Acórdão nº 102/16 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Fevereiro de 2016

Magistrado ResponsávelCons. João Pedro Caupers
Data da Resolução23 de Fevereiro de 2016
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 102/2016

Processo n.º 676/15

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Pedro Caupers

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

  1. O Ministério Público e a A. recorreram para o Tribunal Constitucional da Sentença do Tribunal da Comarca de Lisboa – Instância Central – 1.ª Secção Cível – J20 que, julgando procedente a ação de anulação de decisão arbitral, decidiu «não aplicar o disposto no art.º 7º n.º 3 do DL 333/97, de 27.11, por organicamente inconstitucional, por violação do disposto no art.º 165º n.º 1 alínea p) da CRP» (fls. 914).

    O recurso do Ministério Público é obrigatório, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, todos da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional (doravante, “LTC”) (fls. 919).

    No seu recurso, a A. peticiona que o Tribunal Constitucional julgue a norma em causa não inconstitucional (fls. 927/928).

  2. Admitidos os recursos, foram as partes notificadas para alegar, o que todas fizeram.

  3. As alegações do Ministério Público concluem do seguinte modo:

    (…)

    O presente recurso de constitucionalidade do Ministério Público tem por objeto a douta sentença da 11ª Vara Cível de Lisboa, de 23 de Abril de 2015, no segmento em que recusou a aplicação da norma contida no art. 7º, nº 3 do DL 333/97, de 27 de Novembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no art. 165º, nº 1, al. p) da Constituição.

    Questão Prévia

    Questão suscitada no requerimento alegatório de recurso apresentado pela Ré: a sentença, objeto do presente recurso, ao conhecer da inconstitucionalidade orgânica da norma contida no art. 7º, nº 3 do DL 333/97, violou caso julgado formado no processo com o Acórdão saneador arbitral, proferido em 12 de Outubro de 2011, exceção dilatória que o Tribunal Constitucional deverá oficiosamente conhecer, não admitindo, em consequência, o recurso.

    O recurso de constitucionalidade respeita necessariamente a questões de inconstitucionalidade normativa (arts. 280º, nº 6 da CRP e 71º, nº 1 da LOFPTC), tendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, com uniformidade, afirmado que lhe não cabe intrometer-se na correção das decisões das instâncias, conhecendo da inconstitucionalidade ou da ilegalidade da decisão judicial em si mesma.

    A Ré, ao alegar que a sentença recorrida, ela mesma, insofrivelmente padece de nulidades e inconstitucionalidade, questões que exorbitam do poder de cognição do Tribunal Constitucional, tal alegação apenas poderá fundar recurso para a Relação, que no caso caberá (quanto às primeiras, conforme art. 615º, nº 4 do CPC).

    A Ré oferece, paralelamente, uma dimensão normativa da sentença recorrida: inconstitucionalidade, não da sentença em si mesma, mas da interpretação que nela é feita do artigo 27°, n° 1, alínea a), da LAV de 1986, violadora do princípio da intangibilidade do caso julgado, inerente ao modelo de Estado de direito democrático.

    Acontece que a alegada dimensão normativa da sentença recorrida, podendo, porventura, determinar a não admissão do presente recurso e o seu não conhecimento, não foi objeto de recurso para o Tribunal Constitucional, não devendo, portanto, em princípio, ser por este apreciada.

    A questão, ademais, não poderia ser objeto de recurso para o Tribunal Constitucional: tratar-se-ia de recurso apenas passível de ser enquadrado na alínea b) do nº 1 do art. 70º da LOFPTC e, como tal, condicionado ao prévio esgotamento dos meios recursórios ordinários (nº 2 do mesmo artigo), no caso cabendo recurso para a Relação, como referido.

    Importa, todavia, saber – como vem defendido pela Ré, invocando diversos arestos do Tribunal Constitucional –, se, não obstante, deverá o Tribunal Constitucional oficiosamente conhecer da questão da violação de caso julgado, nos termos conjugados dos arts. 69º da LOFPTC e 578º do CPC (art. 495º do CPC de 1961), à margem, portanto, do quadro recursório definido nas diversas alíneas do nº 1 do art. 70º, bem como nos arts. 71º, nº 1 e 79º-C, todos da LOFPTC.

    O que em todos os invocados arestos – e a que, naturalmente, é dada resposta positiva – é uma questão distinta, a possibilidade de o Tribunal Constitucional sindicar a eventual violação de caso julgado relativamente às suas próprias decisões anteriormente proferidas no processo, nos termos do nº 1 do art. 80º da LOFPTC.

    Não estando em causa no presente recurso alcance de decisão proferida pelo próprio Tribunal Constitucional anteriormente no processo, não compete a este, à margem do quadro recursório estabelecido nos citados arts. 70º, nº 1, 71º, nº 1 e 79º-C da LOFPTC, e como questão prévia, conhecer do acerto, da nulidade ou da inconstitucionalidade, designadamente por violação de caso julgado, da sentença recorrida.

