Acórdão nº 89/10.4TBTCS.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 19 de Fevereiro de 2013

Magistrado ResponsávelHENRIQUE ANTUNES
Data da Resolução19 de Fevereiro de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1.

Relatório.

A… apelou da sentença do Sr. Juiz de Círculo de Guarda, que julgando improcedente a acção declarativa constitutivo-condenatória, com processo comum ordinário pelo valor que propôs contra P…, SA – na qual pedia a anulação da deliberação tomada na assembleia geral de 20 de Fevereiro de 2010, no sentido de a totalidade dos lucros distribuíveis ser afectado à constituição de reservas livres, e a condenação da última a pagar-lhe a quantia de € 10.385,60 a título de lucros relativos ao exercício de 2008, acrescida de juros à taxa legal, contados desde o dia da citação até integral pagamento – absolveu a demandada do peticionado.

A recorrente pede, no recurso, a anulação desta sentença e a sua substituição por outra que julgue procedente o pedido deduzido na petição inicial A apelante extraiu da sua alegação estas conclusões: … Não foi oferecida resposta.

  1. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso. Foram seleccionados para a base instrutória, entre outros, os pontos de facto seguintes: … 3.

    Fundamentos.

    3.1.

    Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

    Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

    O recorrente pediu – e pede no recurso – a anulação da deliberação tomada na assembleia geral de accionistas da recorrida, realizada no dia 20 de Fevereiro de 2010, que com os votos dos accionistas F…, B… e C…, representativos de 50,02% do capital social, deliberou levar a reservas todo o lucro líquido apurado do exercício de 2009, no montante de € 43.838,43, sendo € 2.191,92 para reserva legal € 41.645,41 para resultados transitados, e a condenação da apelada a pagar-lhe a quantia de € 10.385,60 a título de lucros relativos ao exercício de 2008[1], acrescida de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data da citação.

    A causa petendi – tal como se estabilizou com a ampliação de que foi objecto na réplica – oferecida pelo recorrente como fundamento destes pedidos é, nos seus traços mais relevantes, a seguinte: a invalidade da deliberação impugnada, resultante do seu carácter abusivo, tanto por força da natureza abusiva dos votos com que foi aprovada como por virtude do abuso de direito, e do facto de não ter sido aprovada pela maioria qualificada supletiva legalmente exigível – 3/4 dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral – uma vez que a cláusula 14 dos estatutos do recorrida não tem a virtualidade de afastar a regra supletiva, que exige aquela maioria, disposta na lei.

    A sentença impugnada desamparou ambos os pedidos do autor, tendo adiantado, para justificar a decisão de improcedência, estas duas razões: resultar razoavelmente claro não só a legalidade de tal cláusula, mas também o seu carácter derrogatório, face ao regime geral de distribuição dos seus lucros de exercício; não ter o A. provado qualquer espécie de associação dos restantes accionistas no sentido de, motivados por interesses extra-societários ou apenas visando prejudicar a sua pessoa, tenham abusado do seu direito de voto.

    Se o problema da eficácia derrogatória da cláusula estatutária da norma supletiva reguladora do direito aos lucros de exercício coloca, fundamentalmente, uma questão de direito - já o dos votos abusivos e do abuso de direito levanta delicados problemas de facto.

    E é justamente, desde logo, contra a decisão da matéria de facto que o recorrente dirige o seu descontentamento.

    No seu ver, o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por erro na valoração das provas, no tocante à decisão dos pontos de facto insertos na base instrutória sob os nºs 11, 13, 15, 18 e 21 e, bem assim, quanto aos factos identificados na fundamentação de facto sentença impugnada, com os nºs 10 e 11. Quanto a estes dois últimos pontos o eventual erro de julgamento é de fácil reparação, dado que o recorrente censura é a simples circunstância de não reproduzirem na íntegra o conteúdo dos documentos que lhe servem de suporte, e que não foram objecto de impugnação.

    Todavia, o erro de julgamento de que, segundo o apelante, se encontra ferida a decisão da matéria de facto, radica numa outra causa: a sua deficiência.

    De harmonia com a alegação do recorrente, não foram seleccionados para a base instrutória – e, portanto, não foram submetidos a instrução e julgamento – factos que alegou com interesse para a decisão da causa.

    Estão nessas condições, segundo o apelante, as alegações contidas nos artºs 32 e 37 da réplica, referidos à causa de pedir representada pelos votos abusivos ou pelo abuso de direito.

