Acórdão n.º 1/97, de 05 de Março de 1997

Acórdão n.º 1/97 - Processo n.º 845/96 I - O pedido 1 - O Presidente da República veio solicitar ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do decreto n.º 58/VII, aprovado em 31 de Outubro de 1996 pela Assembleia da República e subordinado ao título 'Criação de vagas adicionais no acesso ao ensino superior', cujo conteúdo é o seguinte: 'Artigo 1.º Os estudantes candidatos ao ingresso no ensino superior que, na sequência dos exames de Setembro de 1996, tenham obtido nota de candidatura superior em cada par curso/estabelecimento ao último colocado para o mesmo par curso/estabelecimento na 1.' fase têm o direito ao ingresso pretendido no ano lectivo de 1996-1997.

Artigo 2.º O Ministério da Educação, em colaboração com os estabelecimentos públicos do ensino superior e com pleno respeito pela sua autonomia, deve tomar as medidas necessárias - nomeadamente as de natureza regulamentar, financeira e de autorização de contratação de pessoal docente - para assegurar a criação das vagas adicionais necessárias que permitam a matrícula dos estudantes referidos no artigo 1.º Artigo 3.º A criação pelo Ministério da Educação dessas vagas adicionais deve ser antecedida de consulta aos órgãos directivos das respectivas escolas, de forma a conhecer os meios de que careçam para a criação das vagas adicionais necessárias.

Artigo 4.º As vagas a que se refere o artigo 2.º serão criadas por portaria, a publicar no prazo de 15 dias após a publicação da presente lei.

Artigo 5.º 1 - Nos casos em que o número de vagas adicionais a criar exceda em cada par curso/estabelecimento 10% do número de vagas inicialmente fixado para o ingresso no ano lectivo de 1996-1997 pode aplicar-se o disposto nos números seguintes.

2 - Em casos excepcionais, devidamente justificados, em que não seja possível criar vagas adicionais em número superior ao previsto no número anterior, o Ministério da Educação deve abrir a possibilidade de ocupação, inteiramente voluntária, das vagas livres noutros pares curso/estabelecimento para os quais esses estudantes disponham de habilitação adequada.

3 - Em relação aos casos de não colocação que ainda subsistam, esgotadas as possibilidades de criação de vagas adicionais e de ocupação de vagas livres noutros cursos/estabelecimentos, deve ser assegurada a cada estudante a colocação extraconcurso, no próximo ano lectivo, no mesmo curso/estabelecimento em que se deveria ter matriculado no presente ano lectivo.

4 - As vagas a disponibilizar na colocação extraconcurso referida no número anterior deverão ser supranumerárias, de modo a não afectarem o número de vagas do concurso geral do próximo ano e a não prejudicarem a sua conveniente expansão.

Artigo 6.º O presente diploma aplica-se exclusivamente à matrícula e inscrição no ensino superior dos candidatos ao concurso de ingresso no ano lectivo de 1996-1997.

Artigo 7.º 1 - A presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997.

2 - A entrada em vigor pode ser antecipada por decreto-lei.' 2 - As questões de constitucionalidade suscitadas radicam no entendimento de que os artigos 1.º e 2.º do referido decreto não são nem uma alteração legislativa do regime material de acesso ao ensino superior (uma vez que o Decreto-Lei n.º 28-B/96, de 4 de Abril, não terá sido revogado, no todo ou em parte) nem uma alteração das competências administrativas (atribuídas ao Governo por aquele diploma legal).

As normas sindicadas consubstanciariam antes uma alteração excepcional e retroactiva da regulamentação do concurso nacional de acesso ao ensino superior para o ano lectivo de 1996-1997, fixada pela Portaria n.º 254/96, de 13 de Julho. Efectivamente, tais normas determinam que os exames da 2.º fase dêem acesso a quaisquer cursos e estabelecimentos de ensino, desde que os candidatos tenham obtido notas superiores à do último candidato neles colocado na 1.' fase, e promovem, por conseguinte, uma alteração do número de vagas definido por aquela portaria. As normas em crise implicariam, assim, a criação, pela Assembleia da República, de vagas determinadas, individualizáveis, visto que todas as alterações foram aprovadas já após a apresentação das candidaturas à 2.' fase.

3 - O Presidente da República indicou como primeiro fundamento do seu pedido a violação do princípio da separação e interdependência de poderes pelas normas do decreto, com base em vários argumentos alternativos, que se podem sintetizar do seguinte modo:

  1. Em primeiro lugar, poderá configurar-se uma decisão tomada no âmbito da função administrativa, embora sob a forma de lei, por o conteúdo das normas previstas nos artigos 1.º e 2.º do decreto n.º 58/VII constituir, alegadamente, regulamentação e execução de actos legislativos e satisfação pontual de necessidades colectivas (não sendo alteração legislativa do regime material de acesso ao ensino superior nem alteração das competências administrativas anteriormente previstas, mas sim uma modificação excepcional e retroactiva, cuja validade se restringiria ao concurso do presente ano lectivo, quando o respectivo processo de candidaturas já se encontrava concluído). Haveria, pois, uma intrusão no que pode ser designado como núcleo essencial da função administrativa.

