Acórdão nº 102/15.9YUSTR.LI-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 08 de Março de 2018

Magistrado ResponsávelCARLOS ALMEIDA
Data da Resolução08 de Março de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO 1. As arguidas “AA, S. A.”, “BB, S. A.” e “CC, S. A.” foram condenadas, por decisão da Autoridade da Concorrência de 29 de Janeiro de 2015, pela prática de uma contra-ordenação dolosa p. e p. pelos artigos 9.º, n.º 1, alínea c), 67.º, 68.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 2, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, e pelo artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia em coimas cujo valor global ascendia a 9.290.000 euros.

Tendo impugnado essa decisão, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, por sentença de 4 de Janeiro de 2016, veio a condená-las pela prática daquela contra-ordenação, mas cometida por negligência, e a reduzir o montante das coimas aplicadas às recorrentes, fixando-as nos seguintes valores: ─ Quanto à arguida “AA, S. A.”, 3.900.000 euros; ─ Quanto à arguida “BB, S. A.”, 150.000 euros; ─ Quanto à arguida “CC, S. A.”, 40.000 euros.

As arguidas interpuseram recurso dessa sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 10 de Janeiro de 2017, negou provimento a esse recurso.

Depois de terem recorrido para o Tribunal Constitucional e de o recurso ter sido rejeitado, decisão mantida em conferência após reclamação, as arguidas, no dia 9 de Novembro de 2017, invocando o disposto no artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpuseram o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dizendo o seguinte: I. BREVE ENQUADRAMENTO.

Por decisão administrativa de 29 de Janeiro de 2015, a Autoridade da Concorrência (doravante, "AdC") decidiu, nos termos conjugados dos artigos 67.º, 68.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 2 da Lei n.º 19/2012 de 8 de Maio, que aprova o Novo Regime Jurídico da Concorrência (doravante, "LdC" ou "NRJC"), condenar as Visadas (doravante, "Recorrentes") ao pagamento de uma coima global de cerca de 9 milhões de euros, porquanto considerou que as mesmas infringiram o disposto no artigo 9.º, n.º 1, alínea c) do NRJC e no artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Mais tarde, por efeito de impugnação judicial apresentada pelas Recorrentes, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão veio, em decisão proferida a 4 de Janeiro de 2016, a reduzir as coimas aplicadas para um valor global de cerca de 4 milhões de euros.

Note-se desde já que, logo em sede de impugnação judicial, as Recorrentes pugnaram pela nulidade da decisão da AdC, por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, porquanto "[q]ualquer interpretação do artigo 58.º do RGCO no sentido de que poderá ser aplicada uma coima a pessoas coletivas sem que, na decisão proferida pela autoridade administrativa, se explicite e concretize a identificação das concretas pessoas singulares cuja atuação e poderes lhes torna imputáveis os factos, em revelia do artigo 73.º, n.º 2 da Lei n.º 19/2012, é inconstitucional, por violar o princípio da legalidade previsto no artigo 29.º, n.º 1 da CRP, para além do disposto nos artigos 18.º, n.º 1 e 32.º, n.º 10 da CRP".

Não obstante, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão optou por não acolher tal argumentação, concluindo do seguinte modo: "[n]o que respeita à questão de constitucionalidade invocada, considera-se que a interpretação do artigo 58.º do RGCO, no sentido de que poderá ser aplicada uma coima a pessoas colectivas sem que, na decisão proferida pela autoridade administrativa, se explicite e concretize a identificação das concretas pessoas singulares cuja atuação e poderes lhes torna imputáveis os factos, não viola o disposto nos artigos 29.º/1, 18.º/1 e 32.º/1 todos da CRP, quando, como é o caso, a própria configuração da infracção e/ou o seu contexto não suscitam dúvidas no sentido de que a imputação dos factos assenta num dos critérios de conexão previstos no citado normativo legal" (sublinhado nosso).

Não se conformando com tal desfecho, as Recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual veio, contudo, a confirmar a sentença do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, negando provimento ao recurso apresentado pelas Recorrentes.

Na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, na parte que diz respeito à quarta questão colocada pelas Recorrentes, rectius, à questão da nulidade da decisão recorrida por violação do disposto no artigo 58.º do RGCO, pode ler-se que "[i]nexiste, pois, qualquer nulidade da sentença recorrida seja por falta de fundamentação seja por omissão de pronúncia"[1].

De facto, concluíram os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa que "(...) a perspectiva atrás enunciada acerca do estabelecimento do factor de conexão para afirmar a responsabilização da pessoa colectiva e para fundamentar a condenação das visadas recorrentes obedecem a todos os apontados requisitos, como impõem o artigo 1.º, n.º 1 do RGCO[2], com as adaptações necessárias da realidade do ilícito criminal para a realidade jurídica contraordenacional, nenhuma violação do invocado princípio da legalidade se mostra evidenciada".

Por fim, tendo sido previamente suscitada questão de inconstitucionalidade, as Recorrentes interpuseram, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 10 de Janeiro de 2017, recurso para o Tribunal Constitucional. Neste âmbito, tendo sido proferida a decisão sumária n.º 258/2017, nos termos da qual foi decidido não conhecer do recurso, apresentaram as Recorrentes reclamação para a Conferência, a qual foi indeferida, confirmando-se a decisão de não conhecimento do recurso.

Ora, considerando que o acórdão do Tribunal Constitucional foi notificado às Recorrentes a 9 de Outubro de 2017, nos termos do artigo 80.º, n.º 4 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, na sua redacção actual), deve tomar-se por assente que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, objecto do presente recurso extraordinário, veio a transitar em julgado.

II. DA QUESTÃO DE DIREITO CONTROVERTIDA.

Atento o que já se foi adiantando, deverá começar por se salientar que, segundo decorre expressamente do disposto no artigo 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro, que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (doravante, "RGCO"), "as pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções" (sublinhado nosso).

Por outro lado, dispõe o artigo 73.º, n.º 2 do NRJC: "As pessoas coletivas e as entidades equiparadas referidas no número anterior respondem pelas contraordenações previstas na presente lei, quando cometidas: a) Em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem atue sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem".

Ora, muito embora a redacção dos normativos supra referidos não seja igual, é ponto assente na nossa Ordem jurídica que a imputação de responsabilidade contra-ordenacional às pessoas colectivas assenta sempre na prévia imputação de acto ou omissão a uma pessoa singular (titulares de órgãos sociais, pessoas investidas em posição de liderança ou outras que actuem sob a autoridade destas, em virtude de violação dos deveres de vigilância ou controlo que àquelas incumbam).

Por conseguinte, a responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas só poderá ser legalmente desencadeada quando se apure a existência de actos ou omissões, tipificados como contra-ordenação, levados a cabo por pessoa ou pessoas singulares incluídas naquele círculo restrito, sob pena de, se assim não fosse, se estar em presença de responsabilidade contra-ordenacional objectiva.

Ora, no que à decisão condenatória diz respeito, é de atentar no disposto no artigo 58.º do RGCO, onde se pode ler que: "1. A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a. A identificação dos arguidos; b. A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c. A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d. A coima e as sanções acessórias.

  1. (…) 3. (...)„ Da norma supra transcrita resulta claro que a decisão condenatória, sob pena de nulidade, deverá incluir na descrição dos factos imputados menção expressa à identidade, qualidade e poderes dos concretos agentes singulares que permita a imputação de responsabilidade à pessoa colectiva.

    Ora, na matéria de facto dada como provada nos presentes autos, manifestamente não se vislumbra de que modo podem os ilícitos em apreço ter sido praticados pelos órgãos das Recorrentes, no exercício das suas funções, o que impede que se estabeleça, no caso em concreto, um nexo de imputação subjectiva apto a permitir a condenação das mesmas ao pagamento de uma coima.

    Note-se, aliás, que a decisão da AdC, subsequentemente confirmada pelas posteriores decisões judiciais, nem sequer é clara quanto a qual das alíneas do artigo 73.º, n.º 2 da LdC fundamenta, no caso concreto, a imputação da responsabilidade contra-ordenacional às Recorrentes, não fazendo sequer qualquer referência à actuação "em seu nome" e "no seu interesse".

    Assim, quer a decisão da AdC quer as subsequentes decisões judiciais que, nessa parte, a confirmaram, limitaram-se a proceder à imputação directa da responsabilidade à pessoa colectiva sem identificar uma única pessoa singular que fosse susceptível de constituir o ponto de partida dessa imputação às pessoas colectivas.

    O entendimento que vem de se defender é sustentado pelos Ilustres Professores Doutores Figueiredo Dias e Nuno Brandão, em parecer que se encontra junto aos autos.

    Em tal parecer pode ler-se que "(...) a decisão condenatória proferida pela Autoridade da Concorrência é omissa quanto à intervenção de qualquer pessoa singular que sirva de fundamento à imputação dos respectivos comportamentos às sociedades visadas".

    Mais adiante, acrescentam os Ilustres Professores que "(...) no art. 73.º do...

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