Acórdão n.º 370/2008, de 12 de Agosto de 2008

Acórdáo n. 370/2008

Processo n. 141/08

Acordam na 2.ª Secçáo do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório:

1.1 - António Melo Pereira, Fernando António Pinto Carneiro, José Joaquim Marques Ferreira Machado, Manuel de Bessa Moreira, Maria do Carmo Pereira da Mota, Serafim Marques de Oliveira e José Maria Castelar requereram, no Supremo Tribunal Administrativo (STA), contra a Comissáo de Inscriçáo da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, ao abrigo do artigo 161. do Código de Processo nos Tribu nais Admi-

nistrativos, a extensáo dos efeitos do Acór dáo do Pleno da Secçáo de Contencioso Administrativo do STA de 5 de Julho de 2005, processo n. 164/04, que confirmou o Acórdáo da 1.ª Subsecçáo, de 3 de Novembro de 2004, que anulara o acto da requerida que recusara a inscriçáo de um interessado na entáo designada Associaçáo dos Técnicos Oficiais de Contas (ATOC), criada pelo Decreto -Lei n. 265/95, de 17 de Outubro (designaçáo alterada para Câmara dos Técni cos Oficiais de Contas (CTOC), pelo Decreto -Lei n. 452/99, de 5 de Novembro).

Nessas decisóes entendeu-se que, para efeitos de inscriçáo na ATOC que a Lei n. 27/98, de 3 de Junho, possibilitara aos «profissionais de contabilidade que desde 1 de Janeiro de 1989 e até à data da publicaçáo do Decreto -Lei n. 265/95, de 17 de Outubro, tenham sido, durante três anos seguidos ou interpolados, individualmente ou sob a forma de sociedade, responsáveis directos por contabilidade organizada, nos termos do Plano Oficial de Contabilidade, de entidades que naquele período possuíssem ou devessem possuir conta bilidade organizada», era possível provar por qualquer meio probatório admissível em procedimento administrativo esse requisito de responsabilidade directa por contabilidade organi zada, sendo ilegal a limitaçáo da possibilidade de prova a cópias de declaraçóes modelo 22 de IRC ou anexo C ao modelo 2 de IRS, como a Comissáo de Inscriçáo estabelecera num «Regulamento», de 3 de Junho de 1998, que aprovara para execuçáo daquela lei.

Aduziram os requerentes que se encontram na mesma situaçáo daqueles casos, já superiores a cinco, em que foram proferidas decisóes judiciais, transitadas em julgado, em processos em que foi parte a ora requerida, que julgaram inválidos os actos de recusa de ins criçáo por considerarem ilegais as normas restritivas de meios probatórios constantes do refe rido Regulamento: Acórdáo do Tribunal Constitucional n. 355/2005, de 6 de Julho de 2005, e Acórdáos do Pleno da Secçáo de Contencioso Administrativo do STA de 5 de Julho de 2005, processo n. 164/04, de 6 de Outubro de 2005, processo n. 342/04, de 10 de Novembro de 2005, processo n. 343/04, de 19 de Janeiro de 2006, processo n. 424/04, de 7 de Fevereiro de 2006, processo n. 419/04, e de 2 de Março de 2006, processo n. 423/04.

A pretensáo formulada obteve acolhimento no Acórdáo da 1.ª Secçáo do STA de 19 de Abril de 2007, que determinou que «na esfera jurídica dos requerentes se produ zam os mesmos efeitos que o mencionado Acórdáo do Pleno da 1.ª Secçáo de 5 de Julho de 2005, proferido no processo. n. 164/04, projectou na esfera jurídica dos respectivos beneficiários».

Contra este acórdáo interpôs a recorrente recurso para o Pleno da Secçáo de Contencioso Administrativo do STA, terminando a respectiva alegaçáo com a formulaçáo das seguintes conclusóes:

1 - O acórdáo recorrido incorreu em deficiente aplicaçáo do direito aos factos.

2 - Desde logo, deveria ter procedido à desaplicaçáo in casu da norma contida no artigo 161. do CPTA, porquanto a mesma náo está conforme à Constituiçáo da República Portuguesa.

3 - Com efeito, sáo violados os princípios do Estado de direito, na sua vertente da protecçáo da segurança jurídica e da protecçáo da confiança, e o princípio da igualdade, plasmados, respectivamente, nos artigos 2. e 13. da Constituiçáo;

4 - A opçáo tomada pelo legislador viola, intoleravelmente, a confiança que a Administraçáo deve poder pôr na estabilidade das relaçóes administrativas e nos seus efeitos;

5 - Além disso, traduz um benefício concedido em favor dos que, perante um acto desfavorável, se quedaram passivos e náo reagiram judicialmente dentro do prazo legal para tanto fixado, tratando-se, pois, de forma desigual face àqueles particulares que, dentro do prazo de que dispunham, tiveram que mobilizar os meios processuais adequados, para que náo se firmasse na sua esfera jurídica um acto que lhes era desfavorável, assim se violando o princípio constitucional da igualdade.

6 - Ao contrário do que considerou o tribunal a quo, o artigo 161. mais náo é, em termos materiais, do que a atribuiçáo a quem já náo o tinha, do direito de impugnar um acto administrativo desfavorável, indo até mais além do que isso, pois esse particular, que vê, assim, 'ressuscitado' o seu direito de acçáo, poderá, por essa via, ver auto-maticamente produzidos na sua esfera jurídica os mesmos efeitos que veria caso tivesse impugnado atempadamente o acto desfavorável e tivesse obtido vencimento.

