Acórdão nº 08P1401 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Junho de 2008

Magistrado ResponsávelFERNANDO FRÓIS
Data da Resolução12 de Junho de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: No 2º Juízo Criminal da comarca de Oeiras e no processo comum nº 1785/05.3, foi submetido a julgamento perante Tribunal Singular, o arguido: - AA, identificado nos autos.

Era-lhe imputada a prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º-1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência ao artigo 21º do mesmo diploma legal.

A final, foi proferida sentença que absolveu o arguido do ilícito que era imputado.

Inconformado com tal absolvição, o Exmº Magistrado do MºPº interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando pela revogação da sentença recorrida e pela condenação do arguido.

Por acórdão de 06 de Março de 2008, o Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso e decidiu que o arguido cometeu um crime p.e p pelo art.º 25.º alínea a) do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C do diploma, condenando-o na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, cuja execução se declarou suspensa pelo período de 3 (três) anos.

Inconformado com esse Acórdão da Relação de Lisboa, o arguido AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela respectiva revogação e pela sua absolvição.

Termina a respectiva motivação, com as seguintes conclusões: CONCLUSÕES: 1. A tese sufragada pelo Tribunal da Relação de Lisboa ofende gravemente os princípios da tipicidade e da culpa.

  1. A tese de que, após a entrada em vigor do "mencionado diploma, da conjugação dos art°s 21°, 25° e 40° do D.L. nº 15/93 e dos arts. 2° nºs 1 e 2, e 28° da Lei n° 30/2000, resulta que as situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias, é sancionada como um ilícito criminal seja por via do art° 21°, seja por via do artº 25°, seja, se estiver reunido o cabido condicionalismo, por via do art° 26°, todos do D.L. nº 15/93", a fls... do aludido Acórdão, é violadora dos princípios da necessidade da pena e da culpa, assim como de diversos preceitos constitucionalmente consagrados.

  2. Constitui uma autêntica violação do princípio da culpa, dado que ao arguido, por tais normas abrangerem um crime de perigo, está vedada a possibilidade de o arguido fazer contraprova do perigo, e de demonstrar que não actuou com dolo de perigo (de tráfico); pelo que estão a ser violados, com tal interpretação, os preceitos constitucionais - artigos 1º e 27°, nº 1, da Constituição, assim como o princípio da legalidade, artigo 29° n° 1 da C.R.P. (nullum crimen sine legem).

  3. E, tendo sido provado que o cannabis detido pelo arguido destinava-se exclusivamente ao consumo, subsiste, absurdamente e com violação do princípio da culpa, uma presunção inilidível de tráfico.

  4. Ou, caso contrário, está-se perante uma mera proibição de detenção de droga "in se", sem referência à protecção de bens jurídicos concretos, o que coloca obviamente em causa o princípio da necessidade da pena (consagrado no artigo 18°, nº 2, da Constituição, e assim violado com a aplicação de tais preceitos criminais).

  5. A aplicação dos artigos 21º e 25º do D.L. nº 15/93 ao caso sub judice é claramente inconstitucional, tendo sido violados os preceitos constitucionais acima identificados.

  6. Para a aplicação dos mesmos, teve de ser feita, forçosamente, uma interpretação restritiva do preceito discriminalizador - o artigo 28º da lei nº 30/2000 - que revogou expressamente o artigo 40º do D.L. n° 15/93, assim como todas as disposições legais que contendem com o referido regime .

  7. Tal interpretação restritiva constitui uma verdadeira redução teleológica, proibida no Direito Penal, tendo sido ofendido o estatuído constitucionalmente: o artigo 29º, nºs 1 e 3 da Constituição, e artigo 1º do Código Penal.

  8. A interpretação dada ao artigo 21º e 25° viola também os princípios da legalidade e da tipicidade, ao admitir, para além do sentido possível das palavras, um puro crime de detenção de droga para consumo; dado que, o crime propugnado no Acórdão não consta na letra da lei dos referenciados preceitos criminais.

  9. Além do mais, mesmo que se admita a subsistência de um crime de perigo de tráfico, já a inadmissibilidade de contraprova do perigo se liga à construção absolutamente artificial do bem jurídico em função da conduta proibida.

  10. A incriminação de detenção para consumo nos termos do artigo 25º é manifestamente desproporcionada e desadequada, tendo em conta a opção descriminalizadora do consumo - caminhou-se (com a tese defendida no Acórdão) para a agravação da penalização do consumo acima das 10 doses diárias, após a aplicação da Lei nº 30/2000, quando esta tende para a descriminalização do consumo, e punição mediante a prática de um ilícito contra-ordenacional e remessa da competência da sua resolução para as Comissões.

