Acórdão nº 05B2294 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 11 de Outubro de 2005

Magistrado ResponsávelNEVES RIBEIRO
Data da Resolução11 de Outubro de 2005
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:IEnunciado da questão do agravo e método de conhecimento do seu objecto 1. O presente agravo consiste em saber se, para julgar a causa, tal como o autor a apresentou, é competente, em razão da matéria, o tribunal cível ou o tribunal administrativo.

A Primeira Instância, logo no despacho saneador do processo, respondeu que era competente o tribunal administrativo, configurando a relação litigiosa como de natureza de direito público.

O Autor agravou. E a Relação de Lisboa deu-lhe razão, declarando competente o tribunal cível, reconhecendo o carácter privado da mesma relação.

A Ré, Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, doravante CMVM, agravou da decisão da Relação, defendendo que os factos apresentados pelo Autor configuram uma relação de direito público, tal como havia considerado a 1ª Instância.

Por conseguinte, o tribunal comum é incompetente em razão da matéria, para conhecer da causa, na versão apresentada pelo Autor.

É esta, em síntese, a questão do agravo objectivado através das 18 conclusões da agravante, com as quais pretende demonstrar o carácter público/administrativo da relação obrigacional que, contra ela, vem accionada pelo Autor/recorrido.

  1. Para a resolver, convirá aprofundar o tema, o melhor possível, dado que o acórdão recorrido se suporta unicamente em acórdão anterior deste Tribunal, proferido em caso idêntico, em princípio, no domínio da mesma legislação, e que se pronunciou pela competência do tribunal comum.

    E não nos parece ser esta a melhor solução.

    (1).

    Consequentemente, iremos estudar a questão, afigurando-se procedente, para melhor entendimento do seu desenvolvimento, a antecipação de uma nota metodológica inicial, relativa aos temas que podem enquadrar o objecto de conhecimento do agravo a solucionar, ajudando à melhoria da percepção do resultado a que conduz.

    Assim:

    1. Em que consiste, e como se justifica, no actual estado de evolução da economia de mercado, a regulação económica, em geral; B) Em que consiste, e como se justifica, em particular, a regulação económica efectuada através da CMVM; C) A competência material do tribunal cível versus a competência material do tribunal administrativo; D) Como configura o Autor a relação conflituosa contra a Ré, CMVM; E) Se tal configuração, em resultado do apuramento verificado, relativamente ao alegado acto ilícito gerador da accionada responsabilidade civil extracontratual por parte da CMVCM, se ajusta ao perfil de uma relação administrativa ou de uma relação de direito privado - e, daí, a consequente determinação da competência judiciária material, ao tempo da propositura da acção, que se pretende escrutinar com o conhecimento do objecto deste agravo.

    F) Finalmente, face ao desenvolvimento, avaliar se foi adequada, ou não, a decisão recorrida (suportando-se inteiramente em acórdão do STJ, que transcreve, na parte relevante para a solução), ao atribuir competência material ao foro comum.

    II Desenvolvimento 1. Estudemos, sucessivamente as questões enunciadas, começando pela da alínea A): Em que consiste, e como se justifica, no actual estado de evolução da economia de mercado, a regulação económica, em geral.

    Trata-se, como é de supor, da regulação económica pública, ao lado da regulação económica privada, feita esta através de instrumentos jurídicos como o Código Comercial; o Código das Sociedade Comerciais; as Leis relativas a outros tipos de sociedades (cooperativas, desportivas, de advogados, SGPS, etc. ...); as Leis respeitantes ao direito de consumo; e sem excluir disposições do próprio Código Civil, etc, etc. ...

    E regulação económica pública, ou melhor: e pública, porque representa a face de intervenção do Estado na economia, particularmente em certos sectores de actividades que são essenciais à realização da Sociedade, enquanto modelo económico possível da nossa área de civilização.

    Como resultado de certas alterações históricas, assistiu-se nos dois últimos séculos, a uma autêntica transformação do Estado.

    Primeiro, como liberal e subsequente passagem para o welfare state, para o Estado social, também apelidado de Estado de serviço público, ou novo Estado administrativo, atenta a relevância e peso dos serviços públicos e das funções administrativas.

    Depois, com a transição, nas últimas décadas do século XX - marcada pela crise do anterior modelo público - para o Estado regulador, para a desintervenção, com o abandono ou diminuição, por parte do Estado, de muitas das actividades de prestação de bens ou serviços.

    Liberalizados os grandes serviços públicos, de gestor e empresário, o Estado passa, essencialmente, a garantir, a controlar, a regular a oferta de actividades e serviços por agentes económicos particulares que correspondem a tarefas e funções desempenhadas cada vez mais por autoridades reguladoras independentes, que acompanham, fomentando, o funcionamento do mercado.

    (2).

