Acórdão nº 444/08 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Setembro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução23 de Setembro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 444/2008

Processo n.º 80/2008

2.ª Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

No âmbito da acção especial de constituição de um fundo de limitação de responsabilidade, proposta, entre outros, por A. e B., ao abrigo da Convenção Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, que correu os seus temos no Tribunal Marítimo de Lisboa sob o n.º 189/03.7 TNLSB, foi deferida a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade no montante de € 8.267,41 com vista ao ressarcimento dos danos que viessem a ser reclamados por eventuais lesados com direito a indemnização, por referência à abalroação verificada entre duas determinadas embarcações de pesca.

Posteriormente, em sede de convocação de credores, C. e D., entre outros, vieram reclamar créditos no valor global de Esc. 47.086.770$00 (€ 234.867,82), acrescido de juros de mora, a título de indemnização por danos patrimoniais emergentes do referido sinistro marítimo.

Em 27 de Fevereiro de 2006, o Tribunal Marítimo de Lisboa proferiu sentença e, por referência aos aludidos credores, após lhes ter reconhecido e considerado provados danos patrimoniais no valor global de € 65.785,04, viria a condenar A. e “B.” a pagar-lhes apenas a quantia global de € 2.465,34, isto após repartição da totalidade do aludido fundo de limitação de responsabilidade por todos os credores reclamantes.

Os referidos credores interpuseram recurso de apelação dessa sentença e o Tribunal da Relação de Lisboa, mediante acórdão datado de 19 de Abril de 2007, julgou improcedente a apelação.

Inconformados com esta decisão, os referidos credores interpuseram recurso de revista da mesma para o Supremo Tribunal de Justiça que, mediante acórdão datado de 27 de Novembro de 2007, negou provimento a esse recurso.

Os aludidos credores interpuseram então recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, no âmbito do qual requereram, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), respectivamente:

  1. a apreciação da constitucionalidade da constituição do fundo de limitação de responsabilidade com os quantitativos previstos no artigo 3.º da Convenção Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, introduzida na ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-lei n.º 49.028, de 26 de Maio de 1969, quando daí resulte uma desproporção entre o prejuízo sofrido e a indemnização decorrente do fundo;

  2. e a declaração da ilegalidade da aplicação da referida Convenção aos navios de pesca costeira.

    *

    Os Recorrentes apresentaram posteriormente as respectivas alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:

    “1ª – Resulta inequívoco da redacção dada ao texto legal, não só quando foi proposta a sua ratificação através do Decreto-Lei nº. 48036 de 14 de Novembro de 1967, quer quando introduzida no Direito interno português pelo Decreto-Lei nº. 49028 de 26 de Maio de 1969, que o Estado Português quis incluir apenas os navios de alto mar na Convenção Internacional Sobre o Limite da Responsabilidade dos Proprietários de Navios em Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, seguidamente identificada por “Convenção”.

    1. – Como consta dos autos, quer os navios envolvidos no sinistro, o “…” propriedade dos recorrentes e o “…” propriedade do lesante, são embarcações de pesca costeira, tendo o acidente ocorrido em zona que não pode ser, de acordo com as definições oficiais, tida por alto mar.

    2. – Nenhuma razão ou justificação de ordem jurídica ou de ordenamento social ou interesse público permitem concluir pela aplicação desta Convenção a navios não incluídos na categoria de “navios de alto mar”.

    3. – Não podem ser associados a “navios de alto mar” por incompatibilidade na sua própria definição, os navios costeiros, nem pode atribuir-se a ignorância do legislador e órgãos de soberania que intervieram nos respectivos diplomas o facto de a tradução do texto em francês ter sido a que consta em todos os diplomas publicados.

    4. – Aliás, no entender dos recorrentes, a tradução de “navires de mer” do texto original para “navios de mar” é a mais correcta, sendo certo que este argumento é irrelevante na medida em que a própria Convenção permite aos Estados definirem que categoria de navios devem ser abrangidos pela Convenção, e o texto utilizado pelo Estado Português não pode significar mais do que ter sido da vontade do Estado Português reservar aos “navios de alto mar” a aplicação da Convenção.

    5. – A aplicação da Convenção e consequente aplicação do Fundo nele prevista, se, contra a letra da Lei, fosse aplicável a navios costeiros, violaria o princípio do Estado de Direito Democrático que o artigo 2º da Constituição da República Portuguesa consagra.

    6. – Mas mesmo que se admitisse não inconstitucional por ilegalidade a aplicação a navios costeiros da Convenção, sempre, por violação do direito à propriedade privada consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, a aplicação ao caso concreto desta Convenção seria inconstitucional.

