Acórdão nº 0842298 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 11 de Junho de 2008

Magistrado ResponsávelOLGA MAURÍCIO
Data da Resolução11 de Junho de 2008
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo nº 2298/08 ..../05.3TDLSB - º juízo do TIC do Porto Relatora: Olga Maurício Acordam na 2ª secção criminal (4ª secção judicial) do Tribunal da Relação do Porto: RELATÓRIO 1.

O Ministério Público junto do tribunal de Matosinhos deduziu acusação contra B.......... e contra "C.........., LDª.", imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punível pelos art. 107º e 105º do RGIT, quanto ao primeiro, e naqueles e no art. 7º do mesmo diploma, quanto à segunda.

O Instituto da Segurança Social, I.P., deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação dos arguidos a pagarem-lhe as quantias descontadas e não entregues.

  1. A arguida "C.........., Ldª." requereu a abertura de instrução e pediu, a final, que: I - fosse ordenada a abertura de instrução; II - fosse proferido despacho de não pronúncia; ou III - fosse proferido despacho de arquivamento no que respeita ao período de Maio a Agosto de 1999; IV - fosse o processo arquivado relativamente aos demais períodos, excepto quanto aos períodos de 12/2000 a 11/2001 e 6/2002 a 3/2005; V - fosse declarada a suspensão provisória do processo, ao abrigo do art. 281º do C.P.P.

    O pedido foi atendido e a instrução foi declarada aberta.

  2. Entretanto o Instituto de Segurança Social, I.P., requereu a sua admissão como assistente, pedido ao qual a arguida "C.........., Ldª." se opôs.

    Não obstante a oposição foi aquele instituto admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente.

  3. O processo prosseguiu os seus termos e em 27-11-2007 foi proferida a seguinte decisão instrutória: «... O Ministério Público deduziu acusação contra "C.........., Lda." e B.........., melhor identificados nos autos, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. nos artigos 107º e 105º, nº 1 do RGIT.

    Inconformados com esta acusação os arguidos requereram a abertura da instrução e colocaram as seguintes questões: - aos presentes autos concernem a cotizações desde Maio de 1999 a Março de 2005, pelo que a lei aplicável ao caso dos autos é o regime do RJIFNA e não o regime do RGIT como se refere na acusação; ainda que se entenda ser o RGIT o diploma aplicável, o artigo 105º está ferido de inconstitucionalidade material pelo facto de que se basta com a mera não entrega da prestação tributária ao Estado; - sendo a apropriação um elemento do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, tal não se verifica nos presentes autos uma vez que haveria um acordo prestacional celebrado entre a arguida e a Segurança Social, pelo que a falta de entrega foi consentida por esta.

    - foram feitos pagamentos não tomados em conta na acusação; - as cotizações dos membros dos órgãos estatutários referentes aos períodos de Maio a Agosto de 1999 foram praticados na vigência do RJTFNA e é hoje jurisprudência firme que a falta de entrega dessas cotizações não constituía ilícito penal à luz do art. 27º-B do RJIFNA.

    ... De acordo com o disposto no artigo 308º do C. P. Penal chegou o momento de analisar o processo e verificar se foram recolhidos indícios suficientes que apontem para uma possibilidade razoável dos arguidos, em sede de julgamento, serem condenados pela prática do crime que lhes é imputado.

    O artigo 24º, nº 1 do RJIFNA (DL 394/93 de 14/01, entrado em vigor em 1/1/2004) dispunha que "Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido." Mais se consagra em tal preceito legal que se considera também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja - cfr. nº 2 do art. 24º.

    Por seu turno, o artigo 27º-B do mesmo diploma (aditado pelo D.L. nº 140/95, de 14.06), estabelece que "as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no artigo 24º" - crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social.

    Nos termos do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias publicado pela Lei nº 15/200 1 de 5 de Junho "Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias." Para efeitos deste número, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja - v. nº 2 do citado art. 105º.

    E, segundo esse novo diploma, passaram a ser punidas pela prática do crime abuso de confiança contra a Segurança Social as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social - cfr. art. 107º, nº 1.

    Como se viu esses tipos legais pressupõem uma conduta ou acção omissiva.

