Acórdão nº 664/13.5TAPRD.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 12 de Outubro de 2016

Magistrado ResponsávelMANUEL SOARES
Data da Resolução12 de Outubro de 2016
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo nº 664/13.5TAPRD Comarca do Porto Este Instância Local de Paredes, Secção Criminal, J2 Acórdão decidido em Conferência no Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório 1.1 Decisão recorrida Por sentença proferida em 14 de Maio de 2015, a Sra. Juiz do Tribunal recorrido decidiu condenar as arguidas B… e C… Lda., por um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto nos artigos 107º nº 1 e 105º nºs 1, 2 e 7 da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho (doravante RGIT), respectivamente, nas penas de 200 dias de multa, à taxa diária de 10 euros e de 250 dias de multa, à taxa diária de 20 euros. As arguidas foram ainda condenadas a pagar solidariamente ao Instituto da Segurança Social, I.P. a indemnização de 76.154,77 euros, correspondentes às contribuições em dívida à Segurança Social, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal.

1.2 Recurso A arguida B… não se conformou com a sentença e interpôs recurso. Pediu que seja declarada a nulidade decorrente da deficiência do registo da prova, impeditiva do exercício completo do direito de impugnar o julgamento da matéria de facto. Subsidiariamente, pediu que a sentença seja revogada e a arguida absolvida, por erro de julgamento da matéria de facto.

No essencial, motivou o recurso invocando o seguinte: (resumo nosso) - Os depoimentos registados em gravação áudio são em larga medida imperceptíveis e não permitem indicar as passagens da gravação que alicerçam a discordância do julgamento da matéria de facto. Isso constitui nulidade, que pode ser invocada nas alegações de recurso e que, a ser decretada, conduzirá à necessidade de repetir os respectivos depoimentos.

- O tribunal considerou provado, em resumo, que recorrente exercia as funções de gerência de facto e de direito da sociedade arguida, sendo responsável por toda a sua actividade e decidindo, nomeadamente, sobre a afectação dos meios financeiros necessários aos pagamentos das prestações sociais previstas na lei, e que foi ela quem efectuou nos salários dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais o desconto das contribuições devidas à segurança social e não procedeu à entrega dos respectivos montantes àquela instituição, querendo alcançar para si e para a sociedade arguida benefício patrimonial ilegítimo. E considerou não provado que a recorrente nunca tomou decisões na vida da sociedade, cabendo, em exclusivo, à sua mãe a gerência da mesma.

- As declarações da arguida recorrente e os depoimentos das testemunhas D…, E…, F… e G… não permitem concluir, de acordo com as regras de avaliação da prova, que a gerência de facto pertencesse à recorrente e que tivesse sido esta quem tomou a decisão de reter os montantes que deveriam ter sido entregues à segurança social.

- Houve violação grosseira do princípio in dubio pro reo, que constitui erro de julgamento e erro notório na avaliação da prova.

1.3 Resposta do Ministério Público O Ministério Público respondeu alegando, em síntese, o seguinte: (resumo nosso) - A gravação da prova apresenta uma fidelidade razoável e permite captar sem qualquer esforço a integralidade dos depoimentos.

- Em qualquer caso, a invocação da nulidade é extemporânea, face à jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 13/2014, segundo o qual tinha de ser arguida perante o tribunal de primeira instância, no prazo de 10 dias a contar da data da sessão da audiência em que o vício se verificou, descontado o tempo entre o requerimento e a entrega da cópia da gravação.

- Não foi dado cumprimento pela recorrente ao disposto no artigo 412º nº 3 als. a) e b) do Código de Processo Penal[1], uma vez que nas conclusões do recurso não se indicam as “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”.

- Não houve erro de julgamento da matéria de facto. A própria arguida admitiu em julgamento que tinha a gerência de facto da empresa.

1.4 Parecer do Ministério Público na Relação O Ministério Público, nesta Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, remetendo, no geral, para os argumentos expostos na resposta ao recurso.

  1. Questões a decidir no recurso Começaremos pela questão prévia da arguição de nulidade, pois a decisão que se tomar pode condicionar a apreciação do mérito do recurso.

    Em função do que decidirmos a propósito da questão anterior, veremos, em segundo lugar, se a motivação do recurso está inquinada pela deficiência apontada pelo Ministério Público na resposta e se isso deve obstar à apreciação do mérito.

    Por fim, se as questões anteriores forem ultrapassadas, teremos de ver se houve erro de julgamento da matéria de facto e se tiver havido retirar daí as devidas consequências, no plano dos factos e do direito.

