Acórdão nº 326/15 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Junho de 2015

Magistrado ResponsávelCons. João Pedro Caupers
Data da Resolução23 de Junho de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 326/2015

Processo n.º 718/14

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Pedro Caupers

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. O Representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Ponte da Barca recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (doravante, “LTC”), da decisão proferida por aquele Tribunal, em 7 de maio de 2014, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, da norma constante do artigo 15.º, n.º s 1 e 2, alínea a), da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, “quando interpretada no sentido da obrigatoriedade da prova a efetuar pelos autores se reportar a data anterior a 31 de dezembro de 1864”.

    2. O recorrido intentou ação declarativa de simples apreciação, sob a forma de processo sumário, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, peticionando que fosse declarado legítimo proprietário dos três prédios rústicos identificados no artigo 1.º da petição inicial, por haver adquirido o respetivo direito de propriedade por meio de usucapião. Sobre esta pretensão, ajuizou o Tribunal Judicial da Comarca de Ponte da Barca o seguinte:

      (...)»

      Veio o autor peticionar ao Tribunal a declaração de que é proprietário dos prédios que identificou na petição inicial e fá-lo ao abrigo da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, com a finalidade de obstar à presunção de dominialidade pública dos referidos prédios, por confrontarem com a margem do rio Lima.

      Alega o réu que tem a seu favor uma presunção iuris tantum da titularidade do domínio público hídrico sobre as margens do rio Lima, que decorre do disposto nos arts. 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro e que sobre tais prédios não é possível a aquisição por usucapião.

      Vejamos.

      De acordo com o art. 84.º, n.º 1, al. a) da Constituição da República Portuguesa, pertencem ao domínio público as águas territoriais com o seu leito e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis e flutuáveis, com os respetivos leitos.

      A Lei n.º 54/2005 veio delimitar quais os recursos hídricos que integram o domínio público e aqueles que, ao invés, pertencem a particulares.

      Assim, nos termos do art.º 2.º, o domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial, e ainda o domínio público das restantes águas.

      O domínio público marítimo, que inclui as águas costeiras e territoriais, as águas interiores sujeitas à influência das marés, bem como os respetivos leitos, fundos marinhos e margens, pertence sempre ao Estado, nos termos do disposto nos arts. 3.º e 4.º. Já o domínio público lacustre e fluvial compreende cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos (artigo 5.º, alínea a)) – sublinhado nosso.

      E, de acordo com o disposto no art.º 11.º, n.º 1, entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que delimita o leito das águas, sendo que, de acordo com o n.º 3 do citado preceito legal, a margem das restantes águas navegáveis ou flutuáveis tem a largura de trinta metros.

      O regime atualmente consagrado no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005 estabelece que o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos passa a ser efetuado pelos Tribunais e não pela Administração Pública. Estabelecendo, ainda, um prazo para o exercício do direito de ação judicial para reconhecimento da propriedade privada (1 de julho de 2014), sob pena de caducidade do referido direito.

      Na verdade, são os tribunais e não a Administração a resolver, de acordo com o direito, os conflitos concretos da composição de interesses quanto à natureza pública ou privada das coisas. Assim, sempre que os particulares pretenderem ver reconhecida a propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, caberá aos tribunais resolver as questões de direito que envolvam a qualificação da natureza dos bens (sobre esta matéria, cfr., com interesse, o Acórdão da Relação do Porto de 15.07.1991).

      (…)

      Em primeiro lugar, cabe desde já fazer referência ao que tem sido decidido pelo Tribunal Constitucional sobre esta matéria. Importa destacar o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 353/2004, em que se sindicava o que havia sido decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14 de maio de 2003, no qual, para se poder concluir que o terreno em questão não integrava o domínio público hídrico do Estado, teve de se afirmar que “a interpretação das disposições conjugadas das normas dos artigos 3.º, n.º 2 e 5, ambos do Decreto-Lei n.º 468/71, feita pelo Sr. Juiz a quo, no sentido de que, por via dessas disposições legais, a dominialidade do terreno em causa passou automaticamente para o Estado, é inconstitucional, por violar o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa”.

      Por outro lado, da análise do art. 15.º, n.º 1, do citado diploma legal, constata-se uma presunção juris tantum de dominialidade de tais terrenos, impondo aos interessados o ónus da prova que os mesmos lhe pertencem.

