Acórdão nº 0518/12 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 11 de Outubro de 2012

Magistrado ResponsávelCOSTA REIS
Data da Resolução11 de Outubro de 2012
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

A… e B……, L.da intentaram, no TAC de Lisboa, contra o MINISTÉRIO DA ECONOMIA E DO EMPREGO e, na qualidade de contra-interessada, a sociedade C……, L.da providência cautelar requerendo (1) a suspensão de eficácia dos actos de aprovação dos Preços de Venda ao Público (PVP) praticados pelo Requerido através da Direcção Geral das Actividades Económicas (DGAE) de medicamentos compostos pela substância activa Sildenafil, e (2) a sua intimação a abster-se de aprovar novos PVPs de medicamentos compostos pela mesma substância.

Sem êxito já que aquele Tribunal considerou que a pretensão a formular no processo principal estava votada ao fracasso e, por isso, indeferiu ao requerido e que tal tornava desnecessária a apreciação do periculum in mora.

Decisão que o TCA Sul confirmou.

É desta decisão que foi interposta a presente revista.

Nela as Recorrentes formulam as seguintes conclusões: 1. O Acórdão ora recorrido aplica a Lei n.° 62/2011, de 12/12 (“nova Lei”), sem ter dado oportunidade às Recorrentes de se pronunciarem sobre a sua eventual aplicação, sendo que essa lei foi publicada após a interposição de recurso pelas Recorrentes e as Recorrentes já não tinham nenhum articulado próprio, após as suas alegações de recurso, para se pronunciarem sobre tal lei.

  1. Assim sendo, o TCA Sul proferiu uma decisão-surpresa, que viola o artigo 3°, n° 3 do Código de Processo Civil (nos termos do qual o juiz não pode decidir questões de Direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem).

  2. Por outro lado, no aresto recorrido, o Tribunal a quo considerou que é manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada na acção principal sem, porém, cuidar que a nova Lei não pode ser aplicada ao caso dos autos, porque várias das respectivas disposições são inconstitucionais, incluindo a que tem por objectivo a sua aplicação imediata ao caso dos autos, ou seja, a sua pretensão de “retroactividade” proibida.

  3. Este entendimento levou o Tribunal a quo a considerar, na avaliação do fumus boni iuris, uma lei cuja inconstitucionalidade (e consequente desaplicação) é manifesta e é agora suscitada em sede de recurso.

  4. Em consequência, a questão de direito que ora se submete à apreciação deste Supremo Tribunal consiste em que o TCA Sul não poderia ter aplicado ao caso a Lei n.° 62/2011, de 12 de Dezembro, sem ter dado oportunidade às Recorrentes para sobre ela se pronunciarem e porque a mesma é inconstitucional, questão essa que é fundamento essencial de procedência da acção principal.

  5. Esta questão preenche ambos os requisitos alternativos de admissibilidade previstos no artigo 150.°, n.° 1, do CPTA, uma vez que reveste importância fundamental, em virtude da sua relevância jurídica, e justifica a intervenção deste Tribunal de revista atenta a necessidade de uma melhor aplicação do direito.

  6. No que respeita à sua relevância jurídica, a questão suscitada revela uma acentuada “capacidade de expansão”, veja-se os processos já intentados pelas ora Recorrentes.

  7. Mas a admissão da revista mostra-se também necessária para uma melhor aplicação do direito. Com efeito, consistindo o fumus boni iuris numa avaliação da viabilidade da pretensão formulada no processo principal, quando essa procedência dependa de uma questão de constitucionalidade, essa questão tem necessariamente de ser considerada.

  8. Conforme mencionado pelo Senhor Juiz Desembargador Fonseca da Paz em voto de vencido proferido no recurso n.° 083171/11, do 2.° Juízo, 1.ª Secção do TCA Sul, “não me parece que sela possível considerar aplicável ao caso a referida al. a) do n.° 1 do artigo 120º - pois a norma do artigo 9 da Lei n.° 62/2011 suscita complexas questão de inconstitucionalidade”.

  9. O erro na interpretação e aplicação do critério de decretamento do fumus boni iuris é independente da versão concreta deste critério que esteja a ser utilizada (ou seja, das alíneas a), b) e c) do n.° 1 do artigo 120º do CPTA). O critério em causa consiste sempre numa avaliação perfunctória da viabilidade da pretensão deduzida no processo principal.

  10. Dependendo a procedência da acção principal de uma questão de constitucionalidade, é evidente que uma avaliação perfunctória sobre essa procedência tem necessariamente de considerar (ainda que perfunctoriamente) essa mesma questão de constitucionalidade.

  11. Em face do exposto, torna-se essencial unia análise da constitucionalidade do diploma em questão para a interpretação e aplicação do critério do fumus boni iuris previsto no artigo 120°, n.° 1, do CPTA (nas alíneas a), b) e c)).

  12. A desaplicação da Lei n.° 62/2011 ao caso dos autos, defendida pelas Recorrentes, assenta em fundamentos (isto é, inconstitucionalidades) sérios, sólidos e sustentados com recurso à mais autorizada doutrina e jurisprudência.

