Acórdão nº 1005/15.2PAENT.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 20 de Dezembro de 2018

Magistrado ResponsávelS
Data da Resolução20 de Dezembro de 2018
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I. Relatório No Processo Comum nº 1005/15.2PAENT, que correu termos no Juízo de Competência Genérica do Entroncamento do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, pela Exª Juiz titular dos autos foi proferido, em 27/4/2018, um despacho do seguinte teor: «Em sede de contestação, o arguido veio suscitar, entre outras questões, a nulidade do despacho de acusação, alegando, para o efeito, em síntese que o mesmo é omisso quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito que é imputado ao arguido, concretamente quanto à alegação que o arguido actuou com dolo. Conclui peticionando a rejeição da acusação, por manifestamente infundada.

O Ministério Público pugna pelo indeferimento do requerido, alegando, em síntese, que decorre do despacho de acusação que ali é imputado ao arguido o elemento volitivo do dolo, ou seja, que o mesmo apresentava capacidade para avaliar a ilicitude dos actos que desejou praticar (elemento volitivo do dolo), mas não possuía a capacidade para se auto determinar com essa avaliação (ausência do elemento intelectual do dolo, atenta o facto de estar condicionado pela perturbação psiquiátrica que o afectava no momento da prática dos factos).

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 283º nº 3 do C.P.Penal que a acusação contém, sob pena de nulidade, entre outros elementos, “ a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (al. b)).

Deste modo, por força do disposto no artigo 311º nºs 2 al. a) e 3 al. d) do C.P.Penal, se a acusação não contém os factos que integram a previsão de um ilícito criminal, a mesma, sendo considerada manifestamente infundada, deve ser rejeitada.

No que respeita ao elemento subjectivo, cumpre salientar desde logo que é evidente que os factos integradores do mesmo têm que estar alegados, a par com os referentes aos elementos do tipo objectivo, caso contrário não será possível imputar ao arguido a prática de um ilícito criminal e, consequentemente, fazendo-se prova em sede de audiência de discussão e julgamento, proceder à sua condenação.

Da mesma forma, entende-se que quando esteja em causa uma conduta praticada por um inimputável também o elemento subjectivo deve ter-se por alegado, mas crê-se que, neste tipo de casos, com contornos diferentes, concretamente quanto ao elemento intelectual do dolo, senão vejamos.

Dispõe o artigo 20º do C.Penal que: “1. É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

  1. Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.

  2. A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.

  3. A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto”.

    Por sua vez, estatui o artigo 91º desse mesmo diploma legal que “1. Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.

  4. Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”.

    Para que uma pessoa seja declarada inimputável necessário se torna que previamente se verifiquem, em concreto, dois requisitos: a conexão biológica e o elemento normativo.

    Quanto ao elemento conexão biopsicológica este manifesta-se no facto de o agente padecer de anomalia psíquica (artigo 20º, nº 1). Tem-se entendido que o conceito de anomalia psíquica compreende todo e qualquer transtorno de carácter permanente ou meramente passageiro ocorrido ao nível do psíquico, adquirido ou congénito, podendo manifestar-se, entre outras, nas patologias mentais no sentido clínico, como a esquizofrenia, e em certas psicopatias devidas à intoxicação por drogas ou pelo álcool1.

    Essencial é que tal patologia se manifeste no momento da prática do facto ilícito.

    Como bem refere Figueiredo Dias, fundando-se o conceito de culpa jurídico-penal numa liberdade concebida como modo-de-ser característico de todo o existir humano (2), a existência de uma anomalia psíquica, ao menos nas suas formas mais graves, destrói as conexões reais e objectivas de sentido da actuação do agente, de tal modo que os actos deste podem porventura ser "explicados", mas não podem ser "compreendidos" como factos de uma pessoa ou de uma personalidade.

    Outro dos requisitos essenciais para a verificação de uma situação de inimputabilidade funda-se no facto de se poder concluir que a existência no agente de uma anomalia psíquica é tal forma que tornou impossível ou pelo menos manifestamente duvidoso o juízo judicial de compreensão, de apreensão da conexão objectiva de sentido entre a pessoa e o seu facto; que o torne impossível ou ao menos altamente duvidoso3.

