Acórdão nº 279/08 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Maio de 2008

Magistrado ResponsávelCons. José Borges Soeiro
Data da Resolução14 de Maio de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 279/2008

Processo n.º 756/07

  1. Secção

Relator: Conselheiro José Borges Soeiro

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

  1. A., Recorrido nos presentes autos em que figura como Recorrente o Ministério Público, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Santa Comba Dão, em 19 de Dezembro de 2003, acção de impugnação e investigação da paternidade contra B., C. e a Herança aberta por óbito de D., representada pelos seus herdeiros, pedindo (1) que se declare que não é filho do primeiro réu e (2) que se reconheça que é filho do falecido D.. Pediu ainda que lhe seja reconhecida a qualidade de herdeiro, entregues as quantias entretanto recebidas pelos outros herdeiros e declarados nulos os actos por eles realizados.

    Por despacho saneador de 30 de Maio de 2005, foram considerados provados os seguintes factos:

    “Encontram-se provados, nos presentes autos, com relevância para a boa decisão da causa, os seguintes factos:

    1. O autor é filho da ré C., tendo nascido a 08.07.1967.

    2. A referida C. foi casada em primeiras núpcias com o réu B. em 16.08.1956, de quem se divorciou em 18.05. 1984.

    3. À data do nascimento do autor, a ré C. encontrava-se separada de facto do réu B. desde 1965, sendo que desde então não mais com aquele havia coabitado, tomado refeições ou vivido em condições análogas às dos cônjuges, não mais com aquele tendo mantido relações de sexo, nomeadamente nos 180 dias anteriores ao período da concepção do autor.

    4. Em tal período de concepção, e durante 3 anos, a ré C. viveu com o falecido D. em relação idêntica e exclusiva à dos cônjuges, uma vez que já se encontrava separada de facto do seu então marido.

    5. O referido D. era feirante e com ele a ré C. conviveu intimamente, mantendo ambos uma relação amorosa de carácter notório, sendo vistos em locais públicos, acompanhando-o a ré C. e com ele residindo no lugar de Lageosa nos três anos de convivência que com aquele manteve.

    6. O autor foi concebido na constância de tal relação, sendo seu pai biológico o referido D..

    7. Durante a sua vida, o falecido D. conviveu com o autor, chamava neta à filha deste, e ajudou-o economicamente, nomeadamente, no ano de 1992, altura em que lhe comprou uma camioneta e o ajudou no negócio, tendo ainda nesse ano com ele residido.

    8. Pelo menos desde essa data, o autor foi reputado como filho pelo falecido D., tratado como tal por aquele e assim reconhecido publicamente, o que só foi interrompido pelo óbito súbito de D., que faleceu em 03.01.2002, vítima de um atropelamento mortal.

      1) O autor e o falecido D. desentenderam-se sem que este tenha chegado a reconhecer-lhe a paternidade, nunca tendo também o autor, até à instauração da presente acção, impugnado formalmente a paternidade que se encontrava estabelecida a favor do marido de sua mãe.”

      O Réu E. contestou, nomeadamente, por excepção, invocando a caducidade do direito de acção do Autor nos termos do artigo 1842.º, alínea c), do Código Civil.

      Considerando que o processo reunia os elementos necessários à decisão da causa, o Exmo. Juiz da Comarca de Santa Comba Dão, no despacho saneador, decidiu pela seguinte forma:

    9. Não aplicar o prazo de caducidade previsto no artigo 1842º, n.º 1, al. c) do Código Civil por inconstitucionalidade;

    10. Julgar a acção totalmente procedente, por provada, e, em consequência:

      – Reconhecer que o autor, A., não é filho de B., ordenando o respectivo cancelamento do registo de nascimento;

      – Reconhecer que o falecido D. é o pai do autor A., ordenando-se o respectivo averbamento no registo de nascimento.”

      Na parte respeitante à questão de constitucionalidade, a decisão recorrida fundou-se, essencialmente, na seguinte argumentação:

      “4 Numa primeira abordagem seria pois de afirmar, em obediência ao sobredito artigo 1842° e às razões acima aduzidas, a caducidade do direito do autor de intentar a presente acção, o que determinaria a improcedência da mesma.

      Mas será de aplicar ao caso em apreço (em que se encontra cientificamente comprovado que o autor não é filho do marido da mãe) o referido prazo de caducidade?

      Na esteira do doutamente decidido no acórdão do STJ de 31.01.2007 (disponível em www.dgsi.pt), somos de entender que não, na medida em que – conforme aí foi sustentado – o respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade do direito de impugnar a paternidade.