      Estamos perante uma presunção ilidível e, assim sendo, podem os interessados fazê-lo através da prova de justo título ou título legítimo de aquisição, entre outros, os expressamente indicados no artigo 1316.º do Código Civil: contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação e acessão. Trata-se, porém, de uma enumeração exemplificativa, como resulta da utilização, na parte final do artigo, da fórmula “e demais modos previstos na lei” (…).

      O n.º 1 do art. 15.º exige assim uma prova documental relativamente a tais terrenos, sendo que estabelece a data anterior a 31 de dezembro de 1864, ou seja, os particulares têm de provar que tais terrenos eram objeto de propriedade privada, através de título legítimo, antes dessa data.

      O n.º 2 do artigo 15.º, ao contrário do que acontece com o número 1, não exige a prova documental, o que significa que, em princípio, são aceites todos os meios de prova admitidos em direito (prova documental, testemunhal, pericial, por inspeção judicial ou através de presunções), salvo a prova por confissão, visto a lei prescrever expressamente a sua inadmissibilidade “se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis” (art. 354.º, alínea b) do Código Civil), e o domínio público é, por definição, indisponível.

      Relativamente ao n.º 3 do citado preceito legal, onde se afasta o regime da prova estabelecidos nas situações anteriores, reporta-se tal preceito às situações de desafetação (facto jurídico pelo qual uma coisa é distraída do regime da dominialidade a que se encontra sujeita, passando à categoria de coisa do domínio privado (…) e aos bens pertencentes ao domínio privado do Estado, sobre os quais é possível a aquisição por usucapião.

      É nosso entendimento que a exigência de prova documental que remonte a data anterior a 31 de dezembro de 1864 (cerca de 150 anos atrás) se trata de uma prova diabólica, pois os proprietários vêem-se a braços com uma exigência muito difícil, ou mesmo impossível de cumprir, correndo sérios riscos de perderem as suas propriedades a favor do Estado.

      (…)

      Posto isto, cumpre desde já referir que é nosso entendimento que, tanto a obrigatoriedade de prova documental que remonte a data anterior a 31.12.1864, que consta do n.º 1 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, como a obrigatoriedade de prova que remonte a data anterior a 31.12.1864, que consta da alínea a), do n.º 2 do mesmo preceito legal, é manifestamente inconstitucional, por violação do direito fundamental à propriedade, que consta do art. 62.º da Constituição da República Portuguesa.

      Por este motivo, e independentemente da análise do caso concreto que passaremos a efetuar infra, desde já consignamos a nossa recusa de aplicabilidade do art.15.º, n.º 1 e 2, alínea a) do referido diploma legal, quando interpretado no sentido da obrigatoriedade da prova a efetuar se reportar a data anterior a 31 de dezembro de 1864.

      Vertendo as considerações teóricas tecidas sobre o caso concreto, constata-se ter resultado provado que o autor adquiriu os prédios melhor identificados nos pontos 1), 3) e 6) dos factos provados, por partilha extrajudicial da herança do seu pai, A., em fevereiro de 1978.

      Tais prédios confrontam a norte com o Rio Lima e pelas áreas que os mesmos possuem, é possível concluir que se ocupam os trinta metros a que o art. 11.º, n.º 3 da Lei n.º 54/2005 faz referência: as margens do rio.

      Por outro lado, relativamente aos prédios descritos nos pontos 1) e 3), constata-se que já existiam proprietários anteriores ao pai do autor (pese embora, da consulta das certidões do registo predial não consigamos aferir uma data concreta, relativamente a essas transmissões de propriedade). O prédio descrito sob o ponto 1), foi adquirido pelo pai do autor ao Padre B., e o descrito no ponto 3), pese embora resulte do registo predial a aquisição por usucapião pelo autor, o certo é que tem uma apresentação anterior, da qual resulta que estava inscrito a favor de C. (que pelo sobrenome, e fazendo apelo às regras da experiência comum, se presume tratar de familiar do autor), que o adquiriu a D..

      Assim sendo, mesmo antes de 1978, já os imóveis descritos nos autos se encontravam na posse do autor e dos seus antecessores e eram objeto de propriedade particular, antes da transmissão dos mesmos ao autor.

      O modo como o direito de propriedade entre na esfera jurídica do sujeito, é regulado nos artigos 1316.º seguintes do CC, relativos à aquisição da propriedade.

      O legislador não diferenciou a aquisição do direito de propriedade, de acordo com a tradicional distinção doutrinal, entre os modos de aquisição derivada e originária.

      (…)

      Incumbe, por isso, ao autor a prova do seu direito de propriedade e, para tanto, não basta que exiba um título translativo, havendo ainda necessidade de demonstrar que o direito já existia no...

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