7 - A argumentaçáo oferecida pelo acórdáo recorrido para sustentar a constitucionalidade da norma perspectiva, assim, a questáo de um prisma estritamente formal, náo atendendo à materialidade das razóes que apontam, ao contrário, para a inconstitucionalidade da norma.

8 - Por outro lado, e independentemente da posiçáo tomada quanto à conformidade do artigo 161. do CPTA, andou mal o acórdáo recorrido ao considerar que a situaçáo em apreço se encaixava na respectiva previsáo da norma.9 - O artigo 161. está pensado para se aplicar nos casos em que foram praticados actos administrativos com vários destinatários, e náo, como é o caso, actos administrativos distintos.

10 - Ao náo dar razáo à aqui recorrente, procedeu o acórdáo recorrido a uma errada interpretaçáo e aplicaçáo do artigo 161. [do CPTA].

Por Acórdáo de 13 de Novembro de 2007, o Pleno da 1.ª Secçáo do STA negou provimento ao recurso, com a seguinte fundamentaçáo jurídica:

2.2 - Matéria de direito. - A recorrente insurge-se contra o acórdáo da Subsecçáo por entender que o artigo 161. do CPTA é inconstitucional e, se assim náo for entendido, por náo se verificarem os requisitos aí previstos para se declarar a extensáo de efeitos de uma decisáo judicial, ou seja, por náo estar em causa uma sentença anulatória de um acto plural.

Vejamos cada uma das questóes.

2.2.1 - Inconstitucionalidade do artigo 161. do CPTA. - A recorrente retoma, no recurso, os argumentos que esgrimira na acçáo e que o acórdáo náo acolheu. O acórdáo recorrido, em suma, entendeu que o artigo 161. do CPTA náo violava os princípios da segurança inerente ao Estado de direito (artigo 2.) e da igualdade (artigo 13., ambos da Constituiçáo). A recorrente insiste na tese oposta, vendo no referido artigo uma intolerável violaçáo da confiança que a Administraçáo deve poder pôr na estabilidade das relaçóes jurídicas (violaçáo da protecçáo da segurança jurídica) e ainda a violaçáo da igualdade, na medida em que o preceito em causa traduz um 'favor dos que, perante um acto desfavorável, se quedaram passivos e náo reagiram judicialmente dentro do prazo legal[...] tratando-os de forma desigual face àqueles que, dentro do prazo de que dispunham, tiveram que mobilizar os meios processuais adequados'.

i) Princípio da segurança jurídica. - O artigo 161. do CPTA, sob a epígrafe 'extensáo dos efeitos da sentença', permite que os efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado um acto administrativo desfavorável ou reconhecido uma situaçáo jurídica favorável possam ser estendidos a outras pessoas que 'se encontrem na mesma situaçáo jurídica'. [A redacçáo do preceito é a seguinte: 'Os efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado um acto administrativo desfavorável ou reconhecido uma situaçáo jurídica favorável a uma ou várias pessoas podem ser estendidos a outras que se encontrem na mesma situaçáo jurídica, quer tenham recorrido ou náo à via judicial desde que, quanto a estas, náo exista sentença transitada em julgado'.]

É verdade que a eficácia de um acto administrativo inimpugnável - e que portanto gozava de alguma estabilidade na ordem jurídica - pode vir a ser inutilizada, por aplicaçáo do artigo 161. do CPTA. Mas essa destruiçáo dos efeitos, náo obstante o 'caso decidido', náo significa uma intolerável quebra da confiança na estabilidade das relaçóes jurídicas inerente a um Estado de direito.

O acórdáo recorrido sublinhou, citando a propósito o Acórdáo do Tribunal Constitucional n. 17/84, que o cidadáo deve 'poder prever as intervençóes que o Estado poderá levar sobre ele ou perante ele e preparar -se para se adequar a elas.[...]. Deve poder confiar em que a sua actuaçáo seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as consequências juridicamente relevantes'.

Ora, a introduçáo na ordem jurídica do artigo 161. do CPTA náo é uma ruptura inesperada da irrelevância (em determinadas situaçóes) do caso decidido. A lei, a doutrina e a jurisprudência desde sempre admitiram - como veremos - hipóteses em que o caso decidido náo gozava de total protecçáo.

Como é sabido, nem sequer os actos favoráveis, constitutivos de direitos, náo impugnados têm essa protecçáo, pois podem ser revogados com fundamento em ilegalidade no prazo de um ano - cf. artigo 141., n. 1, do CPA. Por outro lado, a ilegalidade dos actos inimpugnáveis (consolidados), como hoje decorre do artigo 38., n. 1, do CPTA, pode ser posta em causa e, portanto, reconhecida. O artigo 7. do Decreto -Lei n. 48 051, ainda em vigor, também permite a discussáo da ilicitude de actos administrativos consolidados, mostrando que um acto ilegal náo impugnado pode levar à condenaçáo da Administraçáo pelos danos causados a terceiros com a prática desse acto.

Freitas do Amatral (Direito Administrativo, IV, Lisboa, 1988, p. 227) defendia - desde há muito - a eficácia erga omnes de algum tipo de sentenças anulatórias, tudo dependendo do seu fundamento: 'teráo eficácia erga omnes se forem baseadas em fundamentos objectivos...

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