Acórdão nº 254/02 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Junho de 2002
Data | 11 Junho 2002 |
Órgão | http://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port |
Proc. n.º 425/02 Acórdão nº 254/02
Plenário
Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I
O pedido e os seus fundamentos
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Em 31 de Maio de 2002, o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 278º, n.ºs 1, 3 e 8, da Constituição da República Portuguesa, e dos artigos 51º, n.º 1, e 57º, n.º 1, da Lei sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, "a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 1º do Decreto da Assembleia da República n.º 3/IX, recebido na Presidência da República no passado dia 24 de Maio para ser promulgado como lei".
O pedido vem acompanhado de fotocópias do Decreto n.º 3/IX da Assembleia da República e da proposta de lei n.º 4/IX apresentada pelo Governo à Assembleia da República.
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O Presidente da República fundamentou as suas dúvidas sobre a constitucionalidade da referida norma nos seguintes termos:
"I.
A liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico são garantias constitucionalmente previstas. E, especificamente no que se refere aos meios de comunicação social do sector público, a Constituição é ainda mais exigente quando, no artigo 38°, n.° 6, obriga a que a sua estrutura e o seu funcionamento salvaguardem a sua independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos.
A própria existência de um serviço público de rádio e de televisão bem como a garantia da sua independência constituem, de resto, os principais objectivos que, do ponto de vista do Presidente da República, interessa preservar. É precisamente porque esses objectivos são simultaneamente garantias constitucionalmente previstas que importa, desde o primeiro momento, dissipar todas as dúvidas de constitucionalidade que as diferentes propostas e opções possam colocar. Essa é, mesmo, uma condição da própria transparência e clarificação do livre debate público democrático que está por fazer quanto às diferentes opções políticas sobre o modelo de serviço público e a necessária reestruturação da televisão pública. Não é de bom conselho desenvolver-se um debate com esta importância partindo de posições fechadas ou de alguma forma ensombradas por eventuais dúvidas de constitucionalidade.
II.
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A independência dos meios de comunicação social do sector público perante o Governo é uma garantia institucional a que, por força do disposto no artigo 17° da Constituição, é aplicável o regime de protecção privilegiada conferida pela Constituição aos direitos, liberdades e garantias. E, como é próprio das garantias institucionais, o seu âmbito nuclear é apreensível não apenas da leitura da norma constitucional, mas também através dos complexos normativos constituídos pelas normas ordinárias que dão expressão e contornos jurídicos à realidade institucional objecto da garantia.
A norma constante da alínea a) do n.° 2 do artigo 48° da Lei n.° 31-A/98, de 14 de Julho, segundo a qual o Conselho de Opinião do serviço público de televisão emite parecer vinculativo sobre a composição do órgão de administração da empresa concessionária, parece constituir actualmente, no plano da estrutura da empresa, a principal ou, até, a única expressão normativa ordinária densificadora daquela garantia institucional.
Nos termos da alteração agora proposta, a competência do Conselho de Opinião para dar parecer vinculativo sobre a composição do órgão de administração da empresa concessionária do serviço público de televisão é eliminada, sendo substituída pela competência de dar parecer, não vinculativo, sobre a nomeação e destituição dos directores que tenham a seu cargo as áreas da programação e informação da empresa concessionária do serviço público.
Atendendo ao facto de aquela competência constituir actualmente a principal ou a única salvaguarda institucional, no plano da estrutura da empresa, da independência do meio de comunicação social em causa, e sendo aqui irrelevante a opinião que se tenha acerca da validade do concreto parecer emitido pelo Conselho de Opinião, suscita-se-me a dúvida de saber se não estará, com a presente alteração legislativa, a ser violado o conteúdo essencial da referida garantia institucional de independência estrutural de meio de comunicação social do sector público.
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Em qualquer caso, e independentemente da resposta a esta dúvida, a alteração legislativa em apreço, constituindo uma restrição à garantia institucional da independência de meio de comunicação social do sector público tal como ela obteve realização na ordem jurídica , só será constitucionalmente legítima quando for proporcional, idónea, exigível e necessária à prossecução de um outro interesse constitucionalmente protegido. Ora, como resulta da própria nota justificativa da proposta de lei n° 4/IX apresentada pelo Governo à Assembleia da República, foi sobretudo o contexto político determinado pelas circunstâncias, conteúdo, alcance e consequências do parecer negativo recentemente emitido pelo Conselho de Opinião que deu origem e fundamento à presente iniciativa legislativa.
Nessa altura, suscita-se-me a dúvida se na restrição operada pela alteração legislativa em apreço terão sido devidamente preenchidos os requisitos constitucionais exigidos pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 18° da Constituição".
Admitido o pedido, foram de imediato distribuídos os autos.
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Notificada a Assembleia da República, na pessoa do seu Presidente, para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, nos termos do artigo 54º da Lei do Tribunal Constitucional, foi recebida resposta, subscrita pelo Presidente da Assembleia da República, a oferecer o merecimento dos autos.
Com a resposta foi junta a versão provisória da transcrição do debate realizado na Assembleia da República, em 23 de Maio de 2002, sobre o diploma em causa.
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O Governo veio, em 5 de Junho, "enquanto entidade interessada", juntar quatro pareceres jurídicos.
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O Decreto em apreciação é do seguinte teor:
"Lei n.º /2002
Segunda alteração à Lei n.º 31-A/98, de 14 de Julho (aprova a Lei de Televisão), alterada pela Lei n.º 8/2002, de 11 de Fevereiro
A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161º da Constituição, para valer como lei geral da República, o seguinte:
Artigo 1º
Alteração à Lei n.º 31-A/98, de 14 de Julho
A alínea a) do n.º 2 do artigo 48º da Lei n.º 31-A/98, de 14 de Julho, passa a ter a seguinte redacção:
«a) Emitir parecer prévio, público e fundamentado, no prazo máximo de 10 dias, sobre a nomeação e destituição dos directores que tenham a seu cargo as áreas da programação e informação da empresa concessionária do serviço público;»
Artigo 2º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Aprovada em 23 de Maio de 2002.
O Presidente da Assembleia da República, João Bosco Mota Amaral."
II
Fundamentação
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As dúvidas de constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da República desenvolvem-se em torno de duas linhas de argumentação:
em primeiro lugar, e considerando a circunstância de a competência atribuída ao Conselho de Opinião do serviço público de televisão "constituir actualmente a principal ou a única salvaguarda institucional, no plano da estrutura da empresa, da independência do meio de comunicação social em causa", o Presidente da República coloca a questão de saber "se não estará, com a presente alteração legislativa, a ser violado o conteúdo essencial da referida garantia institucional de independência estrutural de meio de comunicação social do sector público" consagrada no artigo 38º, n.º 6, da Constituição;
em segundo lugar, e independentemente da resposta à primeira questão, o Presidente da República coloca a questão de saber "se na restrição operada pela alteração legislativa em apreço terão sido devidamente preenchidos os requisitos constitucionais exigidos pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 18° da Constituição", tendo em conta que, "como resulta da própria nota justificativa da proposta de lei n° 4/IX apresentada pelo Governo à Assembleia da República, foi sobretudo o contexto político determinado pelas circunstâncias, conteúdo, alcance e consequências do parecer negativo recentemente emitido pelo Conselho de Opinião que deu origem e fundamento à presente iniciativa legislativa".
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O artigo 38º, n.º 6, da Constituição, na sua versão actual, dispõe que:
"Artigo 38º
(Liberdade de imprensa e meios de comunicação social)
[...]
6. A estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do sector público devem salvaguardar a sua independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião.
[...]."
A questão suscitada no presente processo consiste em saber se a alteração da norma do artigo 48º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 31-A/98, de 14 de Julho (Lei da Televisão), operada pelo Decreto n.º 3/IX da Assembleia da República, viola a garantia de independência dos meios de comunicação social do sector público, consagrada no artigo 38º, n.º 6, da Constituição.
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O texto em vigor do artigo 38º, n.º 6, provém da revisão constitucional de 1989. Nas versões anteriores a 1989, era o artigo 39º que expressamente se referia aos meios de comunicação social pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas.
Observe-se a evolução do texto constitucional português nesta matéria, na parte que aqui interessa considerar.
i) Na versão originária da Constituição, o artigo 38º (que tinha como epígrafe "Liberdade de imprensa") determinava:
no n.º 5, que "nenhum regime administrativo ou fiscal, nem política de crédito ou comércio externo, pode afectar directa ou indirectamente a liberdade de imprensa, devendo a lei assegurar os meios necessários à salvaguarda da independência da imprensa perante os poderes político e económico";
no n.º 6, que "a televisão não pode ser objecto de propriedade privada";
no n.º 7, que "a...
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