    Além disso – acrescenta – houve também omissão de um facto, que embora não tenha sido alegado nesta acção, é um facto instrumental e está demonstrado por documento que se mostra junto na acção apensa que corre termos sob o nº 108/11: a manutenção dos avales que subscreveu, como administrador da apelada, em montantes superiores a € 2.000 000,00.

    Maneira que, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações do recorrente, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se: a) O Tribunal de que provém o recurso incorreu num error in iudicando da questão de facto, por erro sobre o objecto da prova e na valoração dessa mesma prova; b) A deliberação social impugnada se encontra ferida de invalidade.

    A resolução destes problemas exige, naturalmente, o exame dos poderes de controlo desta Relação sobre a decisão da matéria de facto, à aferição do conteúdo do direito do sócio aos lucros do exercício e a ponderação das causas de invalidade das deliberações dos sócios representadas pelos votos abusivos e pelo abuso do direito.

    Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto. Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada um das soluções plausíveis da questão de direito - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com exame das regras relativas ao direito dos sócios aos lucros do exercício e às causas de invalidade das deliberações sociais em que se resolvem os votos abusivos e o abuso do direito.

    3.2.

    Direito aos lucros do exercício.

    A recorrida é uma sociedade anónima e tem, por isso, um capital social, de valor nominal, expresso numa cifra monetária, correspondente à soma das participações sociais: as acções, expressas, também elas, num valor nominal (artºs 9 nº f) e 276 nº 1 do Código das Sociedade Comerciais - CSC).

    O termo acção é, porém, um vocábulo polissémico, sendo utilizado em três sentidos diferentes: como participação social ou socialidade, ou seja, o conjunto unitário de direitos e obrigações, mas também ónus expectativas, faculdades e sujeições, de que uma pessoa, singular ou colectiva, é titular na qualidade de sócio de uma sociedade anónima (artºs 272 a), 276 e 302 do CSC)[2]; como fracção do capital social, v.g. das sociedades anónimas (artº 271 do CSC); como forma de representação da participação social, compreendendo, do mesmo passo, a representação cartular – título ou documento em papel – e escritural – registo em conta em suporte informático (artºs 274, 301 e 304 do CSC).

    As acções adquiriram, porém, um outro significado de extraordinário relevo: o de produto financeiro, i.e., de instrumento financeiro negociável no mercado de capitais[3].

    Entre as faculdades ou poderes que integram a participação social conta-se a de participar no lucro da sociedade (artºs 21 nº 1 a) do Código das Sociedades Comerciais – CSC – e 55 nº 3 a) do Código dos Valores Mobiliários – CVM).

    Os sócios associam-se na sociedade para distribuírem entre si o lucro emergente da actividade social. É típico da sociedade comercial o intuito lucrativo: a lucratividade da sociedade comercial, embora não seja necessária, é típica, tipicidade que lei é, aliás, bem clara em por em relevo (artº 980, in fine, do Código Civil).

    Em sentido amplo, o lucro é a diferença entre o custo e a receita da actividade económica da sociedade. Numa acepção restrita, apenas é considerado lucro a vantagem económica que se forma e apura na esfera jurídica da sociedade, para, depois, ser distribuída aos sócios.

    O lucro do exercício é apurado pela contabilidade da sociedade, nas contas anuais que são, primeiramente aprovadas pela gestão, depois pelo conselho fiscal ou pelo fiscal, se existirem, e finalmente sujeitas à deliberação dos sócios em assembleia geral anual.

    As contas culminam com o resultado do exercício e, em princípio, o lucro deve ser apurado e distribuído no termo do exercício. O relatório da gestão deve conter uma proposta de aplicação dos resultados devidamente fundamentada e, havendo lucro, essa proposta deve submeter aos sócios o destino que lhe deve ser dado (artº 66 nº 5 f) do CSC). O lucro pode ser retido como reserva, pode ser distribuído e pode ser parcialmente retido e parcialmente distribuído: também neste domínio os sócios têm um elevado grau de discricionariedade na deliberação - observados, evidentemente, os limites definidos na lei.

    Na verdade, a lei proíbe a distribuição dos lucros que sejam necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstituir reservas legais ou estatutárias e enquanto não estiverem amortizadas as despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento, excepto se cobertos por reservas livres (artº 33 nºs 2 e 2 do CSC). É também proibida a distribuição de verbas provenientes de reservas ocultas...

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