Acórdão nº 138/16.2PAMTJ.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Outubro de 2018

Magistrado ResponsávelRAUL BORGES
Data da Resolução17 de Outubro de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

No âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 138/16.2PAMTJ do Juízo Central Criminal de ..., da Comarca de Lisboa, foi submetido a julgamento o arguido AA, [...], preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Setúbal (fls. 383), transferido no dia 16-02-2018, com carácter definitivo, para o Estabelecimento Prisional da Carregueira, conforme fls. 515. Mediante acusação deduzida pelo Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca de Lisboa, DIAP, ... –, de fls. 348 a 353, foi imputada ao arguido a autoria material de 70 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, relativamente à menor BB e a autoria material de 170 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, relativamente ao menor AA.

Realizado o julgamento em 14-12-2017, conforme acta de fls. 445, após dedução de prova e subsequente progressão, entendeu o tribunal que os factos tal como resultavam da acusação poderiam, eventualmente, integrar não a prática de crime de abuso sexual, tal como constava da acusação, mas o crime de violação, nos termos dos artigos 164.º e 177.º, actualmente n.º 7, do Código Penal.

Comunicada a susceptibilidade da alteração da qualificação jurídica à defesa, nos termos do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, a Mandatária do arguido requereu prazo de defesa, tendo sido concedido o prazo de 5 dias para apresentação da defesa (cfr. fls. 445 e verso).

Por acórdão do Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de ..., de 4 de Janeiro de 2018, constante de fls. 448 a 483, depositado no mesmo dia, conforme declaração de depósito de fls. 486, foi deliberado:

  1. Convolar os crimes de abuso sexual de menor, p. e p. pelo artigo 171.°, n.º 2, e 177.°, n.º 1, alínea a), do Código Penal, em crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.°, n.° 1, alínea a), e 177.°, n.º 7, do Código Penal.

  2. Absolver o arguido AA da prática de: 1) 65 (sessenta e cinco) crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.°, n.° 1, alínea a), e 177.°, n ° 7, do Código Penal, na pessoa da menor Margarida; 2) 156 (cento e cinquenta e seis) crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.°, n ° 1, alínea a), e 177.°, n ° 7, do Código Penal, na pessoa do menor AA; c) Condenar o arguido AA pela prática de: 1) 5 (cinco) crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.°, n.° 1, alínea a), e 177.°, n ° 7, do Código Penal, na pessoa da menor BB, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses, por cada um dos crimes; 2) 14 (catorze) crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.°, n.° 1, alínea a), e 177.°, n ° 7, do Código Penal, na pessoa do menor AA, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses, por cada um dos crimes 3) Efectuando o cúmulo jurídico, aplicar ao arguido a pena única de 14 (catorze) anos de prisão; e) Fixar uma indemnização às vítimas, condenando o arguido a pagar 25.000,00 (vinte e cinco mil) euros à menor BB e 35.000,00 (trinta e cinco mil) euros ao menor AA, a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa de 4% desde a data da prolação do acórdão até integral pagamento; *** Inconformado com o deliberado, o arguido interpôs recurso de matéria de facto e direito para o Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. 495, apresentando a motivação de fls. 497 a 512 verso.

    O recurso foi admitido por despacho de fls. 514.

    O Ministério Público respondeu conforme consta de fls. 516 verso a 521 verso.

    *** Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Maio de 2018, constante de fls. 543 a 566, foi negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida sem mais.

    *** O arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, a fls. 575, apresentando a motivação de fls. 576 a 589, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral, incluindo realces): 1. A nossa Jurisprudência define de forma clara e inequívoca, que nos crimes sexuais quando não se consegue identificar o número de crimes, está-se perante um crime continuado, um crime de trato sucessivo. (Ac.TRL de 13-04-2011.

    1. Com efeito, a prova produzida em sede de audiência de julgamento, não nos permite aferir com segurança que o arguido, teve relações anais com os seus dois filhos, e quantas vezes isso sucedeu.

    2. Mais a menor BB, chega a afirmar que o pai tentou mas não conseguiu, ora aqui estaríamos na presença, de um crime na forma tentada.

    3. A aplicação do artigo 30.º do Código Penal, implica de forma clara uma redução da pena aplicada ao arguido, pois assim é determinado para a crime continuado ou para o crime de trato sucessivo.

    4. No Ac. STJ de 29-11-2012, o acórdão em questão refere que: I- Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

      II - O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.

      III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime — apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.

      IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento á medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.

      V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processa de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).

      VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

      VII - Tendo em atenção que os factos se devem agrupar em três crimes de trato sucessivo, como se explicou, vejamos como agrupá-los: - Factos de 1999 a 2000: coito oral com a menor B, confiada ao arguido para educação e assistência, «sob ameaças que lhe batia caso contasse a alguém» e entre os 10 os 11 anos de idade da vítima; - Factos de 2003 a 2004 (entre os 13 e 14 anos da menor B), retomada a anterior prática em cerca de 20 ocasiões distintas, durante a noite, o arguido dirigiu-se ao quarto da enteada e, depois de a despir, tentou, sem o conseguir, introduzir-lhe o pénis na vagina, voltando a ameaçá-la que lhe batia caso contasse a alguém; - Factos de 2009, tentativas de coito vaginal com a filha de 11 anos de idade, seguidas de coito oral; pelo menos por duas vezes, acabou por introduzir o pénis, por completo, na vagina da filha, onde, após friccionar, ejaculou, sendo que arguido a coagia, asseverando-lhe que, se contasse o sucedido a terceiros, a agrediria.

      VIII - Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.

      IX - Caso se seguisse a lógica subjacente à decisão do acórdão recorrido, ter-se-ia de fazer uma decomposição de cada um dos crimes de trato sucessivo de que foi vítima a menor B em dois crimes agravados de abuso sexual de criança, acrescidos de dois crimes de coação, e, quanto à menor C, de um crime agravado de abuso sexual de criança e de outro de coação. Todavia, o Código Penal configura um tipo específico (o de violação) que tem como elemento típico a cópula vaginal ou oral forçada pelo agente através da coação grave, penalmente agravado, nos seus limites mínimo e máximo, quando a vítima seja menor de 16 ou de 14 anos de idade.

      X - A questão que agora se põe é a de saber se a punição, em relação a cada um dos crimes de trato sucessivo em causa, se há de fazer como a de um crime agravado de abuso sexual de crianças em concurso efetivo com um crime de coação ou como uni crime agravado de violação, pois as molduras penais não são as mesmas; para além de que o tipo de crime de violação protege a liberdade sexual da vítima enquanto o tipo de crime de...

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