  13. Os direitos de propriedade industrial, nestes se incluindo os direitos relativos a patentes de medicamentos, são uma modalidade especial do direito de propriedade e, nessa medida, encontram-se sujeitos ao mesmo regime, conforme já decido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.° 257/92, de 13 de Julho de 1992.

  14. Ao contrário da qualificação como interpretativa, feita no n.° 1 do art.º 9° da Lei n.° 62/2011, das alterações introduzidas pela mesma lei à redacção dos artigos 19°, 25° e 179° do Estatuto do Medicamento, e da nova disposição relativa a aspectos do regime da autorização de preços do medicamento constante do art.º 8º da Lei n.º 62/2011, tais normas são efectivamente inovadoras.

  15. Em consequência é clara e inequívoca a violação do princípio da legítima confiança por parte da norma do artigo 9°, n.° 1, 2 e n.° 3, da Lei n.° 62/2011, o que a fere de inconstitucionalidade material que aqui se argui expressamente para todos os efeitos.

  16. E também em consequência, por todos estes motivos, e por cada um deles, deve ser recusada a aplicação do disposto no artigo 9.° da Lei n.° 62/2011, aplicando-se ao caso dos autos o regime legal em vigor à data da prática dos actos em crise, no sentido acima recapitulado e definido por jurisprudência uniforme do TCA Sul.

  17. Subsidiariamente: o regime constante dos n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 9° da Lei n.° 62/2011 determina um vazio de tutela jurisdicional, porque nega a possibilidade de atacar as autorizações de introdução no mercado e os actos de fixação de PVP junto dos tribunais administrativos (por força do novo regime substantivo criado), e impede a prática de tais actos através do prévio recurso à arbitragem necessária prevista na nova lei como o meio adequado de resolver as questões de direitos de propriedade industrial suscitadas em relação com aqueles procedimentos administrativos (o que se alega sem prejuízo de se considerar que o mecanismo de “composição de litígios” criado pela nova lei é, ele próprio, também inconstitucional).

  18. Com efeito, conforme julgou muito recentemente o TCA Sul, em acórdão proferido, por unanimidade, no passado dia 15 de Março de 2012, pelo 2.º Juízo, 1ª Secção, num processo em que estava em causa a legalidade de AIM praticadas antes da entrada em vigor da nova lei, o seguinte: “Assim, estando em causa um li4gio de natureza administrativa (validade de um acto administrativo que concedeu uma licença) deve considerar-se competente a jurisdição administrativa. E isto é assim porque, por um lado, à data da propositura da presente providência cautelar ainda não se encontrar em vigor a Lei n.° 62/2011, de 12.12, que veio clarificar de forma definitiva que as AIM’s de medicamentos genéricos não podem ser indeferidas com base na existência de uma patente, quer a mesma seja de processo, de produto ou de utilização e a sujeitar à jurisdição arbitral a “composição dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial, quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos” (cfr artigos 1º e 2º) e, por outro lado, porque o art° 9º do citado normativo - que dispõe sobre o regime transitório - só abrange as disposições alteradas do DL 176/2006, bem como o aditamento introduzido ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos e o disposto no art.° 8º da mesma Lei.” 20. Em consequência, o regime constante dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 9° da Lei n.° 62/2011 viola, também por esta via, o princípio da protecção da confiança e o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos lesados por aqueles actos administrativos (AIMs e actos de fixação de PVP), padecendo de inconstitucionalidade material.

  19. Subsidiariamente: a norma do artigo 25°, n.° 2, do Estatuto do Medicamento, na redacção conferida pelo artigo 4° da Lei n.° 62/2011, na medida em expressamente determina que o pedido de AIM não pode ser indeferido com fundamento na violação dos direitos de propriedade industrial, é inconstitucional por violação do direito fundamental de propriedade privada (artigo 62° da CRP). É o que se pode extrair da jurisprudência uniforme do Tribunal Central Administrativo Sul.

  20. Subsidiariamente: a norma do artigo 179.°, n° 2, do Estatuto do Medicamento, na redacção conferida pelo art.º 4° da Lei n.° 62/2011, na medida em que expressamente determina que uma AIM não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na violação dos direitos de propriedade industrial, é inconstitucional por violação do direito fundamental de propriedade privada (artigo 62º da CRP). É o que se pode também extrair da jurisprudência uniforme do TCA Sul.

  21. Subsidiariamente: a norma do artigo 8° da Lei n.° 62/2011, nos termos da qual «A decisão de autorização do PVP do medicamento, bem como o procedimento que àquela conduz, não têm por objecto a apreciação de eventuais direitos de propriedade industrial», é inconstitucional por violação do direito fundamental de propriedade privada (artigo 62° da CRP). É o que se pode ainda extrair da jurisprudência uniforme do Tribunal Central Administrativo.

  22. A desaplicação das citadas normas da Lei n.° 62/2011 implica que o presente caso deva ser julgado tendo por...

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