    A este propósito, o Prof. Figueiredo Dias, defende ainda que o elemento normativo acresce à base biopsicológica e que, deste modo, nada tem a ver com as questões irrespondíveis do livre arbítrio ou da liberdade da vontade. Assim sendo, torna-se ainda necessário determinar se essa anomalia «é uma tal que torne impossível o juízo judicial de compreensão, de apreensão da conexão objectiva de sentido entre a pessoa e o seu facto; que o torne impossível ou, ao menos, altamente duvidoso».

    Deste modo, se quanto ao apuramento de uma anomalia psíquica se torna indispensável o recurso aos conhecimentos de peritos psiquiátricos, também aqui, na comprovação do elemento normativo, o perito prestará auxílio precioso ao juiz a quem, no entanto, caberá a última palavra, continuando a ajustar-se-lhe o cognome de perito dos peritos (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime, págs. 517 e seguintes, e na intervenção Pressupostos da Punição nas Jornadas de Direito Criminal, edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 75 e 76).

    É, por último, indispensável que a anomalia psíquica se tenha exprimido num concreto facto considerado pela lei como crime (um concreto facto "típico") e o fundamente (num sentido em certa medida análogo àquele em que a atitude interna do agente fundamenta a culpa pelo facto).

    Da mesma forma, ensina Eduardo Correia (in Actas da Comissão Revisora do Código Penal, acta da 8.ª sessão, de 24 de Janeiro de 1964, edição da Associação Académica de Lisboa, pág. 145) que “uma de duas: ou a anomalia não é uma tal que furta ao agente a possibilidade de dominar os seus efeitos e, consequentemente, ele não incorre no âmbito do artigo 18.º [actual n.º 2 do artigo 20.º], sendo declarado imputável e a pena até porventura atenuada; ou ela tem aquela natureza, ele é perigoso e, portanto, terá de sofrer um internamento de segurança pelo menos igual ao mínimo correspondente ao tipo legal de crime que praticou. Em qualquer caso ter-se-ão eliminado os perigos que tradicionalmente se assinalavam ao tratamento da chamada imputabilidade diminuída”.

    A este propósito, releva o entendimento propugnado no Ac. da Relação de Coimbra, de 04/02/2009 (processo n.º 618/05.5PBCTB.C1, disponível no site www.dgsi.pt), onde se defende que “como se sabe, a antijuridicidade e a culpabilidade são as duas referências de que depende a imputabilidade, uma vez que o comportamento humano só é jurídico-penalmente relevante se contrário ao Direito e pessoalmente censurável ao agente, censura só admissível quando o agente se encontra em condições para se comportar de outro modo, isto é, de acordo com as exigências do ordenamento jurídico. Certo é que nem todos possuem aquelas condições, as quais implicam, não só conhecimento e entendimento, mas também capacidade de auto-determinação, atributos de que alguns se mostram permanente e definitivamente desprovidos, outros parcialmente desprovidos e outros desapossados de forma meramente temporária. Por isso, a inimputabilidade, tal como a imputabilidade e a imputabilidade diminuída têm de ser aquilatadas e reportadas ao momento da prática do facto.

    Assim, a incapacidade de avaliação da ilicitude e de determinação de acordo com essa avaliação, tal como a diminuição da capacidade de avaliação da ilicitude e a diminuição capacidade de determinação de acordo com essa avaliação, elementos consubstanciadores da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída, respectivamente, só poderão integrar estas situações de supressão ou atenuação do juízo de culpabilidade, quando verificadas no momento da prática do facto.

    Com efeito, só assim se mostrará justificada a incapacidade ou diminuição da capacidade para o agente se comportar de outro modo, isto é, de acordo com as exigências do ordenamento jurídico”.

    In casu, apesar de ser manifesta a forma sintética e sem usar as formas tabelares (jargões jurídicos) usualmente utilizados nos despachos de acusação, o Tribunal entende que na presente acusação estão alegados os elementos subjectivos do tipo de ilícito.

    Contrariamente ao que refere o arguido, o Ministério Público não se limitou a...

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