    De facto, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se quando o agente não entrega, total ou parcialmente, a prestação tributária ao Fisco, fazendo-a sua, integrando-a na sua esfera patrimonial.

    No crime de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança Social a conduta consiste na falta de entrega à Segurança Social dos valores descontados nas remunerações dos trabalhadores e a ela destinados.

    Deste modo, as referidas infracções têm como requisitos a apropriação total ou parcial da prestação tributária, que a mesma tenha sido deduzida pelo agente nos termos legais e que o mesmo esteja obrigado a entregá-la ao credor tributário, pressupondo, assim, a existência de um prejuízo patrimonial para o Fisco/Segurança Social, que deixa de receber as prestações não entregues, retidas pelo agente, que delas se apropria, visando-se tutelar a confiança do Estado em relação a quem a lei impõe a obrigação de receber o imposto ou descontar a contribuição.

    É necessária igualmente a existência de dolo, uma vez que a punição por negligência não está especialmente prevista - cfr. arts. 13º e 14º do Código Penal.

    O elemento objectivo que maior controvérsia suscita é, sem dúvida, o da apropriação.

    Entende-se que a apropriação consiste na integração na esfera patrimonial dos agentes dos valores correspondentes ao imposto retido ou recebido ou das contribuições deduzidas e não entregues à Segurança Social, os quais, ao inverter o título da posse, passam a dispor de tais quantitativos para satisfazer compromissos de outra ordem, independentemente da existência ou não de lucro daí directa ou indirectamente resultante.

    A apropriação, para efeitos do tipo de abuso de confiança (fiscal e em relação à Segurança Social), consiste, portanto, na inversão do título de posse ou detenção, implicando essa inversão que o agente passe a comportar-se em relação à coisa recebida por título não translativo de propriedade, "uti dominus".

    Igualmente se aceita que esse "animus" tem necessariamente de se exteriorizar "através de um comportamento que o revele e o execute", isto é, através de "actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais".

    Numa outra perspectiva, interessa realçar que a apropriação que releva não é a apropriação em benefício daquele que actua em representação de outrem, no caso a apropriação em benefício dos arguidos.

    Efectivamente, os crimes em apreço são crimes específicos próprios em que o círculo de autores é constituído, não pelo contribuinte originário mas pelo substituto, que é investido na qualidade de depositário da contribuição e é colocado temporariamente na detenção desta, com vista à sua entrega ao Fisco ou à Segurança Social.

    Por conseguinte, trata-se de crimes cujo sujeito activo é, necessariamente, o transmitente de bens ou prestador de serviços que liquidou ao respectivo adquirente o imposto e o devedor de rendimentos de trabalho, ou seja, o substituto do contribuinte originário.

    Tal não afasta, porém, a responsabilidade criminal dos gerentes, sócios, ou de qualquer outro titular de um órgão de uma pessoa colectiva, bem como de quem actua em representação legal ou voluntária de outrem, já que aqueles, actuando em nome da sociedade, apesar de não terem as qualidades exigidas pelo tipo, são punidos pelos artigos 24º e 27º-B, em conjugação com o disposto no art. 12º do Cód. Penal, cujo princípio é reafirmado pelo art. 6º, nº 1, do Dec. Lei nº 20-A/90 de 15/01.

    E tal punição verificar-se-á ainda que o tipo legal de crime exija que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado - cfr. alínea b) do nº 1 do citado art. 6-.

    Serve isto dizer que a apropriação a que se refere os arts. 24- e 27--B é aquela que é efectuada a favor do sujeito activo do crime - o substituto do contribuinte originário.

    Sendo esse sujeito activo uma pessoa colectiva, para que quem actua em nome desta seja punido bastará que o representante efectue a apropriação não para si mesmo mas a favor da sua representada, sendo, por isso, irrelevante que o representante de nada se tenha apropriado no seu próprio interesse.

    "Muito embora no actual RGIT (art. 105º, nº 2) - e ao contrário do que sucedia com o anterior RJIFNA (art. 24º) - não se faça expressa referência à apropriação, todavia, ela está contida pelo menos de forma implícita no espírito do texto normativo, sendo ela uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, não...

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