Acórdão nº 46/11.3TAMCD.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 22 de Abril de 2015

Magistrado ResponsávelEDUARDA LOBO
Data da Resolução22 de Abril de 2015
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Proc. nº 46/11.3TAMCD.P1 1ª Secção Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I – RELATÓRIO O Ministério Público deduziu acusação em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular contra B… e C…, imputando-lhes a prática, em autoria material, de 1 (um) crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 10º e 137º, n.º 1, do Código Penal.

A fls. 171-173, D…, filho de E… e de F…, natural da freguesia …, concelho de Macedo de Cavaleiros, solteiro, residente na Rua … s/n, ….-… …, Macedo de Cavaleiros, deduziu, na qualidade de assistente, acusação subordinada, contra os arguidos B… e C…, imputando-lhes a prática, em autoria material, de 1 (um) crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 10.º e 137.º, n.º 1, do Código Penal, por remissão para os factos descritos no despacho de acusação.

A fls. 174-183, D…, G…, H…, I…, K… e L…, filhos de E… e de F…, deduziram pedido de indemnização civil contra os arguidos B… e C…e a Unidade Local de Saúde do Nordeste, E.P.E. (U.L.S.N., E.P.E.), peticionando a sua condenação solidária no pagamento de uma indemnização no valor global de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes dos factos descritos no despacho de acusação.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido ambos os arguidos absolvidos do crime e do pedido cível.

Inconformado com a absolvição, o MP recorreu para este Tribunal da Relação, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição): “1. A sentença recorrida julgou incorretamente os pontos 28 a 39, 40 e 41 da Matéria de facto provada com relevo para a boa decisão da causa e os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 da “matéria de facto não provada”.

  1. Os elementos que impõe que tivessem sido julgados provados os factos constantes dos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 dos factos indicados na douta sentença sob epígrafe “Factos não provados com interesse para a decisão da causa” e que impunham que se considerassem provados os factos constantes dos artigos 17.º a 26.º da Acusação, em substituição da factualidade constante nos pontos 28 a 41 da matéria julgada provada na douta sentença são precisamente aqueles que resultam do Relatório de autópsia de fls. 63-71 e ss.; do Parecer técnico-científico de fls. 97-99., da Participação do óbito de fls. 1-6; do Relatório de análises clínicas de fls. 35-37 e dos Registos clínicos de fls. 41-44, confrontados com as regras da experiência, ou do sentido comum.

  2. Impõe igualmente decisão diversa daquela que foi proferida relativamente aos referidos factos provados e não provados o depoimento das testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento, nomeadamente Professor Doutor M… e Dr.a N…, bem como as declarações do assistente D…, gravadas no sistema digital de gravação disponível no Tribunal, nos seguintes termos: 4. Deverão ser considerados não provados, e consequentemente eliminados os pontos constantes da douta sentença de 28 a 39, 40 e 41 (da Matéria de facto provada com relevo para a boa decisão da causa), sendo, consequentemente considerados provados os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 dos factos não provados na sentença, fazendo-se constar, no lugar destes a seguinte factualidade: - As leges artis aconselham, face à idade da paciente F… e a referida história de HTA: a medição da TA – Tensão arterial e a medição da saturação de oxigénio capilar ou periférica - E pese embora soubessem que a patologia coronária, frequentemente cursa com epigastralgias, os arguidos não fizeram qualquer avaliação cardíaca mais específica, designadamente um ECG - Electrocardiograma (…).

    - Os arguidos podiam e deviam – e a boa prática médica o indica – ter investigado através dos meios complementares de diagnóstico adequados sobre a eventual insuficiência coronária da paciente, o que não fizeram.

    - Nem a encaminharam para uma outra Unidade de Saúde que lhe fizesse tais exames, visto poder estar em risco, como se veio a verificar, a vida da doente.

    - Esta avaliação ou encaminhamento da paciente poderia ter evidenciado a origem cardíaca das epigastralgias, dado que a autópsia realizada no dia 15.03.2011, indica que no dia 13.03.2011, já estava a desencadear-se esta patologia coronária consequentemente possibilitar-lhe o necessário tratamento a fim evitar-se a ocorrência da sua morte.

    - Ao não ter atuado de modo clinicamente relevante para detetar tal patologia da doente F…, nomeadamente, medir a sua tensão arterial, realizar os competentes exames complementares de diagnóstico, dado o historial de HTA e dor epigástrica recente que a mesma apresentava e de que era conhecedor, tratar ou encaminhar para outra Unidade de Saúde para os realizar o arguido omitiu os mais elementares deveres de cuidado que, segundo as circunstâncias e boa pratica médica, lhe eram exigíveis e que se impunha que observasse e era capaz na sua avaliação feita a 13.03.2011.

