Acórdão nº 653/04 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução17 de Novembro de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 653/2004 Processo n.º 940/04 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

A. vem, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), reclamar do despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Julho de 2004, que não admitiu o recurso de constitucionalidade por ela interposto, despacho esse que assume expressamente como sua fundamentação as razões expendidas em precedente parecer do representante do Ministério Público, do seguinte teor:

“2. Vem o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LOFPTC.

Diz, para tanto, a recorrente que «as normas constantes dos artigos 271.º, n.º 3, 497.º, n.ºs 1 e 2, 498.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 673.º e 813.º, alíneas a) e g), do Código de Processo Civil (CPC), na interpretação que lhes é dada pelo douto Acórdão recorrido, violam os princípios constitucionais da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da sua igualdade perante a lei, ínsitos nos artigos 2.º, 9.º, alínea b), e 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que garantem aos cidadãos a permanência e a inalterabilidade do caso julgado» (fls. 1613, verso).

Em causa, alegada violação do caso julgado formado na acção n.º 1910/83, tal como foi declarado nas acções n.ºs 91/87 e 135/98.

Persiste, pois, a recorrente, na defesa da sua tese que entre a presente acção e aquelas outras existem relações de identidade (remete-se, quanto a esta parte, para a vista liminar do recurso, a fls. 1514/8).

Ora, no douto acórdão recorrido expressamente afastou-se a existência de relações de identidade entre tais acções, do mesmo passo se rejeitando a verificação de caso julgado.

As normas invocadas não foram, em suma, aplicadas no acórdão recorrido.

Como se refere na última parte do acórdão do Tribunal Constitucional, de 28 de Outubro de 2003, junto a fls. 1556/71 [trata-se da Decisão Sumária n.º 260/2003], que não conheceu do recurso, interposto pela mesma recorrente, do acórdão deste Tribunal, de 28 de Janeiro de 2003, proferido no processo de embargos de executada, citando anterior jurisprudência: «a existência de uma possível interpretação inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso quando essa interpretação não tiver sido adoptada na decisão recorrida» (fls. 1571).

3. Termos em que se conclui no sentido de, atento o disposto no n.º 1 e na parte final do n.º 2 do artigo 76.º da LOFPTC, dever o requerimento de interposição de recurso ser indeferido, por manifestamente infundado.”

Na sua reclamação, a reclamante desenvolve a seguinte argumentação:

“A decisão de rejeição do recurso, perfilhando o parecer do Ministério Público, assenta na consideração de que «as normas invocadas não foram, em suma, aplicadas ao acórdão recorrido», sendo que neste «afastou-se expressamente a existência das relações de identidade entre tais acções, do mesmo passo se rejeitando a verificação de caso julgado».

Em defesa dessa tese, a decisão que rejeitou o recurso, cita uma passagem do Acórdão n.º 197/97 do Tribunal Constitucional, ou seja, «a existência de uma possível interpretação inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso quando essa interpretação não tiver sido adoptada na decisão recorrida».

Em conclusão, a decisão de rejeição do recurso estriba-se no facto de o acórdão recorrido não ter aplicado as normas do caso julgado que a recorrente apontou como violadoras dos princípios constitucionais.

Com todo o devido respeito, a reclamante não pode conformar-se com tal entendimento, tanto mais que os pressupostos em que se fundamenta não se verificam no caso concreto.

Na verdade, as normas imanentes aos preceitos legais reguladoras do caso julgado são aplicadas

– quer quando se decide existir uma situação de caso julgado;

– quer ainda quando se reanalisa indevidamente uma questão já antes apreciada judicialmente com trânsito em julgado e se decide em sentido contrário àquela decisão transitada, violando-se dessa forma o caso julgado.

O que sucede é que neste último caso os preceitos legais atinentes ao caso julgado são interpretados por forma a permitir a reavaliação judicial da mesma questão, já antes decidida com trânsito em julgado. Ora, esta reanálise é vedada pelos princípios constitucionais da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da sua igualdade perante a lei.

E quando essa reanálise ocorre e a decisão judicial daí resultante conclui pela não verificação dos pressupostos do caso julgado, atentando claramente contra o caso julgado já declarado, não podemos deixar de entender que os preceitos legais atinentes ao caso julgado foram aplicados embora com uma interpretação claramente violadora dos princípios constitucionais atrás enunciados. Só assim será possível a sindicância, através do Tribunal Constitucional, de uma decisão judicial atentatória dos princípios constitucionais imanentes às normas processuais que consagram o caso julgado, pois a entender-se o contrário essa sindicância deixará de ser possível, bastando apenas que o Tribunal, ao reanalisar uma questão, conclua – erradamente – pela não repetição da causa e consequente inexistência de caso julgado. Ora, estas circunstâncias representam a forma mais paradigmática da violação do caso julgado e dos princípios constitucionais com ele relacionados. Negar nesses casos a possibilidade de controlo do Tribunal Constitucional em relação às decisões dos Tribunais judiciais será truncar de uma forma grave a amplitude das competências daquele Tribunal e reduzir as garantias dos cidadãos no tocante a princípios consagrados na Constituição.

