Acórdão nº 183/06.6.TBMIR.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 01 de Março de 2010

Magistrado ResponsávelHÉLDER ROQUE
Data da Resolução01 de Março de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : I - A má fé bilateral é condição necessária, mas, também, suficiente, enquanto requisito autónomo de procedência da acção pauliana, com ressalva da situação em que o acto a impugnar for anterior à constituição do crédito, no sentido de exigir ao devedor e do terceiro a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, ou seja, a diminuição da garantia patrimonial do crédito, não sendo, por isso, necessário demonstrar a intenção de originar tal prejuízo, porquanto a lei não exige o conluio ou a concertação daqueles, tendo em vista pôr em causa a garantia patrimonial do credor.

II - O estado de má fé subjectiva, previsto pelo art. 612.º, n.º 2, do CC, compreende o dolo, nas suas diversas modalidades, e, também, a negligência consciente, não sendo necessário demonstrar a intenção de originar prejuízo ao credor.

III - Não há lugar à ampliação do julgamento sobre a matéria de facto, em ordem a averiguar a alegada má fé das rés, já objecto de quesitação, de modo a constituir a base suficiente para a decisão de direito, ao contrário do que aconteceria se apenas se tivesse questionado a intenção de prejudicar.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: “P... – Assistência Técnica ao Ramo Petrolífero, SA”, com sede no Parque Industrial, Pavilhão ..., São João da Ponte, Guimarães, propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra “S... – Rent-a-Car, Lda”, com sede na Rua do M..., Mira, e “Auto M..., O....& P...– Manutenção de Automóveis, Ldª”, com sede na Rua do M..., Mira, pedindo que, na sua procedência, seja declarada a ineficácia, em relação à autora, da escritura de compra e venda outorgada entre as rés, em 28 de Dezembro de 2004, ordenando-se a restituição dos três bens vendidos, na medida do necessário para a satisfação do crédito da autora, podendo esta executar todos ou qualquer deles, como se tivessem retornado ao património da ré “S... – Rent-a-Car, Lda”, bem como praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, alegando, para tanto, e, em síntese, que tem um crédito sobre esta ré, no valor de €38.743,23, a qual, depois de ter conhecimento da execução contra si instaurada para cobrança do mesmo, vendeu à ré “Auto M..., O....& P...– Manutenção de Automóveis, Ldª”, todo o seu património, sendo certo que o sócio gerente desta sabia que aquela ré tinha diversas dívidas, e bem assim como, continua a autora, que ambas as rés tinham perfeita consciência de que, com as referidas compras e vendas, a ré “S... – Rent-a-Car, Lda” não ficaria com património passível de ser encontrado para responder perante os credores pelas suas dívidas.

A ré “S... – Rent-a-Car, Lda” apresentou contestação, onde nega qualquer intenção dolosa da sua parte, alegando que a escritura pública de compra e venda foi outorgada, muito antes de ser exigível o crédito da autora, tendo o negócio, que foi oferecido a diversas pessoas, sido, devidamente, publicitado na região, tendo o preço da venda entrado no património daquela ré, que efectuou diversos pagamentos.

A ré “Auto M..., O....& P...– Manutenção de Automóveis, Lda”, também, contestou, alegando que desconhecia o crédito da autora, bem como a existência de outras dívidas e de outro património da ré “S... – Rent-a-Car, Lda”.

A sentença julgou a acção, procedente por provada e, em consequência, declarou a ineficácia, em relação à autora, da escritura de compra outorgada entre as rés, em 28 de Dezembro de 2004, ordenando a restituição dos três bens ao património da vendedora, na medida do necessário à satisfação do crédito desta, podendo a mesma executar todos ou qualquer deles, como se tivessem retomado ao património da ré S..., bem como praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

Desta sentença, a ré “Auto M..., O....& P...– Manutenção de Automóveis, Lda” interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação e, em consequência, confirmou a decisão impugnada.

Do acórdão da Relação de Coimbra, a ré “Auto M..., O....& P...– Manutenção de Automóveis, Lda” interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua procedência, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem: 1ª - O douto acórdão de que se recorre é - sem quebra do respeito devido - nulo nos termos combinados do artigo 668º, 1, al. b) aplicável ex vi do artigo 716º, 1, ambos do Código de Processo Civil.

  1. - Com efeito, decorre da leitura dos preceitos enumerados que é nula a decisão que não conheça de todas as questões submetidas à apreciação do Tribunal e de que este deva conhecer.