    7. – Como resulta dos autos, o valor da embarcação e dos prejuízos sofridos pelos recorrentes ascendem a mais de 220.611,91€ (cfr. fls. 519 dos autos).

    8. – A indemnização que lhes caberia, face à constituição e repartição do Fundo previsto e segundo as regras da Convenção, seria de 8.267,41€ (fls. 520 dos autos) o que corresponde a 3,75% (três virgula setenta e cinco por cento) do prejuízo realmente sofrido.

    9. – Ora, se este Venerando Tribunal Constitucional já decidiu no sentido de, nas expropriações por utilidade pública, ser inconstitucional a atribuição de uma indemnização manifestamente injusta, muito menos se aceitará que, numa lesão provocada culposamente por terceiro, uma Lei, ainda para mais de interpretação duvidosa, possa merecer aprovação constitucional quando, pela sua aplicação resulta um montante que reduz praticamente a nada o direito dos lesados a uma justa indemnização.

    10. – Donde resultar manifesto que a aplicação da Convenção ao caso vertente é inconstitucional por violação do direito de propriedade constitucionalmente consagrado”.

    A Recorrida B. contra-alegou e concluiu pela seguinte forma:

    “1. O recurso com fundamento em ilegalidade das normas aplicadas pelo Tribunal a quo, não toca qualquer matéria de natureza jurídico-constitucional, pelo que se concorda com o douto despacho proferido a 26.02.2008, por não se verificarem os fundamentos de que a al. d) do n.º 2 do art.º 280º da CRP faz depender o recurso, tratando-se de matéria que se encontra fora do âmbito da competência específica do Tribunal ad quem (art.º 221º da CRP);

    1. Para além disso, o requerimento de recurso dos Recorrentes devia ter sido indeferido, impugnando-se a sua admissão, uma vez que não se encontra identificada a peça processual em que estes terão suscitado a questão da inconstitucionalidade, não especificaram que norma ou normas seriam inconstitucionais por violação do invocado art.º 62º da CRP e por o recurso se mostrar, neste particular, manifestamente infundado (al. b) do n.º 1 do art.º 280º da CRP e al. b) do n.º 1 do art.º 70º, n.ºs 1 e 2 do art.º 75º-A, e n.º 2 do art.º 76º da LTC);

    2. Não obstante, foi com base no art.º 2º do DL n.º 49 028, de 26 de Maio de 1969, e na al. a) do n.º 1 e nos n.ºs 2, 7, 8 e 9 do art.º 3º da Convenção de 1957, que o fundo de limitação da responsabilidade foi constituído e repartido, e nenhuma destas normas é inconstitucional por violar o art.º 62º da CRP e os princípios nele consagrados:

    3. Os Recorrentes não foram arbitrariamente privados dos bens da sua propriedade nem, tão pouco, foram desapropriados pelos Recorridos;

    4. Também a garantia do direito dos Recorrentes à satisfação dos seus créditos não foi afectada, posto que os mesmos viram os respectivos créditos serem reconhecidos e graduados;

    5. A limitação de responsabilidade do devedor, em termos gerais, é admitida pelo nosso Direito Civil, enquanto excepção à regra geral de que pelas dívidas do devedor de uma obrigação responde todo o seu património penhorável (art.º 601º do Cód. Civil);

    6. E em especial, a limitação de responsabilidade dos proprietários de navios de mar prevista na Convenção de Bruxelas de 1957 é um caso mais, a somar a outros consagrados em convenções internacionais sobre matérias específicas, como por exemplo, a poluição marítima, perfeitamente justificado atendendo ao risco da actividade marítima;

    7. Trata-se de um instituto clássico do Direito Marítimo, criado para fomentar o investimento privado na empresa marítima através da limitação da responsabilidade do proprietário do navio a um valor calculado com base nas características do próprio navio causador do dano e independentemente desse bem existir ou não, o que resulta vantajoso para os credores;

    8. O seguro de embarcações de pesca não é obrigatório em Portugal e mesmo que a embarcação culpada esteja segura, isso não isenta o seu proprietário da responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros, até porque as apólices contemplam um tecto máximo para as suas coberturas – o capital seguro – a partir do qual não poderão ser responsabilizadas;

    9. Conforme foi doutamente decidido pelo douto acórdão recorrido, as normas jurídicas aplicadas não prevêem qualquer “restrição que faça correr um credor comum num risco desproporcionado de ver totalmente frustrada a possibilidade de satisfação do seu crédito”.

      *

      Fundamentação

    10. Da idoneidade do objecto do recurso

      No requerimento de interposição de recurso, os recorrentes, abrigando-se no disposto nas alíneas b), e c), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), solicitaram respectivamente:

  3. a apreciação da constitucionalidade da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
1 temas prácticos
1 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT