Acórdão n.º 52/92, de 14 de Março de 1992

Acórdão n.º 52/92 Processo n.º 10/89 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional: I - O Provedor de Justiça requereu, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República (na redacção resultante da revisão constitucional de 1982) e do artigo 51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do artigo 49.º da Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão (CGVEEAT), anexas ao Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro de 1960.

O pedido vem fundamentado nos seguintes termos: 1.º A versão primitiva do artigo 49.º da CGVEEAT, anexas ao Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro de 1960 - que se encontra em vigor após a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 296/82, de 28 de Julho, que deu nova redacção ao citado preceito (Acórdão n.º 33/88, de 2 de Fevereiro) -, atribui ao Secretário de Estado da Indústria poderes para nomear o terceiro perito que integra a comissão encarregada de solucionar divergências que se levantarem entre o consumidor e o distribuidor acerca da execução ou da interpretação das disposições das condições gerais, do caderno de encargos da concessão ou da apólice aprovada.

  1. Tendo a referida comissão a natureza de instância arbitral necessária (artigos 5.º, 113.º, 116.º, 118.º e 120.º do citado diploma legal) e pertencendo, como pertence, à EDP, E. P., a distribuição e fornecimento, em exclusivo, da energia eléctrica de alta tensão (Decreto-Lei n.º 205-G/75, de 16 de Abril, e Decreto-Lei n.º 502/76, de 30 de Junho, artigo 2.º) e estando esta empresa pública sujeita à tutela económica e financeira do Estado através do departamento ministerial competente (Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril, artigos 1.º, 12.º e 13.º, e Decreto-Lei n.º 502/76, artigos 5.º e 26.º), terá, forçosamente, de reconhecer-se que o Governo passou, perante as mutações político-legislativas operadas, a ocupar de forma mediata a posição que dantes cabia à entidade concessionária e, por conseguinte, a desempenhar o papel de parte nos diferendos surgidos no âmbito do fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.

  2. E enquanto parte interessada, o Governo (Secretário de Estado da Indústria, hoje Secretário de Estado da Energia) deixou de gozar do estatuto de independência e de imparcialidade susceptível de justificar a faculdade de designação do terceiro perito da comissão à qual se refere o artigo 49.º das CGVEEAT.

  3. A persistência da versão originária desta norma não só contende com o artigo 23.º da Lei Orgânica do Governo - já que os secretários de Estado não dispõem de competência própria -, mas, em sede constitucional, ofende frontalmente os princípios da imparcialidade (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição) e da independência constantes dos artigos 7.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicáveis por força dos disposto no artigo 16.º da Constituição.

E concluiu-se assim: 5.º O artigo 49.º das CGVEEAT, anexas ao Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro de 1960, é, pois, materialmente inconstitucional por violar o disposto no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição e os artigos 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicáveis nos termos do que estabelece o artigo 16.º da Constituição.

Em requerimento posterior, de 4 de Agosto de 1989, o Provedor de Justiça viria, porém, limitar o âmbito do pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 49.º das CGVEEAT à 'parte em que o mesmo normativo defere a nomeação do terceiro árbitro a um membro do Governo'.

Admitido o pedido, foi o Primeiro-Ministro notificado para se pronunciar, nos termos do artigo 54.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

Em resposta, referiu-se assim à norma do artigo 266.º, n.º 2, da Constituição, invocada pelo Provedor de Justiça: [...] Como resulta, aliás, da sua letra, este preceito constitucional é dirigido aos 'órgãos e agentes administrativos', para o exercício da actividade administrativa.

Designadamente, o princípio da imparcialidade respeita especialmente às relações entre a Administração Pública e os particulares, traduzindo-se na necessidade de a Administração ponderar com imparcialidade e isenção os conflitos que surgem no âmbito desta actividade, procurando que as situações sejam resolvidas com equidade e igualdade perante idênticos circunstâncialismos.

[...] Fácil é, pois, concluir que esta norma constitucional visa a actividade administrativa e se dirige aos órgãos e agentes administrativos, apontando-lhes um critério genérico de actuação nas suas relações com os administrados.

E, prosseguindo na argumentação, aduziu, essencialmente, o seguinte: Ora, a norma do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei n.º 43335, ao regular a composição, actuações e competência de uma 'instância arbitral' ou de um 'tribunal necessário' [dúvidas não há sobre esta qualificação cf., por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 86/87, de 25 de Fevereiro], em nada colide com o referido preceito constitucional.

Efectivamente, a possibilidade legal de nomeação pela tutela governamental não é susceptível de pôr em causa a independência e imparcialidade daquela instância arbitral, pelas seguintes razões: Aquele perito não intervém como delegado ou representante do Governo ou em obediência a instrução deste, pois, uma vez nomeado, o perito adquire um estatuto de total independência enquanto membro de uma instância arbitral; Assente a natureza da instância na natureza arbitral necessária da referida comissão de peritos, é inequívoco que os membros desse tribunal arbitral beneficiam do estatuto de isenção no exercício da jurisdição e de garantia de inamovibilidade, uma vez nomeados (cf. declaração de voto de Magalhães Godinho, no Acórdão n.º 32/87, de 28 de Janeiro); Assim, e após a sua nomeação, todos os peritos nomeados actuam como árbitros, com independência e imparcialidade (tanto o terceiro perito como os restantesdois); O Governo não tem qualquer interesse directa na forma de composição dos litígios que opõem a EDP aos seus clientes, pelo que não é parte; O Governo celebrou com a EDP um contrato de concessão (para venda de energia eléctrica em alta tensão) e apenas detém sobre a empresa poderes de intervenção que resultem do mero exercício de tutela, por se tratar de um serviço público essencial; Quanto aos mais, a EDP é uma empresa pública com autonomia administrativa e financeira, e quem a administra e representa é o conselho de gerência.

Concluiu, então, o Primeiro-Ministro: O artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro de 1960, não viola o princípio constitucional da independência e imparcialidade face à natureza da intervenção da instância arbitral necessária, que deve julgar com absoluta isenção, e ao estatuto de total independência que assiste aos respectivosmembros.

II - As normas.

1 - O Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro de 1960, e as CGVEEAT, que lhe são anexas, surgem no quadro da Lei n.º 2002, de 26 de Dezembro de 1944 (Lei de Electrificação do País), que dispunham, na base XXVII, que 'as relações dos concessionários da produção e da grande distribuição com os adquirentes da energia serão reguladas pelas condições gerais de venda em alta tensão e respectivas apólices tipo, a publicar pelo Governo'.

O artigo 49.º daquelas Condições Gerais dispõe assim: Artigo 49.º Comissão de peritos As dúvidas ou divergências que se levantarem entre o consumidor e o distribuidor sobre a execução ou a interpretação das disposições destas condições gerais, do caderno de encargos da concessão ou da apólice aprovada serão decididas por uma comissão de três peritos-árbitros, um indicado por cada uma das partes e o terceiro designado pelo Secretário de Estado da Indústria.

§ 1.º A constituição da comissão referida no corpo do artigo poderá ser requerida por qualquer das partes à Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos, que fixará um prazo não inferior a 15 dias para a indicação dos peritos-árbitros das partes. A falta de indicação do respectivo perito implica a desistência da reclamação ou a aquiescência a ela, consoante a falta for do...

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