Acórdão nº 1501/04.7TACBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 28 de Janeiro de 2009

Magistrado ResponsávelJORGE RAPOSO
Data da Resolução28 de Janeiro de 2009
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I – RELATÓRIO A arguida …, desempregada, residente em Coimbra, foi condenada pela prática, como autora de três crimes de maus tratos a menor, p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. a) do Código Penal, nas penas parcelares de 12 meses, 14 meses e 18 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos de prisão cuja execução se suspendeu pelo período de dois anos. Na mesma decisão foram julgados totalmente procedentes os pedidos de indemnização formulados e, em consequência condenada a arguida-demandada a pagar a título de indemnização pelos danos não patrimoniais à …, ao … e ao …, a indemnização de, respectivamente, 2.500 €, 2.000 € e 1.500 €, acrescidos de juros de mora vincendos.

Inconformada, a arguida interpôs o presente recurso, limitado à apreciação da matéria de direito, formulando as seguintes conclusões: 1. A recorrente discorda da decisão, porque não existem razões de direito que fundamentem a sua condenação.

  1. O crime de maus tratos é um crime em que o tipo subjectivo integra o tipo doloso, admitindo qualquer das suas modalidades (art. 14° C.P.).

  2. O dolo integra dois elementos, o intelectual e o volitivo ou emocional.

  3. O elemento intelectual do dolo exige que o agente conheça o tipo legal de crime que a sua vontade visa realizar.

  4. O desconhecimento de uma das circunstâncias de facto do tipo legal exclui o dolo.

  5. O elemento volitivo traduz-se na especial direcção de vontade de cometer o facto criminoso.

  6. Para a verificação do dolo ou intenção criminosa é necessário, por parte do agente, a prática voluntária dos factos e o conhecimento do carácter ilícito ou imoral da sua conduta, ou que tudo se passe como se ele tivesse tal conhecimento.

  7. Para o tipo subjectivo estar preenchido é necessário que a conduta seja intencional e dirigida à lesão do corpo ou saúde de outrem.

  8. Os factos praticados pela arguida que resultaram provados no processo não consubstanciam o tipo legal de crime, pois apesar de poderem ser considerados excessivos, não atingem gravidade bastante para integrar a fatio punitiva de "maus tratos" ou "tratamento cruel".

    10.0s actos imputados à recorrente devem ser tidos como lícitos, já que na educação do ser humano se justifica uma correcção moderada que poderá incluir castigos corporais ou outros.

  9. A finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples.

  10. A ofensa da integridade física será justificada quando seja adequada a atingir um fim educativo e seja aplicada com essa intenção.

  11. O exercício do direito de castigo pode ser transmitido dos pais para pessoas que gozem da confiança pessoal dos encarregados de educação.

  12. Para aferir da adequação do castigo e indagar se está em consonância com as finalidades educativas utilizamos a figura do "bom pai de família".

  13. Não houve por parte da arguida intenção de lesar a integridade física e a saúde dos menores, nem de prejudicar o seu desenvolvimento físico, psíquico e mental, nem este se encontra demonstrado nos autos.

  14. A recorrente actuou com finalidades educativas.

  15. A actuação da arguida não se traduz numa atitude pessoal de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal.

  16. A recorrente não quis praticar o ilícito, faltando, por isso o elemento emocional que caracteriza a atitude pessoal específica exigida pelo tipo de culpa dolosa.

  17. Torna-se necessário atentar nas diferenças dos meios sociais de que provêm a arguida e os menores.

  18. A recorrente não tem formação no âmbito da educação de infância, reflectindo nos educandos a educação que recebeu.

  19. A atitude da arguida não representa para ela qualquer acto ilícito, por isso afirma que faria o mesmo a um filho seu.

  20. As vicissitudes da vida actual impedem os pais de passarem tempo com os seus filhos, pelo que as instituições são forçadas a assumir a educação destes.

  21. A matéria provada não é enquadrável no âmbito do tratamento cruel.

  22. A recorrente actuou no âmbito do direito de educação-correcção.

  23. A decisão recorrida violou, por erro de aplicação, o disposto nos arts. 13°, 14°, 152° e 152°-A, todos do Código Penal.

  24. A obrigação de indemnizar surge quando alguém viola, com dolo ou mera culpa, o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (artigo 483° Código Civil).

  25. In casu, não há obrigação de indemnizar, visto que a arguida não agiu com dolo, e tratando-se este de um crime cujo tipo subjectivo de ilícito integra o tipo doloso, não há qualquer facto que fundamente o pedido cível.

  26. Sempre se dirá que na eventualidade de se manter a decisão recorrida, o montante arbitrado a título de danos não patrimoniais é excessivo e desadequado, pelo que, deve este ser reduzido substancialmente.