No caso presente, existiu uma clamorosa e óbvia ofensa do caso julgado e dos princípios constitucionais com ele relacionados. Vejamos para o efeito a cronologia factual e processual:

Em 10 de Maio de 1983, a exequente intentou contra o então seu marido B. (hoje seu ex-marido) e contra a C., Lda., a acção ordinária 1910/83, ou seja, a acção principal cuja sentença aqui se executa. Tal acção visou obter a declaração, em relação à autora, da ineficácia da venda que o B. fizera em 8 de Outubro de 1981 à C., tendo por objecto um terreno e uma construção nele implantada, terreno esse então inscrito na matriz rústica sob o artigo ---- da freguesia da ---------------, em Coimbra, e descrito na Conservatória sob o n.° ------------. Mais peticionou a entrega do terreno e da construção, bem como o cancelamento dos registos operados com base na escritura de venda. A acção baseou-se no abuso dos poderes de representação. Esta acção procedeu, nos termos constantes na decisão exequenda – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 10 de Março de 1987, confirmado por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), proferido em 16 de Novembro de 1988, constantes da acção principal;

Antes de a decisão da acção 1910/83 (atrás referida) haver transitado em julgado, ou seja, no dia 23 de Março de 1987, a mesma autora intentou uma nova acção (91/87) contra a C., e contra os diversos adquirentes das fracções em que o edifício implantado no terreno com o artigo matricial n.° --- havia sido dividido após a sua inscrição na matriz como prédio urbano a que passou a corresponder o artigo ------ e depois da sua constituição em propriedade horizontal. A autora alegou para o efeito que a venda inicial (feita pelo seu marido à C.) havia sido declarada ineficaz, mas a C. havia prosseguido a construção, constituíra o prédio em propriedade horizontal por escritura pública de 11 de Abril de 1983, inscrevera o prédio na matriz e vendera de seguida todas as fracções. Por conseguinte, face à declarada ineficácia da venda inicial, conforme decisão proferida na acção 1910/83, todas as vendas subsequentes das fracções feitas peja C. aos diversos compradores eram nulas por serem feitas a non domino.

Peticionou por fim a declaração de nulidade da escritura de constituição da propriedade horizontal e de todas as vendas das fracções, bem como o cancelamento dos registos feitos com base nas escrituras de venda e a entrega a ela das fracções do prédio.

Na contestação, os diversos réus invocaram várias excepções, entre elas a diversidade entre o objecto da acção 1910/83 (terreno com construção) e dessa mesma acção 91/87 (prédio urbano constituído por diversas fracções) e os efeitos do registo, nomeadamente os advenientes da caducidade do registo da acção 1910/83, verificada em 30 de Março de 1990.

Na réplica, a autora alterou o pedido face à repercussão que, segundo ela, a ineficácia da venda inicial tinha nas vendas subsequentes das fracções, sendo estas também ineficazes em relação a si mesma e não nulas como referira na petição inicial.

A acção foi julgada parcialmente procedente no despacho saneador proferido na 1.ª instância, tendo sido declarada a ineficácia em relação à autora das vendas de todas as fracções feitas pela C. aos demais réus, condenando-se estes a fazer a sua entrega à autora e ordenando o cancelamento dos registos – cfr. sentença cuja cópia consta a fls. 447 a 481 destes autos.

Desse saneador-sentença foi interposto recurso pela maioria dos réus compradores das fracções e por Acórdão da Relação de Coimbra, proferido em 28 de Abril de 1998, foi decidido – em relação às fracções que continuam a ser objecto da presente execução – que pelo facto de o registo da acção 1910/83 ter sido feito antes do registo da aquisição dessas fracções estavam esses réus abrangidos pelo caso julgado daquela primeira por força do preceituado pelo artigo 271.º, n.° 3, do Código de Processo Civil (CPC), pelo que julgou procedente a excepção do caso julgado e absolveu esses réus do pedido formulado na acção 91/87 – cfr. cópia das decisões insertas de fls. 447 a 481.

Esse Acórdão da Relação de Coimbra transitou em julgado nessa parte. Todavia, adianta-se que a autora interpôs recurso para o STJ em relação às fracções não abrangidas pelo caso...

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