      Conclui-se em tal aresto pela inconstitucionalidade da citada disposição legal, com argumentos inteiramente aplicáveis ao caso dos autos, por identidade de razões (ainda que aí o juízo de inconstitucionalidade recaia sobre a al. a) e no nosso caso esteja em discussão a al. c), sufragando-se essencialmente no citado acórdão o entendimento de que perante a verdade biológica trazida aos autos pelo exame de ADN não relevam os prazos que a lei impõe para o exercício do direito de acção, por ofender o direito à ‘identidade pessoal’, constitucionalmente consagrado nos artigos 25°, 26°, n.° 1, e 18°, n.° 2 da CRP.

      A este propósito convirá chamar à colação o acórdão n.° 23/2006 do Tribunal Constitucional (publicado no DR, I Série, de 8 de Fevereiro de 2006), por força do qual foi declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 1817° do Código Civil, na medida que prevê para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante – tendo, em virtude de tal declaração de inconstitucionalidade, deixado de existir qualquer prazo de caducidade para a propositura das acções de investigação de paternidade, como acontece, aliás, na maior parte dos sistemas jurídicos que nos são próximos, consagrando a imprescritibilidade das acções de reconhecimento da filiação propostas pelo filho os artigos 133° do Código Civil Espanhol, 270° do Código Civil Italiano, 1600° do Código Civil Alemão e 1606.º do Código Civil Brasileiro (cfr., neste sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 23.05.2006, proferido no processo n.º 776/06-3 e relatado pelo Dr. Cura Mariano, onde se pode ler que ‘até nova intervenção do legislador nesta matéria, o filho poderá exercitar a todo o tempo, durante toda a sua vida, o seu direito a ver judicialmente reconhecida a sua filiação’).

      Ora, o que o acórdão do STJ vem dizer, com o que concordamos, é que os pressupostos do referido acórdão do Tribunal Constitucional ‘têm inteira aplicação ao caso concreto, por tal temática ser muito semelhante à ora em apreciação’.

      Como parâmetros constitucionais mais significativos para aferir das limitações ao direito de investigar a paternidade, apela o acórdão em questão ao direito de constituir família (por um lado), com a correspectiva previsão de meios para o estabelecimento jurídico dos vínculos da filiação; e (por outro lado) ao direito à identidade pessoal, com que abre logo o n.° 1 do artigo 26.º da CRP. Mas para além disso, vai buscar apoio à ideia de que se tem verificado ‘uma progressiva, mas segura e significativa, alteração dos dados do problema, constitucionalmente relevantes, a favor do filho e da imprescritibilidade da acção – designadamente com o impulso científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética e a generalização dos testes genéticos de muito elevada fiabilidade. Alteração esta que ‘não deixa incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente a favor do direito de conhecer a paternidade’.

      Grande parte da responsabilidade vai aqui – continua o citado aresto – para ‘o peso dos exames científicos nas acções de paternidade e para a alteração da estrutura social e da riqueza, levando a encarar a outra luz a dita ‘caça às fortunas’ Mas nota-se também um movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens, com desenvolvimentos da genética, nos últimos 20 anos, que têm acentuado a importância dos vínculos biológicos (mesmo se porventura com exagero do seu determinismo). O desejo de conhecer a ascendência biológica tem sido tão acentuado que se assiste a movimentações no sentido de afastar o segredo sobre a identidade dos progenitores biológicos, mesmo para os casos de reprodução assistida’.

      ‘Não deve, igualmente, ignorar-se a valorização da verdade e da transparência, com a possibilidade de acesso a informação e dados pessoais e do seu controlo, com a promoção do valor da pessoa e da sua ‘autodefinição’, que inclui, inevitavelmente, o conhecimento das origens culturais e genéticas. A partir de 1997 consagrou-se aliás, expressamente, um direito ao desenvolvimento da personalidade no artigo 26° da CRP (.) comportando dimensões como a liberdade geral de acção e uma cláusula geral de tutela da personalidade. E se tanto o pretenso filho como o suposto progenitor podem invocar este preceito constitucional, não é excessivo dizer-se que ele pesa mais do lado do filho, para quem o direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens.’

      Dentro deste contexto, e partindo das premissas assinaladas, facilmente se rebatem os argumentos que acima expendemos a propósito da (im)prescritibilidade das acções de filiação.

      A começar pelo argumento do ‘riscos de fraudes’ decorrentes de um envelhecimento das provas, o qual não pode hoje ser considerado relevante. É que os avanços científicos permitiram o emprego de testes de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza e, por esse meio, mesmo depois da morte é hoje muitas vezes possível estabelecer com grande segurança a maternidade ou a paternidade.

      Por outro lado, também o argumento de que as acções de impugnação / investigação visam frequentemente fins tão-só patrimoniais de ‘caça à herança’ tem hoje de ser visto a outra luz. Para além das mudanças operadas quer no acesso ao direito, quer no acesso à riqueza (podendo muitas acções corre hoje entre autores e réus com meio de fortuna não muito diversos), a verdade é que o citado argumento se situa num plano predominantemente...

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