  2. Fundamentação 3.1. Arguição de nulidade processual Devemos começar por dizer que ouvimos o registo das declarações da arguida e dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência e verificámos que, no essencial, tirando uma ou outra pequena passagem irrelevante, são audíveis e compreensíveis. Pudemos perceber sem excessiva dificuldade o conteúdo de quase todas as passagens que na transcrição da recorrente são dadas como imperceptíveis. Há uns momentos com maior ruído de fundo, outros em que as conversas se sobrepõem e outros, até, com “apartes” dos depoentes, mas isso não prejudica minimamente a sua inteligibilidade geral.

    De todo o modo, como bem salienta o Ministério Público na resposta ao recurso, a arguição de nulidade é intempestiva.

    Os depoimentos alegadamente imperceptíveis foram prestados nas audiências de 9ABR2015 e 21ABR2015 (fls. 564 e 583). A sentença foi lida em 14MAI2015 e só em 12JUN2015, quase um mês depois, a recorrente pediu a entrega de cópia das gravações, pedido que foi satisfeito no mesmo dia (fls. 635 e 636). Só veio a arguir a nulidade no recurso interposto em 16JUN2015 (fls. 637).

    A nulidade invocada é a prevista no artigo 363º. O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão para fixação de jurisprudência nº 13/2014, de 3JUL2014[2], decidiu que “a nulidade prevista no artigo 363º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal de 1ª instância, em requerimento autónomo, no prazo de 10 dias, a contados da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do nº 3 do artigo 101º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada”.

    Ora, a recorrente não respeitou aquele prazo de 10 dias, contado a partir das sessões da audiência, ressalvado o tempo de entrega dos registos, para poder verificar a inteligibilidade do registo da prova e eventualmente invocar a sua nulidade perante o tribunal de primeira instância. Não vemos razão para divergir da interpretação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que consideramos que uma eventual nulidade, a ter ocorrido, se mostra agora sanada por causa da intempestividade na sua arguição e já não pode ser invocada como fundamento de recurso.

    3.2. Vício formal nas alegações de recurso O Ministério Público alegou na resposta ao recurso que a recorrente não cumpriu devidamente o ónus de especificar nas conclusões as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Notificada a recorrente nos termos do artigo 417º nº 2, nada disse. Como estamos no momento do exame preliminar previsto no número 3 desse artigo, devemos explicar as razões que nos levaram optar por decidir já o mérito do recurso em vez de convidar a recorrente a aperfeiçoar as suas conclusões.

    Não há dúvida de que o ónus de especificação nas conclusões dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e das concretas provas que impõem decisão diversa não foi rigorosamente observado. Essas especificações, no entanto, constam na motivação do recurso com suficiente clareza. Na verdade, alega-se aí que foi erradamente considerado provado que a recorrente exercia as funções de gerência de facto e de direito da sociedade e que foi responsável pelas decisões de descontar as contribuições sociais nos salários dos trabalhadores e dos membros dos órgãos sociais e de não proceder à respectiva entrega à segurança social. Diz-se ainda que as declarações da arguida e os depoimentos das quatro testemunhas identificadas – todos transcritos na motivação – não sustentam os referidos factos, visto existir pelo menos uma dúvida insanável sobre a sua veracidade.

    O artigo 417º nº 3 dispõe que se das conclusões de recurso não for possível deduzir as indicações do previstas nos números 2 a 5 do citado artigo 412º, o recorrente é convidado a completá-las ou esclarecê-las, sob pena de rejeição ou não conhecimento do recurso na parte afectada. Concedemos que numa interpretação rigorosa dos formalismos legais referidos, a que a jurisprudência corrente dos tribunais superiores vem aderindo de forma constante, poderia haver lugar àquele convite. Porém, optámos por não o fazer por consideramos que isso não teria outro efeito que não fosse o de provocar um acto processual redundante e inútil.

    Temos de ter em conta que nos casos em que a impugnação do julgamento da matéria de facto em primeira instância se funda na violação do princípio in dubio pro reo, a indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da impugnada não é possível com o mesmo grau de precisão. Em situações de dúvida sobre a veracidade do facto, muitas vezes a desconformidade entre o facto provado e a prova não é identificável em passagens específicas de certos depoimentos, das quais resulte o contrário do que se provou. Essa dúvida decorre normalmente da ausência de prova que sustente o facto. Se no recurso se invoca que o conteúdo dos depoimentos não permite dar certo facto como provado, naturalmente não pode ser exigido ao recorrente que identifique as partes específicas dos depoimentos onde se verifica aquela...

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