    Improcede, deste modo, a questão prévia suscitada relativamente à inadmissibilidade do recurso, nada parecendo que deva obstar ao conhecimento do seu objeto.

    Do Objeto do recurso

    Estabelece o nº 3 do art. 7º do DL 333/97 que a resolução de litígio em matéria de autorização da retransmissão por cabo fica sujeita a arbitragem – arbitragem necessária –, cuja disciplina, nada vindo aí especialmente determinado, é remetida para as disposições gerais constantes dos arts. 1082º a 1085º do CPC (arts. 1525º a 1528º do CPC de 1961) e, por via deste último artigo, para a LAV.

    A resolução de litígio por via arbitral, prevista no nº 3 do art. 7º do DL 333/97, não é matéria coberta pela Lei 99/97, de 3 de Setembro, lei de autorização legislativa ao abrigo da qual aquele diploma foi emitido, nem integra a Diretiva 93/83/CEE, que o mesmo diploma visou transpor.

    O preceito em causa procede, desse modo, à instituição – instituição inovatória – de uma dada instância arbitral necessária, cuja competência é unicamente definida em razão da matéria (litígio em matéria de autorização da retransmissão por cabo).

    A instituição da nova instância arbitral não se reconduz, nem se confunde, com a criação de uma determinada instância em concreto – cada um dos novos casos que a ela passará a estar sujeito é que criará em concreto a sua própria instância (diferentemente do que ocorre no sistema jurisdicional do Estado, em que, em razão da matéria, do território e da hierarquia, se assiste à criação ou à extinção de cada tribunal em concreto).

    Vem no processo defendida a constitucionalidade da criação da nova instância arbitral pelo nº 3 do art. 7º do DL 333/97, interconexionada com a competência dos tribunais do Estado, à luz de uma visão, dita gradualista, presente na jurisprudência constitucional.

    A criação da nova instância arbitral pelo nº 3 do art. 7º do DL 333/97, desde logo pela total ausência aí verificada de disciplina especial em matéria de organização e de sindicabilidade das suas decisões, não suscita questões de constitucionalidade quanto ao direito de acesso aos tribunais e ao princípio de tutela jurisdicional efetiva, matéria que não está em causa no recurso.

    Importa acentuar que a LC 1/89 aditou no final da alínea p) do nº 1 do art. 165º da Constituição [nas numerações e redações anteriores, sucessivamente, alínea j) do nº 1 do art. 167º e alínea q) do nº 1 do art. 168º] o segmento «… , bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos»: passou, então, a ficar claro que a instituição e definição da competência de tribunal arbitral, obrigatório ou voluntário, é matéria da reserva relativa da Assembleia da República.

    Examinada a génese e o quadro de desenvolvimento da denominada tese ou visão gradualista, verifica-se que ela corresponde a uma etapa histórica da jurisprudência constitucional, de superação da tese de que os tribunais arbitrais não podiam, sem mais, ser considerados abrangidos pela reserva da competência da Assembleia da Republica estabelecida na alínea q) do n.º 1 do artigo n.º 168.º da Constituição [precedentemente, alínea j) do nº 1 do art. 167º; na redação atualmente vigente, alínea p) do nº 1 do art. 165º].

    Tal jurisprudência, ao acolher a possibilidade de divergências conceptuais acerca da natureza dos tribunais arbitrais e de valorações diversas quanto ao seu relacionamento com os tribunais estaduais, faculta o ingresso daqueles na zona de reserva de competência da Assembleia da República, mas de modo indireto ou reflexo e com conta, peso e medida – «a reserva do artigo 168º, alínea q), ainda aí opera indiretamente, na medida em que exige uma intervenção da Assembleia da República sempre que a legislação sobre aqueles tribunais afecte ou contenda com a definição da competência dos tribunais estaduais. Com a definição dessa competência - bem entendido - naquele nível ou grau em que ela entra na reserva parlamentar - e que não será um qualquer» (da declaração de voto junta ao Ac. 230/86, reiteradamente transcrito na jurisprudência considerada).

    Após a integração expressa das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos na previsão final da alínea p) do nº 1 do art. 165º da Constituição, através da LC 1/89, deixou de ter sustentação na clareza da letra constitucional a tese em causa (in claribus non fit interpretatio).

    A delimitação da reserva de competência da AR passa a ser claramente determinada não por razão de poder judicial (tribunais do Estado, enquanto «órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo» - nº 1 do art. 202º da CRP), mas por razão de função judicial (nesta naturalmente englobadas as entidades não jurisdicionais de composição de conflitos).

    Conclui-se, deste modo, que, o nº 3 do art. 7º do DL 333/97, ao instituir uma nova instância arbitral necessária para resolução de litígios em matéria de autorização da retransmissão por cabo, não coberta pela autorização contida na Lei 99/97, sofre de vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea p) do nº 1 do art. 165º da Constituição.

    O vício de inconstitucionalidade orgânica que inquina o nº 3 do art. 7º do DL 333/97 não se...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
1 temas prácticos
1 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT