Acórdão nº 399/04.0TVLSB.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 13 de Novembro de 2009

Magistrado ResponsávelFONSECA RAMOS
Data da Resolução13 de Novembro de 2009
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : I – No regime da propriedade horizontal conflui um feixe de direitos de que é titular o proprietário de fracção autónoma, [sem que tal situação se confunda com a compropriedade]; a titularidade de um direito de propriedade exclusivo, relativamente à fracção autónoma, e compropriedade com os demais condóminos, relativamente às partes comuns.

II – O regime de autorização precária é excepcional, revogável a todo o tempo pela Administração, visando um concreto fim que não pode ser ultrapassado. Sendo os actos precários revogáveis a todo o tempo, foi abusiva a utilização da licença administrativa para a Ré fazer obras não objecto da licença concedida em 1955, dispensando-se de observar os preceitos imperativos do RGEU.

III – O Assento do STJ, de 10.5.1989 – (DR, II série, nº141, de 22.6.1989, in DR, I série, de 15.9.1989, hoje, com o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos arts. 732. °-A e 732. °-B, ambos do Código de Processo Civil, por força do art. 17. °-2 do DL nº329. °-A/95, de 12-12), versou sobre um caso em que houve violação do destino de fracção autónoma, em infracção a projecto aprovado por uma Câmara Municipal, mas, por maioria de razão, a sua doutrina é aplicável ao caso dos autos em que as obras foram realizadas sem projecto e ao abrigo de uma licença precária que as não podia consentir, por não poder derrogar preceitos cogentes do RGEU.

IV – A expressão “ a falta de requisitos legalmente exigidos” que consta no art. 1416º,nº1, do Código Civil, abrange não só os enumerados no art. 1415º, mas também os “concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas”, que são de interesse e ordem pública.

A ofensa a preceitos regulamentares do interesse geral e ordem pública, cogentes, implica nulidade, nos termos do art. 294.° do Código Civil.

V – Declarando-se a nulidade parcial do título constitutivo no que respeita à fracção “O”, cujo logradouro era parte comum e foi pelo Réu destinado a oficina de reparação de automóveis, tendo privado da sua área integral os condóminos, implica que esse logradouro tenha de ser considerado parte comum do condomínio.

VI – A declaração de nulidade parcial do título constitutivo tem efeito retroactivo, pelo que os condóminos se tornaram retroactivamente comproprietários daquela parte comum, de acordo com a permilagem de cada fracção.

VII – O facto de a situação retroagir à data em que os AA. se tornaram donos das fracções do prédio nada tem de enriquecimento, a menos que se pudesse considerar que ao adquirirem as fracções, teriam pago um preço que não contemplava aquele logradouro como parte comum do imóvel, facto que não está demonstrado nos autos.

VIII – Para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, seria necessário, in casu, que a conduta dos Autores fosse no sentido de criar, razoavelmente, no Réu uma expectativa factual, sólida, de que não intentariam a acção por se conformarem com a situação que para eles perdura desde 1990.

IX – Se alguém obtém, aquilo que lhe pertence à custa do lesante, não enriquece sem causa, mas tão só vê reintegrado o seu património; não existe empobrecimento daquele que lesava porque não tinha o direito que se arrogava, nem enriquecimento do lesado que se vê restituído ao seu pleno direito, que estava a ser perturbado pela actuação ilícita do alegado empobrecido.

X – A interpretação conforme à Constituição, tem lugar sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição e implica que se excluam as possibilidades de interpretação consideradas inconstitucionais.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA e mulher BB instauraram, em 14.1.2004, pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa – 7ª Vara Cível – acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra: CC e mulher EE, FF e mulher, GG, HH, II, JJ, KK, LL MM, NN, OO e mulher PP, QQ., RR e SS.

Pedindo que: a) Seja declarada a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio situado na Av. ......., n°s ....... a ......, em Lisboa, na parte em que foi constituída a fracção “O”; b) Seja declarada a nulidade parcial do correspondente registo predial no que respeita a essa fracção e seja ordenado que o mesmo seja parcialmente anulado quanto a tal fracção; e) A hoje denominada fracção “O” fique sujeita ao regime da compropriedade e com o destino que lhe foi imposto pela Câmara Municipal de Lisboa.