    TERMOS EM QUE, deve o recurso proceder, por provado, revogando-se a decisão condenatória e, em consequência, decretar-se a absolvição da arguida, quanto aos ilícitos que lhe são imputados, bem como dos pedidos cíveis formulados.

    Vossas Excelências, porém, farão a costumada e esperada JUSTIÇA Notificado, respondeu o Ministério Público, terminando com a seguinte síntese conclusiva: 1- Bater na boca, obrigar uma criança a ingerir comida que havida deitado fora, ou deixar nódoas negras são elementos bastantes que permitem subsumir a conduta da arguida ao ilícito tipificado no artigo 152° nº 1 a), do Código Penal.

    2- Tal comportamento é censurável sob o ponto de vista social e criminal.

    3- Não pode considerar-se tal comportamento como adequado a corrigir condutas de crianças de tenra idade - de 1 e 2 anos.

    4- Tal comportamento demonstra uma grande insensibilidade para lidar crianças daquelas idades.

    5- A decisão recorrida fez, deste modo, uma correcta e acertada aplicação do direito.

    Termos em que, confirmando-se a mesma, julgando improcedente o recurso Far-se-á JUSTIÇA! O assistente … respondeu, formulando as seguintes conclusões:

    1. A douta decisão recorrida não merece qualquer reparo. Dilucida as questões afloradas no presente recurso com tal clareza que não necessita qualquer adenda, pelo que se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

    2. O bem jurídico protegido pelo art. 152º do C. Penal "é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos" nomeadamente os que "afectem a dignidade pessoal do cônjuge". Trata-se de um crime específico, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e o ofendido, que "será impróprio ou próprio, consoante as condutas em si mesmas consideradas já constituem crime, ou consoante as condutas não configurem em si mesmas qualquer crime", e que pressupõe, ao menos implicitamente, uma reiteração das respectivas condutas num determinado período de tempo.

    3. Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma acção isolada do agente (tão-pouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.

    4. No que respeita ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso, podendo o dolo revestir qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, resultando claro - afastada que foi a exigência de que o agente agisse por "malvadez ou egoísmo" que constava da redacção do art. 153º do C. Penal anterior às alterações introduzidas pelo DL nº 48/95 - que basta o dolo genérico[i].

    5. A matéria dada como assente nos autos é plenamente demonstradora da prática por banda da arguida de vários comportamentos ilícitos, culposos e danosos, dirigidos a crianças entre os 12 e os 24 meses de idade.

    6. Tratou-se da prática reiterada de factos que, pela sua gravidade integram a previsão de vários crimes de maus-tratos a menor.

    7. Dizer-se que "os factos praticados pela arguida que resultaram provados no processo não consubstanciam o tipo legal de crime, pois apesar de poderem ser considerados excessivos, não atingem gravidade bastante para integrar a ratio punitiva de "maus tratos" ou "tratamento cruel", para além de alarmante revelador da total ausência de remorsos da arguida é altamente revelador do seu carácter anti-social.

      I)Afirmar-se, reputando-se aos actos praticados pela arguida, que "Os actos imputados à recorrente devem ser tidos como lícitos, já que na educação do ser humano se justifica uma correcção moderada que poderá incluir castigos corporais ou outros" é ter, no mínimo, uma concepção da educação e desenvolvimento da criança que não corresponde ao mundo civilizado.

    8. As bizarras afirmações de que: "A recorrente actuou com finalidades educativas." E "A recorrente não quis praticar o ilícito, faltando, por isso o elemento emocional que caracteriza a atitude pessoal específica exigida pelo tipo de culpa dolosa." Para além de não terem qualquer suporte factual nos autos, estão em contradição com toda a prova recolhida nos mesmos.

    9. Aliás, cumpre frisar que em momento algum dos autos a arguida invocou que era a sua intenção aquando da prática dos factos se prendia com "finalidades educativas". Tendo sempre negado olimpicamente a prática de tais "actos educativos", os quais, foram praticados em momentos temporais e locais onde era previsível ela não ter testemunhas.

    10. Igualmente não resulta da matéria provada nem foi em momento algum invocado pela arguida que a mesma tenha sido coagida a agir como agiu.

    11. Os recorrentes concordam que a arguida não tem a formação mínima de um ser humano, parecendo-lhes que a mesma está mais qualificada para lidar com animais do que com seres humanos, mesmo os que sejam do seu meio social e intelectual. Porém, que os recorrentes tenham conhecimento, a ignorância ainda não configura causa de exclusão da ilicitude no nosso ordenamento jurídico-penal. Para além disso não resultou minimamente provado que essa tenha sido a "educação" por si recebida.

    12. Pelo que a douta...

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