo, na perspectiva do ofendido.

4 - Na verdade, das diligências probatórias levadas a cabo (inquirição de testemunhas), resulta, a nosso ver, que in casu se impunha uma decisão de pronúncia dos arguidos, tal como se demonstrará.

5 - É que, sob a epígrafe "Abuso de confiança". diz o art° 205 do CPenal que "quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não trans/ativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa." 6 - Tal como se diz in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 11, pág. 94 e ss. "abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção".

7 - Ora, do depoimento prestado pela testemunha E………., gravado em CD - cf. fls 150 dos autos, que aqui se dá por reproduzido para! legais efeitos, bem como dos testemunhos prestados pelas testemunhas F………. e F………., gravados em CD - cf. fls. 151 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, resulta com clareza que o arguido B………. foi dentro de propriedade privada, da qual o ofendido é dono e legitimo proprietário, e daí retirou o tractor em questão nestes autos, o qual transportou num reboque para a garagem de sua casa, onde o mesmo se encontra, daí a co-autoria do crime relativamente à arguida C………. .

8 - Estamos pois in casu perante uma apropriação ilícita, a qual, tal como se afirma in Comentário Conimbricense ao CP, pág. 101, neste caso (de ilicitude) faz com que a exigência de protecção do bem jurídico seja em muitos casos acrescida.

Mais. A apropriação do bem móvel em causa por parte dos arguidos é dolosa.

9 - Na verdade, o arguido marido, astuciosamente, pensou e concretizou toda a factualidade que levou à apropriação do bem móvel levando-o para sua casa, sendo certo que apropriar-se é fazer sua coisa alheia.

10 - Diz-se na d. decisão recorrida o seguinte: "É inegável que os arguidos têm o aludido tractor na sua posse e que têm vindo a recusar a sua entrega." Acrescentando-se também aí que: "Também se nos afigura suficientemente indiciado que os arguidos pretendem com esta sua conduta forçar o filho do assistentef E………., a pagar-lhes uma determinada quantia de que se acham credores e que aquele nega dever-lhes." 11 - Vem pois a propósito dizer aqui que o ofendido não desconhece que o direito de retenção pode legitimar a negativa da restituição.

Contudo, e isto é que nos parece muito importante, o direito de retenção não pode in casu ser objecto de aplicação e muito menos ser argumento válido para não pronunciar os arguidos.

12 - É que, não está provado que o (eventual) devedor de qualquer quantia aos arguidos seja o ofendido. Aliás, tal facto, o de que o ofendido é devedor do que quer que seja aos arguidos, nunca foi invocado e muito menos provado por ninguém nestes autos.

13 - Daí que, para todos os efeitos, o aqui ofendido é e será sempre um terceiro em relação a (eventuais) dívidas de outrem, as quais desconhece, ofendido ao qual não podem ser cerceados direitos, nestes se incluindo direitos de propriedade, por eventuais comportamentos de outrem.

14 - Acresce que, os depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de Instrução são reveladores de que, in casu, se impõe decisão diversa da recorrida, pelo que se pugna, depoimentos que aqui se invocam para todos os efeitos legais encontrando-se gravados em CD, tal como consta da acta de fls. 140 a 152 que apenas e desse modo os identifica.

15 - Face à prova produzida em sede de Instrução, é pois inconsistente a d. decisão proferida pela Ma Juiz a quo, dado existirem grandes indícios que permitam concluir pela existência de uma probabilidade razoável de aos arguidos vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena.

16 - Porque contrários à prova produzida em sede de Instrução, não procedem pois os argumentos utilizados pela Mª Juiz a quo em sede de fundamentação da sua d. decisão de não pronúncia.

17 - Assim sendo, em obediência ao principio da legalidade, à concretização do art° 20 da Constituição da República Portuguesa e aos preceitos ln casu aplicáveis – artº 205 do CP, e artºs 283 nº 2 e 286, nº 1 do C.P.P., impõe-se pronunciar os arguidos com vista à concretização da Justiça, princípios que em conjugação com os demais aplicáveis, norteiam todo o Processo Penal.

18 - Logo, ao ter proferido d. decisão de não pronúncia, a Ma Juiz a quo violou os dispositivos supra citados, bem como os princípios referidos, pelo que deve a mesma decisão ser revogada, e substituída por outra que pronuncie os arguidos, com legais consequências, seguindo os autos seus ulteriores termos, assim fazendo V. Exas,. como sempre , a mais elevada JUSTIÇA!” *Apenas foi apresentada resposta pelo MºPº, que se manifestou no sentido da improcedência do recurso.

O recurso foi admitido, não tendo a Srª. Juiz proferido despacho de sustentação.

*O Exmº Procurador Geral Adjunto não se pronunciou apondo o seu Visto Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse havido resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

Cumpre decidir.

*II FUNDAMENTAÇÃO É do seguinte teor o despacho de arquivamento proferido pelo MºPº: “Nestes autos D………. veio queixar-se contra B………. e esposa por causa de um certo tractor agrícola que estes últimos se recusam a devolver-lhe.

Pretende o queixoso que o facto configuraria um crime de abuso de confiança.

Porém, efectuado que foi o pertinente inquérito o que pensamos dever concluir é que, muito sumariamente, o sucedido não configura crime nenhum.

Brevitatis causa, o que pensamos é que não se mostra que tenha sido ou seja ainda intenção dos arguidos fazer seu o tractor em causa, tal como exige o tipo criminal em causa - .artº 205º do Código Penal.

Pelo contrário, o que resulta claro dos autos é que os arguidos se querem servir dele para forçar o queixoso a pagar-lhes uma certa quantia de que se acham credores.

À partida isto poderia remeter-nos para o crime de extorsão p. E p. Pelo artº 223º do Cod. Penal.

Mas também aqui não estão preenchidos os elementos típicos, pois este tipo criminal exige que o agente tenha procedido por meio de “violência ou de ameaça de mal importante”, o que não é o caso.

Que não se trata de violência resulta claro, quanto mais não seja porque esta tem que se dirigir contra bens jurídicos pessoais e não patrimoniais.

E que não se trata de uma ameaça com mal importante resulta do facto de não se tratar de nenhum mal futuro, como é próprio da ameaça, mas sim de um mal presente, embora constantemente renovado.

Além disso, se é verdade que, como diz o arguido B………., a retenção é operada por causa de uma dívida resultante da reparação do próprio tractor, então o que se deve dizer é que este arguido age perfeitamente dentro da lei - Art.º 54° do Código Civil.

Se isto não é verdade e a retenção é feita por conta da reparação de um outro veículo, como também se diz nos autos (fls.15 e 17), então o facto será ilícito, sim, mas não um ilícito de natureza criminal.

Pelo exposto, parecendo-nos que o sucedido não configura nenhum crime, decido agora determinar o arquivamento dos autos ao abrigo do artº277° nº 1 do CPP.

Notifique o queixoso e os arguidos”*São os seguintes os termos do requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente, na parte que ora nos interessa: “I-DOS FACTOS a) Da Queixa-Crime 6ºEm Fevereiro de 2008, em dia que o Assistente não consegue agora precisar, mas que foi seguramente em finais do mês, o seu filho E………. recebeu um telefonema do Arguido B………. .

  1. Como Assistente e Arguido já se conhecem há...

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