  2. - Ora, um dos momentos em que a recorrente manifestou divergência em sede de apelação foi no que respeita à decisão factual proferida em 1ª instância.

  3. - Para o efeito, enumerou os pontos de facto que, na sua óptica, estavam erroneamente julgados e mencionou quais os meios de prova, designadamente declarações de testemunhas, que impunham decisão de sentido diferente do alcançado pelo Tribunal a quo, localizando os sobreditos depoimentos de acordo com a acta da audiência final.

  4. – Todavia, o Douto Colectivo de Desembargadores limitou-se a enumerar os meios de prova que a Mma. Juíza que decidiu em primeira instância alcandorou ao nível de fundamentos, 6ª - Sem curar de aferir criticamente o conteúdo dos depoimentos sublinhados pela recorrente.

  5. - Ora, independentemente de se defender a concepção extremada de que o recurso em matéria de facto é um remédio - mais ou menos excepcional - que só deve funcionar em casos de flagrante desrazoabilidade do decidido, sempre terá de se aferir se os elementos probatórios coligidos pela recorrente militam para a emergência dessa colisão.

  6. - Com efeito, ao não se escrutinar, sequer, o que flui dos depoimentos eleitos pelo recorrente está-se a denegar-lhe o direito ao recurso e, consequentemente, a incorrer na arguida nulidade.

    Sem prescindir, 9ª - Mesmo que assim se não entenda está-se em crer que a douta decisão recorrida violou a norma contida no artigo 612º do Código Civil.

  7. - Com efeito, do aludido preceito, designadamente do respectivo nº 1, resulta que o acto oneroso só está sujeito a impugnação se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé.

  8. - Isto é, a "má fé" é um requisito essencial para que, na hipótese de se impugnar um acto oneroso, proceda a providência intentada.

  9. - Por outro lado, o n.° 2 do mesmo preceito (art. 612º do C.C.) expressa que má fé equivale à consciência do prejuízo.

  10. - Ora, para que se verifique tal circunstancialismo, necessário se torna que os autores do acto impugnado tenham agido, no mínimo, sob a forma de negligência consciente.

  11. - Na verdade, atenta a formulação semântica do preceito examinado, a mesma não abrange o desconhecimento - ainda que culposo - do acto praticado.

  12. - Ora, a matéria histórica em apreço não dá resposta directa à questão nuclear de se saber se a recorrente teria ou não conhecimento profundo das consequências do negócio em que interveio.

  13. - Na verdade, se factos há que poderão levar a concluir que assim seria - maxime o ponto 25 - emerge outra factualidade absolutamente inconciliável com esta.

  14. - Exactamente a que aponta que mesmo após o negócio alegadamente prejudicial a co-ré alienante continuou a efectuar pagamentos ao credor, liquidando mais do que um terço da responsabilidade em dívida.

  15. - Ou seja, as rés não tinham intenção de prejudicar, nem consciência de que tal eventual repercussão pudesse advir das condutas negociais que, respectivamente, adoptaram.

  16. - Ora, assim sendo, a acção terá necessariamente de improceder por inverificação de um pressuposto legal - a carência do elemento má fé.

  17. - Mesmo que assim se não entenda - hipótese que se confabula atenta a sempre recorrente cautela de patrocínio - deverá, nos termos combinados dos artigos 729°, nº 3 e 712º, ambos do Código de Processo Civil - determinar-se a ampliação da matéria de facto, a fim de que possam ser investigados factos que permitam concluir pela existência/inexistência da consciência do prejuízo, 21ª - Atento, até, o carácter inconclusivo da materialidade já existente nos autos.

    A autora não apresentou contra-alegações.

    O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz: 1. A ré “S...-.Rent-a-Car, Lda”, pessoa colectiva n°..., encontra-se matriculada, na Conservatória do Registo Comercial de Mira, sob o n°391, foi constituída, em 16 de Setembro de 2002, e tem como objecto a indústria de aluguer de veículos automóveis de passageiros e mercadorias sem condutor – rent-a-car – cfr. certidão de fls. 10 a 12 dos autos - A).

    1. A ré “S... – Rent-a-Car, Lda” tinha como sócios, à data da sua constituição, AA e BB – cfr. cfr. certidão de fls. 10 a 12 dos autos - B).

    2. Os sócios da ré “S... – Rent-a-Car, Lda”, identificados em B), indicavam como sua residência...

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