  11. Sendo que a referida tese propugnada no douto Acórdão contende directamente com o espírito (regime) estatuído na Lei nº 30/2000, pelo que é totalmente inadmissível, também por esta razão: o artigo 28° da aludida Lei refere que devem considerar-se revogados, além do artigo 40°, todas as disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime, pelo que a aplicação das aludidas disposições criminais são inadmissíveis, porque contendem directamente com as disposições estatuídas na Lei nº 30/2000.

  12. De facto, anteriormente ao aludido regime estatuído na Lei nº 30/2000 o arguido consumidor era punido com a pena de prisão até 1 ano, sendo que com a aludida tese defendida no Acórdão o arguido consumidor pode ser punido mediante pena de prisão de 1 ano a 5 anos, nos mesmos termos que um traficante de menor gravidade.

  13. Anteriormente à referenciada lei o consumidor nunca era punido nos termos dos arts. 21º, 25º e 26º, mas sim nos termos do revogado artigo 40°, todos do D.L. nº 15/93; pelo que tal punição carece de tipicidade legal.

  14. Atende-se a um critério puramente quantitativo para efectuar a destrinça entre a prática de um ilícito contra-ordenacional e a prática de um ilícito penal.

  15. Nada consta na acusação - nem nos factos provados - de que o arguido sabia (tinha conhecimento ou dolo) que detinha em seu poder uma quantidade de cannabis acima das 10 doses diárias de consumo médio. Pelo que inexiste dolo subjectivo (conhecimento e vontade) da posse de cannabis acima das 10 doses diárias de consumo médio.

  16. A tese sufragada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa estabelece um crime de perigo que contém uma presunção inilidível, poupando assim trabalho aos investigadores criminais, em detrimento dos direitos do arguido: mesmo que fique demonstrado que o arguido consumidor destinava tal produto exclusivamente a seu consumo pessoal (como ficou), será punido nos mesmos termos que um traficante de menor gravidade.

  17. O Direito Penal deve ser claro, taxativo, e dentro do possível, simples (dado que existem crimes cada vez mais complexos) pelo que não pode merecer colhimento a tese sufragada no douto Acórdão, que recorre a preenchimento de lacunas e analogias, em detrimento da posição do arguido, sendo que esta torna-se indefensável (com prejuízo da realidade factual e da protecção real de bens jurídicos) caso o mesmo detenha na sua posse estupefacientes acima das 10 doses médias diárias.

  18. Tal tese propugnada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa recorre a construções lógicas pouco claras e inadmissíveis que contêm o preenchimento de lacunas e analogias, expressamente proibidas em Direito Penal.

  19. Tal clareza e taxatividade do Direito Penal são inclusivamente necessárias para que o arguido possa tomar consciência da ilicitude e, da culpa.

  20. Mais, o artigo 21° do D.L. nº 15/93 expressamente ressalvava as situações abrangidas pelo artigo 40º (agora revogado), pelo que a aplicação do artigo 21º ao caso sub judice implica uma interpretação restritiva da revogação do artigo 40º (dado que se pretende que o artigo 21º abranja as situações que eram referidas no referido preceito 40º), sendo que tal interpretação restritiva é expressamente proibida em Direito Penal.

  21. Acresce que a Portaria nº 94/96, de 26 de Março - que procede à distinção quantitativa entre os ilícitos penais e contra-ordenacionais (!!), ou seja, que estabelece os quantitativos médios diários de estupefacientes, é criticável em diversas vertentes: a) o consumo diverge de indivíduo para indivíduo; b) a referida Portaria estabelece quantitativos de estupefaciente puro, sendo que muitas vezes a droga que se vende nas ruas é já um complexo de substâncias misturadas; c) na maior parte das vezes, o indivíduo não sabe qual o peso real da droga que está a adquirir, pelo que inexiste dolo subjectivo da prática do crime de detenção acima das 10 doses diárias.

  22. A Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro definiu o regime aplicável a todo o consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, sendo esse o objecto da referida lei.

  23. Foi assim intenção clara do legislador despenalizar o consumo de estupefacientes, e enveredar pela solução do tratamento do consumidor; pelo que a tese sufragada no douto Acórdão contende directamente com o disposto no referido regime, sendo inclusivamente proibida, nos termos do artº 28° da citada Lei ("bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime").

  24. O que o legislador efectivamente pretendeu, com o "tecto" referido no nº 2 do artigo 2º da Lei nº 30/2000, foi demonstrar ao julgador de que as Comissões não devem considerar-se forma automática, inicialmente responsáveis e competentes para a resolução de situações de detenção de estupefaciente, acima das 10 doses diárias: 26. Para esclarecimento total da aludida situação, o legislador deveria ter referido no aludido número 2 que - "Para efeitos da aplicação automático da presente lei, a aquisição e detenção para consumo ( ... )".

  25. Assim, o legislador não pretendeu não abranger com a presente Lei nº 30/2000 as situações de consumo acima das 10 doses diárias.

  26. O que o legislador teve em mente foi que, a detenção de quantidades maiores de droga...

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