Acórdão nº 105/17 de Tribunal Constitucional (Port, 01 de Março de 2017

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução01 de Março de 2017
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 105/2017

Processo n.º 651/2016

3ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, na 3ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos de Tribunal Arbitral constituído junto do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, em que é reclamante o Estado Português e reclamada A., S.A., foi apresentada reclamação, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão arbitral daquele Tribunal, de 5 de Julho de 2016, que não admitiu em parte o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.

2. A ora reclamada enviou ao reclamante Estado Português pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos previstos no Contrato de Concessão celebrado em 8 de Maio de 2010, outorgado por referência às Bases da Concessão do Troço Poceirão-Caia da Rede Ferroviária de Alta Velocidade, aprovadas e publicadas pelo DL n.º 33-A/2010, de 14 de Abril, com vista a obter ressarcimento nos termos da cláusula 102.3 do aludido contrato, na sequência da prolação do Acórdão n.º 9/2012, do Tribunal de Contas.

Constituído e instalado o Tribunal Arbitral, o mesmo veio a proferir acórdão arbitral, datado de 5 de Julho de 2016, nos termos do qual, e grosso modo, condenou o aqui reclamante a pagar à reclamada o valor global de 149.649.219,58 euros, acrescido de juros moratórios, absolvendo-o do demais peticionado.

Com interesse para a presente reclamação, pode ler-se no referido acórdão:

«(…)

II.6. A validade da Cláusula 102.3 do Contrato de Concessão

80. A análise antecedente permitiu identificar as razões justificativas do regime constante do artigo 45º, n.º 3, bem como fixar o sentido juridicamente relevante da cláusula 102.3 do Contrato de Concessão. A solução a que chegamos permite encontrar a justiça substancial do regime contratualmente disposto.

Mas, perguntar-se-á, é a matéria dos efeitos da recusa de visto a um contrato que o Estado determinou ser previamente executado suscetível de ser regulada pela autonomia privada? A autonomia privada, apesar da sua eficácia jurígena imanente, não encontra, em face da matéria em presença, limites que a desgraduem?

Esta questão tem de ser enfrentada, uma vez que o Demandado estriba parte significativa da sua defesa, quer na invalidade da cláusula 102.3, quer na inconstitucionalidade da regra que a sustenta, a saber a Base XCVIII, n.º 3, das Bases da Concessão do Troço Poceirão-Caia da Rede Ferroviária de Alta Velocidade, que foram aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 33-A/2010, de 4 de abril. Deste modo, o Demandado, tanto visa atingir diretamente a cláusula, tentando desgraduá-la enquanto fonte juridicamente válida de imputação de despesas ao Estado, como pretende atingi-la de forma indireta, considerando inquinada a fonte que lhe conferiria juridicidade.

No fundo, o que resulta alegado é a invalidade da cláusula 102.3 por violação do artigo 45º, n.º 3, que seria uma regra injuntiva, e a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 33-A/2010, de 4 de abril, por este violar uma série de reservas de competência legislativa da Assembleia da República, e ainda princípios fundamentais da atividade administrativa. De um modo sintético, quer por violação de regra injuntiva, quer por inconstitucionalidade da sua fonte legal, a cláusula 102.3 não poderia valer. Cremos ser este o resultado pretendido pelo Demandado quando se defende na ação.

Antecipando as conclusões da análise que se empreenderá, diremos que nenhuma das razões invocadas pelo Demandado procede. Por um lado, enquanto a cláusula se insere no âmbito de proteção do particular sempre e já assegurado pelo aludido artigo 45.º, nº. 3, ela não pode deixar de ser válida como o é aquela norma. De todo o modo, mesmo na amplitude mais vasta que assume, a cláusula 102.3 do Contrato de Concessão é válida uma vez que não viola nenhum dos limites à autonomia privada, nela encontrando a razão da sua juridicidade, sendo, também, conforme à Constituição o diploma em que foi publicada a Base XCVIII, n.º 3 das Bases da Concessão, a saber, o Decreto-Lei n.º 33-A/2010, de 4 de abril, que aquela cláusula reproduz.

81. Na presente ação, a Demandante configura um concurso de títulos de aquisição da prestação, fundando o seu direito a uma compensação, primeiramente, na cláusula 102.3 do Contrato de Concessão e, subsidiariamente, no art. 45º, n.º 3 da LOPTC, aliado à impossibilidade de cumprimento. O fundamento da ação não é a Base XCVIII.3 da Concessão, o que se compreende uma vez que aquilo que está em causa é a aferição dos efeitos de um concreto contrato administrativo - o Contrato de Concessão - celebrado entre Demandante e Demandado no que tange à conformação do dever de compensar custos. Por esta razão, e ainda que se possa afirmar que o Estado-administração não pudesse afastar-se daquilo que esse mesmo Estado-administração, agora no uso da sua competência legislativa, determinara - na sequência de negociações ocorridas entre Demandante e Demandado ao longo do procedimento administrativo que antecedeu a celebração do Contrato e mesmo da publicação do Decreto-Lei n.º 33-A/2010, de 4 de abril -, o contrato administrativo celebrado ganha autonomia jurídica. A Demandante, não obstante referir a Base XCVIII.3 da Concessão, não funda nela a sua pretensão, pelo que aquilo que haverá que perguntar, com eficácia determinante para a aferição da procedibilidade da pretensão à compensação, é se a cláusula 102.3 do Contrato pode valer. E se a resposta for positiva, será nesta - ou, dito com maior rigor, na autonomia privada - que vai encontrar-se o fundamento jurídico da pretensão.

Porém, porque o Demandado suscita, na sua contestação, como razão invalidante da cláusula 102.3 do Contrato, a inconstitucionalidade da Base em que esta se apoia, não deixará o Tribunal de extrair consequência a propósito do fundamento invocado - a Cláusula - para a valia jurídica da Base. Reitere-se, porem, que não esta em causa, segundo o modo como foi configurada a ação, a verificação da conformidade constitucional de um concreto diploma legal, mas sim a discussão relativa à validade de certa cláusula de um concreto contrato administrativo.

Dito de outro modo, o título em que a Demandante, ao abrigo do dispositivo, fundou a sua pretensão foi o contrato administrativo - sc., certa cláusula de certo contrato administrativo -, e não o diploma que aprovou as suas Bases. Com todas as consequências daqui derivadas, e porque a Demandante funda a sua pretensão numa regra contratual, ainda que o Demandado tenha visado convolar este contencioso num contencioso de constitucionalidade do diploma que aprovou as Bases da Concessão, não é este que está em causa na presente ação, porquanto não foi este o modo como a Demandante fundou e configurou as suas pretensões. Estando o Tribunal vinculado aos fundamentos invocados pelas Partes para estribarem as suas pretensões e tendo a Demandante fundado as suas no contrato, é este o título que tem de ser destruído. Quer dizer que, fundando a Demandante as suas pretensões no contrato e, mais concretamente, na sua cláusula 102.3, haverá de localizar-se um limite inderrogável à autodeterminação para que tal cláusula não possa valer.»

3. O ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão arbitral, visando a apreciação da constitucionalidade das seguintes normas: «norma ínsita na Base XCVIII, ponto 3, das Bases da Concessão do Troço Poceirão-Caia da Rede Ferroviária de Alta Velocidade, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 33-A/2010, de 4 de abril» e «interpretação que o Tribunal Arbitral operou, no caso concreto, do artigo 619º, n.º 1 do Código de Processo Civil (doravante “CPC”) e do primeiro segmento do artigo 621º da mesma codificação legal, quando interpretados no sentido de que inexiste vinculatividade para um Tribunal Arbitral de um decisório – nele se incluindo os respetivos fundamentos – proferido pelo Tribunal de Contas, em matéria em que este último é exclusivamente competente, nos termos da Constituição e da lei, para proferir tal decisão».

Através de despacho assinado pelos três árbitros, o Tribunal arbitral não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional na parte relativa à norma da Base XCVIII, tendo-o admitido restritivamente quanto à segunda norma identificada pelo recorrente, que delineou nos seguintes termos: «artigo 619º, n.º 1 do Código de Processo Civil e do primeiro segmento do artigo 621º da mesma codificação legal, nos termos da qual, se existe vinculatividade de um Tribunal à decisão proferida pelo Tribunal de Contas em matéria da sua exclusiva competência, a vinculatividade não se estende aos fundamentos da decisão, podendo o Tribunal Arbitral exercer a sua jurisdição plena quando não esteja em causa o conhecimento de um fundamento cuja apreciação se inscreva na competência exclusiva de um outro Tribunal ou Jurisdição».

Na parte relevante para os presentes autos, pode ler-se em tal decisão:

«(…)

4. Quanto ao pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade da norma ínsita na Base XCVIII, ponto 3, das Bases da Concessão do Troço Poceirão-Caia da Rede Ferroviária de Alta Velocidade, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 33-A/2010, de 4 de abril, se é verdade que o Recorrente suscitou as questões de constitucionalidade que pretende ver sindicadas na sua contestação – conforme resulta da transcrição dos correspondentes artigos, realizada no presente requerimento de interposição de recurso –, é igualmente verdade que, ali, asseverou ser a “norma ínsita na Base XCVIII, ponto 3, das Bases da Concessão do Troço Poceirão-Caia da Rede Ferroviária de Alta Velocidade, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 33-A/2010, de 4 de abril” destituída...

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