    A regulação é vista como instrumento fundamental de correcção de deficiências do mercado, a melhor forma de afectar recursos disponíveis, e portanto, a melhor forma de, em linguagem mais "corriqueira" fazer aumentar o bolo.

    (3).

    A regulação económica surge como necessidade social de regulação do exercício de certas actividades de produção, de distribuição e de consumo de bens ou serviços, desfazendo assimetrias naturalmente provocadas "pelo mercado à solta", ou, então, monopolizado, sem proveito para o consumidor quanto ao acesso aos bens e aos serviços e sua qualidade, falseando as condições de concorrência entre os operadores, e forçando outros a desistir ou sobreviver em condições desiguais.

    Daí que a regulação económica represente um dos passos de desenvolvimento do longo processo económico, situado entre o monopólio público/monopólio privado que ainda hoje, perante uma economia extremamente sofisticada e tendencialmente global, anda à procura de ajustar o seu caminho, face á lógica (ou ás diferentes lógicas) do mercado mundial, em espaço aberto, e, por aqui, cheio de contingências, sempre evolutivas.

    Constitui uma parte do direito económico. Mais: de direito económico, entre nós, com raiz organizativa constitucional, nos artigos 80.° e seguintes, ao modelar, entre o mais, os limites da iniciativa privada, as formas de propriedade, os limites da intervenção pública na economia; ao garantir o funcionamento eficiente do mercado, assegurando uma equilibrada concorrência, contrariando as formas de organização monopolista, criando instrumentos jurídicos e técnicos necessários ao planeamento democrático do desenvolvimento económico e social [particularmente, artigo 81° alíneas e), h) i), da Constituição - incumbências prioritárias do Estado] - tudo reflectido, ao nível de actuação programática, no Plano de desenvolvimento económico e social (artigo 90° da Constituição).

    (4).

    Por paradoxal que pareça, a redução do peso do Estado-empresário e a liberalização de determinados sectores da actividade económica, a que se tem assistido ao longo dos últimos anos em diversos países, tem sido acompanhada por um alargamento do papel regulador do Estado, como novo paradigma de intervenção pública.

    (5).

  2. A lógica da regulação pública independente - aliás expressamente admitida pelos artigos 266° e, particularmente, 267°-3 ("A lei deve criar autoridades independentes ") da Constituição da República, em resultado da 4ª revisão constitucional - está no facto de o Estado passar a reduzir o seu papel não só como burocrata, mas também como empresário, produtor ou distribuidor de bens ou serviços, colocando-se numa posição reguladora, não através dele próprio, como acontecera no seu passado interventor, mas através de mecanismos adequados de regulação, confiada a órgãos públicos próprios, conferindo-lhes, por lei, independência, imparcialidade e neutralidade na gestão do mercado respectivo e para eficiência deste - bolsa, seguros, banca, telecomunicações, espaço radioeléctrico, comunicação social, água, energia, transportes, etc.

    Ao Estado resta, entretanto, dedicar-se essencialmente a tarefas de regulação de actividades privadas, visando assegurar a prestação de serviços de interesse económico geral, para além de assegurar directamente as tarefas essenciais de prestação de certos serviços, como a defesa nacional, a segurança interna, a protecção civil, a prevenção e combate a incêndios florestais, alguns serviços primários de saúde e higiene pública, etc.

    (6).

    Entre os limites de um exclusivo monopólio público de certas actividades e de um monopólio privado, há uma escala de gradações intermédias, onde o Estado, ora avança, ora recua, conforme as ideias económicas determinantes do modelo de actuação económica e os sinais reveladores das diferentes sinergias do mercado, ou dos diferentes mercados - se assim quisermos dizer - e cujas fronteiras jurídicas deixaram de existir, caindo até as fronteiras físicas, como sucede na U.E. e no E.E.E.

    Aí está, caracteristicamente, uma área em que o direito anda a reboque, modelando a realidade económica e social no seu devir constante e com elevado grau de imprevisibilidade, em função de factores variáveis - naturais ou humanos - que impedem diagnósticos e terapêuticas sustentados, qualquer que seja a qualidade das convenções acordadas para a competitividade e crescimento das sociedades, especialmente tecnológicas.

    (7).

    A ninguém surpreenderá, dizer-se que estamos perante uma «terceira revolução industrial» (telecomunicações, informática, engenharia genética) que veio modificar todo o processo económico trazendo também modificações relevantes na estrutura dos mercados. A regulação económica é um direito novo, particularmente evolutivo, que ainda procura as fronteiras exactas do seu objecto próprio, á medida que os mercados se tornam abertos e globais.

    (8).

    E aí, ainda, dá lugar a um espaço - a Justiça da economia - que se abre a problemas e reflexões novas, que levam os autores a afirmar que, "se o contencioso da economia implica uma economia do contencioso, também a criação de...

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