Acórdão nº 213/08 de Tribunal Constitucional (Port, 02 de Abril de 2008

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução02 de Abril de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 213/2008

Processo n.º 671/07

2ª Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

  1. foi condenado por sentença proferida em 16-11-2006, no processo comum, com tribunal singular, n.º 1536/04.0 PBAVR, pendente no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha:

    1. pela autoria material de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;

    2. pela autoria material de um crime de injúrias, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;

    3. em cúmulo jurídico das referidas penas, na pena única de 330 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;

    4. na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses;

    5. e, ainda, no pagamento à demandante B. da indemnização no montante de € 650,00, acrescida de juros à taxa legal vencidos desde 16 de Junho de 2006 até integral pagamento.

    Foi interposto recurso da referida decisão pelo arguido, pugnando este pela nulidade da sentença condenatória, com fundamento, para além do mais, na valoração pelo Tribunal de primeira instância de provas nulas, porque obtidas mediante ilegítima intromissão na vida privada.

    O Tribunal da Relação de Coimbra viria a julgar este recurso totalmente improcedente, por acórdão de 9-5-2007, mantendo assim a sentença recorrida.

    Para tanto, o Tribunal da Relação de Coimbra fundamentou essa decisão da seguinte forma, na parte que ora releva:

    “(...) 3.3. Se é ou não (e corolário, neste caso) admissível a valoração como meio de prova do documento junto a fls. 198/203 dos autos (conclusões 9ª a 17ª).

    A resposta apresentada pelo recorrido Ministério Público, a propósito, mostra-se pertinente, motivo porque a seguiremos de perto. Assim:

    A Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro [Lei da Protecção de Dados Pessoais], define como “Dados pessoais”, qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular, identificada ou identificável (“titular dos dados”), é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social.

    O tratamento de tais “dados pessoais” mostra-se, todavia, submetido a diversas medidas tendentes a acautelar a respectiva segurança e confidencialidade.

    Na verdade, em especial, o seu artigo 17.º, n.º 1 disciplina que os responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional mesmo após o termo das suas funções.

    Vale por dizer no caso concreto, que a responsável pelo tratamento de tais dados – C., S.A. –, bem como o seu pessoal, se encontravam obrigados ao dever de sigilo profissional – o qual, é consabido, se traduz na proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados no exercício ou em razão de uma actividade profissional.

    Este dever, correspondente ao intuito de evitar a devassa à reserva da vida privada alheia, não é, porém, absoluto.

    Norma nuclear respeitante ao regime constitucionalmente fixado para os direitos, liberdades e garantias é a constante do artigo 18.º da CRP, e em cujos termos se mostra admissível a restrição de certos direitos fundamentais, para garantir a salvaguarda de outros com igual arrimo legal. Princípios norteadores são os de que tais restrições se limitem ao estritamente necessário para alcançar os objectivos, apontando-se como critério aferidor o de uma proporcionalidade entre os meios legais restritivos e os fins obtidos. Isto é, em outras palavras, respigadas da dita resposta, “a limitação dos direitos deverá mostrar-se necessária e ser imposta com fundamento em motivo social relevante, num justo equilíbrio entre o interesse público e a vida privada do cidadão.”

    O artigo 35.º, n.º 4 da CRP concretiza esta orientação, exigindo que seja a lei a estabelecer as condições de acesso a dados pessoais de terceiros.

    O fundamento da discórdia do recorrente traduz-se em que não existe como legalmente tipificado um qualquer regime que permita o acesso aos dados pessoais constantes dos documentos juntos a fls. 199 a 203, em especial, à listagem das passagens registadas pelo identificador “via verde”, associado ao automóvel ..-..-...

    Quid iuris?

    Pelo contrário, adiantamos, o regime penal adjectivo contém normas expressas relativas à problemática da quebra de sigilo.

    Ao que ora releva, o decorrente do artigo 182.º, n.º 1, em cujos termos as pessoas obrigadas ao dever de sigilo (indicadas nos artigos 135.º e 137.º), apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem em sua posse ou devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou segredo de Estado.

    Isto é, não se antolha aqui algo mais do que a possibilidade de a autoridade judiciária poder ordenar por despacho a requisição de documentos dos quais constem dados pessoais.