Para tanto alegaram, em resumo, que: - A.A. e R.R. são proprietários das diversas fracções autónomas que constituem o prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Av. ......., n°s. ........., em Lisboa; - Esse prédio já se encontrava construído em 1950 e com alguns dos seus fogos habitacionais arrendados; - Em 14 de Agosto de 1953, a então proprietária, Caixa Sindical de PPIC, hoje designada SS, deu de arrendamento à Sociedade de Casas Económicas, SARL, o pátio (logradouro) e garagem do prédio; - Em 19 de Abril de 1965, esta veio a requerer à Câmara Municipal de Lisboa, a título precário, uma licença para cobertura do logradouro; - Essa licença veio a caducar e terminou no indeferimento de todo o licenciamento da obra que correu pela Câmara Municipal de Lisboa; - Mas o projecto de cobertura do pátio acabou por ser executado e o logradouro que possuía uma área descoberta de 594,50m2, hoje, em função do que se designa de fracção “O” e das obras ilegais que lhe deram origem, não possui mais do que 253,5m2; - Essa construção está a servir de oficina de automóveis, contendo uma estufa de pintura e secagem industrial e outros equipamentos pesados e perigosos, usados na manutenção e reparação de veículos automóveis, pondo em risco a segurança e saúde pública; - Essa actividade também não está autorizada e licenciada; - Em 26 de Março de 2002, a actual arrendatária, VV - Comércio e Reparação de Automóveis, SA, procurou obter uma licença de utilização para a construção clandestina em apreço, tendo o respectivo processo voltado a ser indeferido pela Câmara Municipal de Lisboa; -O R. SSl, em 6 de Março de 1990, procedeu à constituição do prédio em propriedade horizontal, transformando aquela construção numa fracção autónoma, designada de fracção “O”, pelo que se verifica uma nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal.

Pessoal e regularmente citados os R.R. com a cominação legal, apenas os R.R. S.A. e SS contestaram, nos seguintes termos: Ré RR, S.A., dizendo, no essencial, que: - A Ré celebrou um contrato de locação financeira com TT, o qual teve por objecto a fracção de que é proprietária, sendo que aquele é o único e exclusivo utilizador da referida fracção; - Desconhece os factos alegados pelos A.A. e nada tem a ver com eles.

Requereu, ainda, a intervenção provocada de TT.

SS contestou: Por excepção dilatória: - O Tribunal competente em razão da matéria é o Tribunal Administrativo, porquanto o R., quando constituiu a propriedade horizontal, fê-lo no âmbito das suas competências próprias como instituto público, gozando das prerrogativas que lhe eram concedidas pelo Decreto-Lei n°141/88, de 22 de Abril; Por excepção peremptória: - O prédio dos autos foi construído antes do RGEU, podendo, por isso, ser-lhe dada a utilização que o proprietário entendesse, sem carecer de licença de utilização camarária; - Se actualmente a área descoberta do logradouro não possui mais do que 253,5 m2, isso deve-se a uma alteração do título constitutivo da propriedade horizontal levada a cabo pelo único proprietário do prédio, na altura, o que fazia parte dos seus poderes como proprietário da totalidade do edifício; - Os posteriores adquirentes das fracções autónomas tinham a plena consciência, quando adquiriram as fracções, do espaço comum do logradouro que lhes cabia e da constituição da fracção “O”, assim como das permilagens correspondentes, incluindo a da fracção “O”, que já existia na altura da aquisição efectuada pelos actuais proprietários, incluindo o A; Por impugnação: - Existiu uma licença passada pela Câmara Municipal de Lisboa para a construção do logradouro, que foi iniciada em 1955, e o indeferimento da Câmara Municipal de Lisboa reporta-se ao projecto apresentado em finais de 1966, que visava alterar toda a estrutura do prédio com o acrescento de mais três pisos, ficando o edifício com 8 pisos, sendo aumentado em mais dois e construído um outro mais recuado, projecto que nunca foi executado; -Se a Câmara Municipal de Lisboa tivesse considerado a estrutura uma obra ilegal, tê-la-ia mandado demolir, o que não fez.

Termina pela procedência da excepção dilatória, com a consequente absolvição do R; pela improcedência da acção, com a consequente absolvição do R. dos pedidos, e pede que os A.A. sejam condenados como litigantes de má fé em multa e indemnização a liquidar em execução de sentença.

Os A.A. apresentaram réplica, na qual pugnam pela improcedência da excepção de incompetência material e da excepção peremptória, reiterando a procedência da acção.

Por despacho de fls. 224, foi indeferida a intervenção provocada requerida pela Ré RR S.A.

Realizada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador – no qual foi julgada improcedente a excepção de incompetência em razão da matéria deduzida pelo R. SS –, e seleccionada a matéria de facto tida por pertinente, com a elaboração dos factos assentes e a organização da base instrutória, tendo ulteriormente, no início da audiência de discussão e julgamento, sido alterada a redacção dada às alíneas AC) e AD) dos Factos Assentes e ao Quesito 9° da Base Instrutória.

Tendo falecido na pendência da presente acção o R. NN, por decisão de fls. 818, veio a ser julgada habilitada para prosseguir a acção no lugar daquele R., UU.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, perante...

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