Acórdão nº 3/11 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Janeiro de 2011

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução04 de Janeiro de 2011
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 3/2011

Processo n.º 561/10

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

Relatório

O Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa (CRP), deduziu pedido de fiscalização abstracta sucessiva, requerendo a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas que constam do artigo 9.º - A, n.º 1 e 2, do Regulamento n.º 52-A/2005, de 1 de Agosto (Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados), na redacção que lhe foi dada pela Deliberação n.º 3333-A/2009, de 16 de Dezembro, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados.

Invocou, em resumo, os seguintes fundamentos:

O artigo 9.º-A do Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados, aditado pela Deliberação n.º 3333-A/2009, de 16 de Dezembro, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, criou um novo exame nacional de acesso ao estágio, que consiste na realização de uma prova escrita que incide sobre as disciplinas jurídicas que estão previamente definidas no referido Regulamento.

Deverão submeter-se a tal exame os candidatos que tenham obtido a respectiva licenciatura em Direito após o processo de Bolonha, dele ficando excluídos os candidatos que sejam detentores do grau de mestre em Direito e aqueles que tenham obtido a licenciatura antes do Processo de Bolonha.

A introdução de um exame nacional de acesso ao estágio é uma medida absolutamente inovatória face ao quadro legal referente à inscrição na Ordem dos Advogados e, concomitantemente, no acesso à profissão de advogado.

De facto, o artigo 187.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, determina que “podem requerer a sua inscrição como advogados estagiários os licenciados em Direito por cursos universitários nacionais ou estrangeiros oficialmente reconhecidos ou equiparados”.

Por outro lado, o Estatuto elenca, no respectivo artigo 181.º, n.º 1, alíneas a) a e), as restrições ao direito de inscrição passíveis de serem aplicadas e regulamentadas pela Ordem, não podendo, designadamente, ser inscritos: os que não possuam idoneidade moral para o exercício da profissão, os que não estejam no pleno gozo dos direitos civis, os declarados incapazes de administrar as suas pessoas e bens por sentença transitada em julgado, os que estejam em situação de incompatibilidade ou inibição do exercício da advocacia, bem como os magistrados e funcionários que, mediante processo disciplinar, hajam sido demitidos, aposentados ou colocados na inactividade por falta de idoneidade moral.

Comprovados os demais requisitos e atestada a posse do grau de licenciado em Direito, não prevê o Estatuto da Ordem, em momento prévio e condicionante da inscrição na referida associação pública, qualquer outra prova de conhecimentos científicos, que se presumirão adquiridos.

Deste modo, a imposição da aprovação no exame a que alude o artigo 9.º-A do Regulamento como condição para que o candidato licenciado em Direito possa requerer a sua inscrição na Ordem dos Advogados, aparece como uma medida inovatória, adicionalmente restritiva do acesso à formação (na Ordem dos Advogados), logo de acesso ao exercício da profissão (de advogado), estando, como se sabe, este dependente daquele.

Não cabe aqui discutir o eventual mérito das razões invocadas pela Ordem para a introdução do exame de acesso ao estágio em si mesmo e nos termos em que o fez.

O artigo 9.º-A do Regulamento de Estágio foi aprovado, passe o pleonasmo, por mero regulamento, e, consequentemente, em violação portanto da reserva de lei, imposta, desde logo, pelo artigo 18.º, n.º 2 e 3 da Constituição.

De facto, e como se disse já, a circunstância de o licenciado em Direito estar dependente da aprovação num exame para poder requerer a sua inscrição na Ordem dos Advogados constitui uma verdadeira restrição ao acesso à formação da Ordem, única via que permite o acesso à profissão de advogado.

Assim sendo, a introdução do referido exame de acesso constitui uma verdadeira restrição à liberdade de escolha de profissão, garantida pelo artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, que determina que “todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade”.

A liberdade de escolha de profissão faz parte do elenco dos direitos, liberdades e garantias cuja restrição só pode, nos termos do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, do texto constitucional, ser operada por via de lei formal, isto é, lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo.

Em anotação precisamente ao art.º 47.º, n.º 1, da Lei Fundamental, referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra 2005, p. 476): “A Constituição expressamente admite, no n. º 1, “as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade”. Quer dizer: a liberdade de profissão – a de escolha e, a fortiori, a de exercício – fica logo recortada no catálogo constitucional de direitos conexa com os dois postulados limitativos, com a consequente compressão do seu conteúdo. As restrições têm de ser legais, não podem ser instituídas por via regulamentária ou por acto administrativo".

Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra 2007, p. 658): “as ordens profissionais e figuras afins (“câmaras profissionais”, etc.) não podem estabelecer autonomamente restrições ao exercício profissional – as quais só podem ser definidas por lei (reserva de lei).

Deste modo, desde logo se conclui que a restrição, por via regulamentar, concretamente pelas normas do artigo 9.º-A, n.ºs 1 e 2, do Regulamento Nacional de Estágio, do direito em causa, traduz uma violação do regime formal dos direitos, liberdades e garantias, designadamente a imposição constitucional, ínsita nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Lei Fundamental, de que eventuais restrições se façam por lei em sentido formal.

Integrando a liberdade de escolha de profissão o elenco dos direitos, liberdades e garantias a que se refere o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, a restrição imposta pelas normas do art.º 9.º-A do Regulamento deveria ter sido promovida por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei por aquela autorizado.

Neste sentido, e analisando situação idêntica, conclui-se, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 347/92, que “a definição de quem reúne as condições legais para se inscrever [numa associação pública profissional, no caso do Acórdão a Câmara dos Solicitadores] inclui-se na reserva parlamentar, havendo, por isso, de constar de lei formal ou de decreto-lei do Governo, devidamente autorizado para o efeito".

Diga-se, ainda, que de acordo com abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria, mesmo que se entendesse que a introdução do exame nacional de acesso ao estágio da Ordem dos Advogados não constituiria uma verdadeira restrição da liberdade de escolha de profissão, “a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias, abrange “tudo o que seja matéria legislativa, e não apenas as restrições do direito em causa” (Acórdão n.º 255/02, que cita o Acórdão n.º 128/00).

Desta forma, as normas em causa são inconstitucionais por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Lei Fundamental.

Em resposta, o Conselho Geral da Ordem dos Advogados, representado pelo seu Presidente, o Bastonário, veio responder nos termos que, em síntese, se seguem:

O Regulamento Nacional de Estágio foi alterado pela Deliberação n.º 3333-A/2009, de 16 de Dezembro, do Conselho Geral, no sentido de criar uma exame nacional de acesso ao estágio, nos termos do artigo 9.º-A, n.ºs 1 e 2.

A norma que criou o exame de acesso ao estágio teve, nos termos da deliberação que a aprovou, um objectivo claro de garantir a eficácia da formação e a valorização profissional do estágio, associadas à dignidade funcional e ao prestígio social da profissão de advogado.

A deliberação esclarece ainda que com a instituição do exame de acesso ao estágio se visou assegurar que “os licenciados que pretendem ingressar no estágio na Ordem possuam os conhecimentos jurídicos necessários à formação profissional que irão receber. Daí que a Ordem tenha o direito, que é simultaneamente um dever, de verificar previamente a preparação científica de que são portadores esses candidatos à...

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