    - Também a arguida C…, ao atuar do modo descrito, exerceu a sua profissão com manifesta falta de cuidado que o dever de providência e as mais elementares regras de boa prática médica aconselham, uma vez que também não fez avaliação cardíaca alguma, nem qualquer tentativa de chegar à etiologia da provável síncope e do baixo registo de TA 96/64.

    - Mais, a arguida apenas relevou as consequências da queda que a paciente sofreu e nunca a sua causa, omitindo assim os mais elementares deveres de cuidado que, segundo as circunstancias lhe eram exigíveis e que impunha que observasse e era capaz, designadamente, realizar os meios complementares de diagnóstico que se impunha que realizasse e manutenção da doente em observação.

    - Ao atuarem do modo descrito, ambos os arguidos violaram as leges artis e contribuíram, desse modo, para a evolução negativa do quadro da paciente, colocando a sua vida em perigo, que em consequência dessa (não) atuação sofreu um enfarte do miocárdio e morreu.

    - Agiram livre e conscientemente e sabiam que as respetivas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

  3. O médico, como ensina João Álvaro Dias, “deve atuar de acordo com o cuidado, a perícia e os conhecimentos compatíveis com os padrões por que se regem os médicos sensatos, razoáveis e competentes do seu tempo”, exigindo-se-lhe “que atue com aquele grau de cuidado e competência que é razoável esperar de um profissional do mesmo «ofício» (especialista ou não especialista), agindo em semelhantes circunstâncias” - cfr. “Culpa médica: algumas ideias-força”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano IV, nº 5, págs. 21 e 23.

  4. Refere ainda o mesmo autor que “os médicos estão obrigados para com os seus doentes, quer pelos específicos deveres que resultam do contrato entre eles celebrado quer de um genérico dever de cuidado e tratamento que a própria deontologia profissional lhes impõe. Espera-se dos médicos, enquanto profissionais, que dêem provas de um razoável e meridiano grau de perícia e competência (…) Sempre que tal perícia e cuidado não são postos em prática, em termos de ser prestado um tratamento errado ou ser omitido o tratamento adequado, estamos perante uma atuação negligente” - ibidem, pág. 30.

  5. No contexto médico, a negligência consiste em deixar de fazer o que as legis artis impunham que fosse feito ou em deixar de atuar de acordo com aquele grau de cuidado e competência que seria de esperar de um médico da mesma especialidade, atuando nas mesmas condições.

  6. Não podemos aceitar que se considere admissível que, ao arrepio dos relatórios médicos existentes nos autos, e aos esclarecimentos dos peritos médicos prestados em audiência se considere admissível que numa pessoa que veio ao Serviço de Urgência com uma dor epigástrica e no dia seguinte após uma súbita falta de força cai e que é observada e está hipotensa, não implica a obrigação dos médicos que exercem funções nesse Serviço de Urgência de determinar a realização dos meios complementares de diagnóstico adequados a apurar doença do foro cardíaco.

  7. A não realização de qualquer meio complementar de diagnóstico, e a ausência de qualquer internamento com vista à observação da qual constasse monitorização cardio vascular, numa doente com os sintomas da vítima F… integra da parte dos arguidos um comportamento negligente penalmente relevante.

  8. A aceitação pelo médico de um doente cria para aquele um dever jurídico (posição de garante) de evitar a verificação de um evento danoso para a saúde e a vida deste. Aceitação que, em nossa opinião, é bastante que se traduza numa relação fáctica de cuidado assumido pelo médico perante o doente, capaz de fundamentar a proximidade sócio-existencial de um e outro. Tanto basta para que daqui derive a exigência de solidarismo que verdadeiramente está na base da relevância jurídico-penal da comissão por omissão, sem que interesse, em último termo, a validade ou subsistência do vínculo jurídico contratual.

  9. No âmbito médico, nas situações de imputação de um comportamento negligente, o estabelecimento do nexo de causalidade consiste na demonstração do encadeamento de alterações anátomo e fisiopatológicas desde a lesão diretamente resultante da conduta alegadamente faltosa até à lesão que configura o dano - nos crimes de resultado, entre a ação e o resultado deve mediar uma relação de causalidade, ou seja, uma relação que permita, no âmbito objetivo, a imputação do resultado produzido ao autor da conduta que o causou.

  10. No presente caso é manifesto, em nossa perspetiva que F… já cursava um enfarte do miocárdio na primeira deslocação ao Serviço de Urgência, e a completa ausência de tratamento que lhe foi dispensada constitui circunstância que impediu a sua sobrevivência, ou por outras palavras, tornou a sua morte um acontecimento inevitável.

  11. Existe nexo de causalidade entre a conduta dos arguidos e o resultado penalmente desvalioso.

  12. Com efeito, estando devidamente demonstrado que a ocorrência de um enfarte do miocárdio é reversível, ainda que por via de...

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