Acórdão nº 44/1999.E2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Setembro de 2014

Magistrado ResponsávelMARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Data da Resolução18 de Setembro de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA e mulher, BB, instauraram uma acção contra CC e DD e o Município de Setúbal, pedindo que lhes fosse restituída a posse do caminho que identificam, que lhes fosse reconhecido “o direito de vedação e tapagem do seu prédio rústico” e que os réus fossem “condenados a absterem-se de usar o caminho particular dos AA e de praticarem todos os demais actos que configurem violação do direito de propriedade de que são titulares os AA como legítimos donos e possuidores do terreno”.

Quanto ao segundo réu, pediu ainda a sua condenação “a repor o caminho na sua configuração original, antes das obras por ele levadas a cabo e [a] reconstituir o pilarete por ele demolido”.

Em síntese, alegaram que a ré vem utilizando abusivamente um caminho particular integrado no prédio de que são proprietários, para chegar a uma casa que construiu num terreno de sua propriedade, situado a sul do prédio dos autores; e que o réu Município de Setúbal, alegando tratar-se de um caminho público, invadiu abusivamente o seu terreno, abriu “um caminho com a largura de 3 metros” e demoliu um pilarete existente na sua propriedade.

CC e DD contestou, sustentando, nomeadamente, a ineptidão da petição inicial e tratar-se de uma serventia, “por onde sempre transitaram, desde há mais de 50 (…) anos, camiões de toda a tonelagem”.

Em reconvenção, pediram o pagamento de uma indemnização de 6.000.000$00, pelos danos decorrentes, “designadamente, [d] a impossibilidade (…) de usar a servidão da sua propriedade, durante 6 (…) meses” e a condenação dos autores como litigantes de má fé.

O Município de Setúbal também contestou. Em particular, invocou a incompetência dos tribunais judiciais “para conhecer o pedido dos AA relativo à aferição de responsabilidade e condenação da Câmara Municipal à reposição do caminho e pilaretes do portão” e sustentou a natureza pública do caminho em discussão. Em reconvenção, pediu a condenação dos autores no reconhecimento de que “o caminho que sai da E.N…. e atravessa a sua propriedade até à Igreja de S Pedro de … é público, pelo que não têm direito a vedá-lo ou tapá-lo”.

Os autores responderam à reconvenção deduzida pela ré CC e DD e ao pedido de condenação por litigância de má fé, sustentando a respectiva improcedência, e também à contestação do réu Município de Setúbal.

No despacho saneador foram indeferidas as excepções de ineptidão e de incompetência.

A acção e a reconvenção da ré CC e DD foram julgadas improcedentes pela sentença de fls. 806, que julgou procedente a reconvenção do Município de Setúbal; mas esta sentença veio a ficar sem efeito, em consequência da anulação do processado, determinada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de fls. 1051.

Repetidos os actos devidos, veio a ser proferida a sentença de fls. 1149, julgando procedente a acção e “condenando os RR. CC e DD, e Município de Setúbal a restituir aos AA. AA e BB a posse do caminho identificado nos autos e a reconhecer-lhes o direito de vedação e tapagem do seu prédio, abstendo-se de praticar actos que violem esse direito. Condena-se ainda o R. Município de Setúbal a repor o dito caminho na configuração anterior à sua intervenção no mesmo e a reconstruir o pilarete por si demolido” e “improcedentes os pedidos reconvencionais formulados pelos RR.”.

O tribunal, dando como assente “que o caminho se destina a satisfazer interesses colectivos relevantes, porque utilizado para aceder à capela pelos habitantes de Aldeia …, capela que é a única dessa localidade e local onde se realiza a festa anual da mesma, sendo certo que os habitantes da mesma atribuem importância a tal capela”, entendeu que a prova da utilização “há mais de 60 anos” impede que o caminho reúna “os requisitos necessários para que se possa qualificar de público” e obriga a tê-lo como um mero atravessadouro e a reconhecer o direito invocado pelos autores.

A sentença foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de fls. 1326, por não ter “ficado provado o uso do caminho desde tempos imemoriais (cfr. respostas restritivas aos artºs 58º, 66º e 67º da BI)”, por não se poder ter como imemorial um uso que existe apenas “há mais de 60 anos”.

  1. O Município de Setúbal recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça; e o recurso veio a ser admitido na sequência da reclamação deduzida contra o despacho de não admissão de fls. 1512, pela decisão deste Supremo Tribunal de fls. 59 do apenso.

    Nas alegações que apresentou, o recorrente formulou as seguintes conclusões: «

    1. A única questão em que o recorrente sustenta a sua inconformação com o douto acórdão recorrido, restringe-se à qualificação, em face da factualidade dada como assente, do uso público que vem sendo dado ao caminho como "imemorial".

    2. Conforme tem vindo a ser reconhecido pela jurisprudência, o uso "imemorial" é aquele cuja origem não é atingível pela memória dos viventes, ou seja, as situações cujo início se perca no tempo e ultrapasse a memória das pessoas vivas.

    3. No presente caso, deu-se como provado que o uso público do caminho remonta "há mais de 60 anos", o que, à data do julgamento corresponde a "há mais de 73 anos", ou seja, no limite da memória possível das pessoas vivas.

    4. A referência à expressão "há mais de", só por si já significa uma impossibilidade de determinar em concreto a origem de um determinado facto, situação ou acontecimento, o que, também só por si, tendo em conta que se indica um período de tempo próximo do limite da memória possível, já significa que tal origem está para além da memória dos homens, isto é, que é, nos termos da jurisprudência unânime, "imemorial".

    5. Por outro lado, conforme foi dado como provado, tal caminho constituía o único acesso directo, para veículos de 4 rodas, para quem se deslocasse à igreja e ligava a Estrada Nacional N° … à Capela de São Pedro de ….

    6. Sendo a via de circulação, que hoje constitui a Estrada Nacional N° …, de origem "imemorial" e remontando notoriamente a construção da Capela em causa nos autos aos sécs. XVIII ou XIX, tendo, assim, também uma origem "imemorial", forçoso é concluir que o caminho, sendo a exclusiva ligação para veículos de 4 rodas daquelas duas realidades "imemoriais", "imemorial" terá de ser considerado.

    7. Desse modo, concorrendo também no caminho em causa o requisito de imemorialidade do seu uso público', ter-se-ia de lhe ser atribuída e reconhecida a natureza jurídica de caminho público.

    8. Ao assim não decidir o douto acórdão recorrido, e ao atribuir ao caminho em causa uma natureza de mera atravessadouro, fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artºs 1383° e 1384° do Código Civil e do acórdão uniformizador da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/89, devendo por tal, ser revogado.» Os recorridos foram notificados da interposição de recurso; mas só vieram a juntar contra-alegações depois de julgada a reclamação deduzida contra a não admissão do recurso.

    É certo que, de acordo com o regime aplicável, as contra-alegações deveriam ter sido apresentadas dentro do prazo previsto no nº 5 do artigo 638º do Código de Processo Civil; no entanto, tendo em conta as divergências verificadas no processo, precisamente quanto à determinação de qual o regime aplicável, e à luz do princípio que informa o artigo 3º da Lei nº 41/2913, de 26 de Junho, admitem-se as contra-alegações, que apenas em 26 de Junho de 2014 deram entrada no Tribunal da Relação de Évora.

    Nas contra-alegações, os autores voltaram a sustentar a intempestividade do recurso de revista, apesar de ter sido deferida a reclamação, como se viu já, por decisão da qual os autores não reclamaram e que, portanto, se consolidou (cfr. nº 4 do artigo 643º do Código de Processo Civil). Está pois resolvida a questão da tempestividade do recurso de revista. Apenas se acrescenta que o nº 6 do artigo 638º do Código de Processo Civil pressupõe que as contra-alegações foram apresentadas antes da decisão sobre a admissibilidade do recurso, o que, aqui, não sucedeu e observa-se de novo que a decisão recorrida, na revista, é o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14 de Novembro de 2013; é, portanto, posterior à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, cujo regime se lhe aplica (salvo quanto à dupla conforme).

    Quanto à questão de fundo, os recorridos observam que o objecto do recurso “resume-se ao conceito de imemorabilidade do caminho, como requisito para a verificação da sua dominialidade, fundamentando as suas alegações, essencialmente, no acórdão do STJ de 13.01.2004, proferido no Recurso de Revista nº 3433/03 (…)”; mas que “quer o sumário, quer a matéria dada como provada, quer os fundamentos de direito dele constantes sobre o conceito de ‘imemorabilidade’ são contrários aos...

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