    Em reforço de tal argumento, invoca-se a circunstância de aquelas normas se referirem a um domínio que está remetido, organicamente, para as competências administrativas do Governo e em que este já exerceu as suas competências através de actos típicos do exercício da função administrativa as portarias.

    Por fim, esclarece-se que este primeiro argumento é enunciado partindo do pressuposto de que 'alguma doutrina e jurisprudência constitucionais' entendem que a Constituição Portuguesa 'atribui ao Governo, relativamente à Assembleia da República, uma reserva de administração'.

  2. De acordo com o segundo argumento - e já independentemente do pressuposto da 'reserva geral de administração' -, a Assembleia da República teria invadido uma área de competências administrativas especificamente atribuídas ao Governo, nos termos do artigo 202.º, alíneas c), d) e g), da Constituição. Tratar-se-ia da competência para a feitura dos regulamentos necessários à boa execução das leis [alínea c)], da competência para superintender na administração indirecta e exercer tutela sobre a administração autónoma [alínea d)] e da competência para a prática de todos os actos e providências necessários à satisfação das necessidades colectivas [alínea g)].

    Em abono deste argumento, considera-se que se poderá verificar uma invasão dos domínios administrativos especificamente reservados ao Governo e a ultrapassagem consequente dos limites funcionais da Assembleia da República, que, 'em última análise, poriam em causa a racionalidade dos próprios mecanismos políticos de controlo da actividade do Governo por parte do Parlamento e, consequentemente, a actual configuração constitucional da separação e interdependência entre os órgãos de soberania'. Na verdade, conclui-se que se o Governo por impedido de aplicar a lei de acordo com uma avaliação de prognose própria e responsável não será possível ao Parlamento pedir-lhe contas pela execução da sua política (no caso, da sua política educativa).

    Caracteriza-se então a inconstitucionalidade, de acordo com este segundo argumento, como uma violação do princípio da separação e interdependência dos poderes, enquanto este exprime, simultaneamente, uma garantia constitucional de reservas específicas de administração e a imposição de limites funcionais ao legislador parlamentar decorrentes daquelas reservas.

  3. Como terceiro argumento, igualmente autónomo, refere-se que a Assembleia poderá ter violado o princípio da divisão e interdependência de poderes, na medida em que, 'sem fundamento legal bastante e sem prévia habilitação legal, terá posto em crise a função constitucional do Governo como órgão superior da Administração Pública', nos termos do artigo 185.º da Constituição. De facto, a Assembleia da República teria vindo, retroactivamente, introduzir um critério excepcional no concurso de acesso ao ensino superior, revogando decisões administrativas que o Governo tomara, legitimamente, ao abrigo da lei em vigor.

    Nesta perspectiva, a Assembleia da República, ao praticar actos da função administrativa sob a forma de lei, obrigaria o Governo, no caso de pretender alterá-los, a actuar sob a forma de decreto-lei. Ora, desse modo, por força do instituto da ratificação dos decretos-leis, a decisão final caberia sempre e exclusivamente à Assembleia da República, violando-se, assim, a posição do Governo como 'órgão superior da Administração Pública'.

    4 - O Presidente da República invocou ainda, como fundamento alternativo de inconstitucionalidade, a eventual violação do princípio da igualdade pelas mesmas normas, mesmo que se entendesse que elas não violariam o princípio da separação e interdependência de poderes, configurando-se antes como integrantes de uma lei-medida. Os argumentos com que justifica a conclusão de que foi violada a igualdade pela criação de situações de vantagem e discriminações negativas, umas e outras não fundamentadas materialmente, são os seguintes:

  4. Em primeiro lugar, o decreto da Assembleia da República alargou o regime destinado à compensação dos estudantes por deficiências ocorridas na 1.' fase (época de Julho) a todos os candidatos que se apresentaram aos exames de Setembro - tivessem ou não sido vítimas de quaisquer perturbações nos exames de Julho. Assim, foi concedida uma vantagem aos estudantes que só se apresentaram aos exames de Setembro (que, manifestamente, não foram prejudicados por quaisquer irregularidades ocorridas nos exames de Julho), relativamente aos estudantes que só se apresentaram em Julho, sem que se vislumbre qualquer fundamento para esse benefício; b) Em segundo lugar, o decreto discriminou negativamente os estudantes que, não tendo sido colocados no curso e estabelecimento de ensino da sua primeira opção na 1.' fase do...

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