    Na situação presente, a listagem de fls. 200, e demais documentação que a antecede e o recorrente impugna, foi junta aos autos na sequência de um despacho do Ministério Público (cfr. fls. 153 e 154).

    Ou seja, mostrava-se possível ao Tribunal a quo, atento ademais o disposto pelo artigo 125.º do CPP, valorar, como o fez, os questionados documentos (...)”.

    O Arguido interpôs então recurso da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), em que, após convite para corrigir o requerimento inicial, suscitou a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 125.º e 126.º, n.º 3, e, por extensão do artigo 374.º, n.º 2 “in fine”, todos do Código de Processo Penal (C.P.P.), quando interpretadas no sentido de ser permitida a admissão e valoração de provas documentais relativas a dados pessoais do arguido respeitantes à sua vida privada retirados de uma base informatizada, sem o respectivo consentimento, por violação do disposto nos artigos 17.º, 18.º, n.º 1 a 3, 32.º, n.º 8, e 35.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.).

    Concluiu, do seguinte modo, as suas alegações:

    “1º O presente recurso vem do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2007.05.09, que por sua vez confirmou a também douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-a-Velha, de fls. 236 a 248 dos autos, pela qual o ora Recorrente foi condenado nos termos nela expressos que por economia se dão por reproduzidos nesta sede;

    1. O julgamento da questão-de-facto constante da douta sentença de 1ª Instância, entretanto confirmada pela Relação “a quo”, fundou-se no conjunto da prova produzida em audiência, e designadamente nos documentos de fls. 165 (CRC do arguido), e de fls. 8, 13, 60 e 198-203 dos autos;

    2. O documento de fls. 198 a 203, requisitado por despacho do Ministério Público a C., SA, inclui dados informáticos ou informatizados relativos ao identificador “via verde” emitido para e em nome da dita firma “D., LDA.”, designadamente concernentes ao trajecto percorrido por uma das suas viaturas na data dos factos – 2004.08.08, eventualmente o veículo automóvel ligeiro 64-11-XB, dado como conduzido pelo aqui Recorrente;

    3. A questão arguida por esse Venerando Tribunal Constitucional reconduz-se à admissibilidade do documento de fls. 198-203 por inconstitucionalidade e logo também por ilegalidade, que foi essencial à convicção do Digno Tribunal que julgou a questão-de-facto, e logo para a condenação do arguido;

    4. A questão da (in)constitucionalidade foi desde logo levantada em sede da motivação do recurso oportunamente interposto para a indicada Veneranda Relação, designadamente concretamente na respectiva 15ª conclusão;

    5. A Veneranda Relação “a quo”, admitindo a legalidade e constitucionalidade da requisição do documento em causa desde que requisitada por autoridade judiciária (no caso em apreço, o Ministério Público, fls. 153 e 154 dos autos), dando por adquirido a existência de lei ordinária procedente que o admite, reconduziu a questão em apreço à extensão do dever de sigilo profissional prevista no art. 17º, nº 1 da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção de Dados Pessoais), no caso concreto da sociedade comercial “C., SA.” e seus agentes, assumindo a respectiva quebra como viável à luz do nº 2 do art. 18º da CRP enquanto “limitação de direitos” imposta por motivo social relevante, visando o equilíbrio entre o interesse público e a tutela da vida privada do cidadão;

    6. O Digno Tribunal “a quo” defendeu ainda que o regime penal adjectivo contém(inha) normas expressas relativas à quebra do sigilo, desde logo o art. 182º, nº 1, aplicável às pessoas indicadas nos artigos 135º a 137º, todos do CPP, e concluiu pela admissibilidade da prova documental em causa e respectiva valoração ao abrigo do artigo 125º do mesmo diploma legal;

    7. Mais afirmando, que a bondade dessa orientação é acolhida no nº 4 do art. 35º da CRP, ao relegar para a lei ordinária as condições de acesso aos dados pessoais de terceiro;

    8. O recorrente, à luz do conteúdo gramatical do preceito constitucional ora indicado, é terceiro para com o Estado, e logo os tribunais que o integram;

    9. À norma em causa é extensível o regime dos direitos liberdades e garantias, sendo directamente aplicáveis e obrigando entidades públicas e privadas – arts. 17º e 18º, nº 1 da CRP;

    10. Os direitos, liberdades e garantias expressamente previstos na CRP só podem ser restringidos pela lei ordinárias nos casos expressamente...

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