Acórdão nº 631/04 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Novembro de 2004

Data04 Novembro 2004
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 631/04

Processo n.º 538/04

  1. Secção

Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A – Relatório

1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3 de Dezembro de 2003, que confirmou a sua condenação como autora de um crime de abuso de confiança, sob a forma continuada, p. e p. pelo art.º 205º, n.º 4, alínea b), do Código Penal (CP), decretada pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, apenas alterando a condição de suspensão da pena de obrigação de pagamento à entidade ofendida da indemnização de € 39.483,87 (7. 915.805$30) no prazo de 12 meses para a obrigação de pagamento dessa mesma indemnização durante o período de 3 anos, sendo 1/3 em cada um desses anos, pretendendo a apreciação da constitucionalidade do art.º 205º, n.º 1, do CP enquanto abrangendo na sua previsão as coisas móveis fungíveis e, designadamente, somas de dinheiro, por violação do disposto no art.º 8º, n.º 1, e 27º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

2 – Sobre a questão de constitucionalidade perante si suscitada, a decisão recorrida discorreu do seguinte modo:

Defende a recorrente que o crime de abuso de confiança taxado no art.º 205º, n.º 1, do CP não abrange as coisas móveis fungíveis designadamente as somas de dinheiro, pois a não ser assim estar-se-ia a legitimar prisão por dívidas.

Quando a coisa for fungível o agente deve ser absolvido da prática do crime e apenas condenado no pagamento das importâncias que estão em causa.

Ao não se entender assim, sufragando que a interpretação a dar ao art.º 205º, n.º 1. do CP não é a agora preconizada, como é o caso do acórdão recorrido, mostra-se violado o disposto no art.º 8°, n.º 1, e por compreensão lógica, o conteúdo do art.º 27º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.

Decidindo:

“Questões podem suscitar-se quando a coisa móvel alheia é constituída por objectos fungíveis, nomeadamente por dinheiro (sobre o ponto cf. entre nós Eduardo Correia, RDES, 1954 65 e na literatura alemã H. Mayer, GS 104 100, e Roxin, H. Mayer - FS 1966, 467 ss). Tratando-se aqui de objectos que se confundem ou podem confundir no património de quem os recebe, e ainda que seja exacto que o direito de propriedade só pode ter por objecto coisas certas e determinadas, o carácter alheio da coisa nem é, por um lado, em princípio afectado pela sua confusão no património do tomador, nem, por outro lado, tal confusão perfaz sem mais o tipo objectivo do abuso de confiança. Problemas que poderão ainda levantar-se não relevam do elemento “carácter alheio da coisa”, mas suscitam-se, na verdade, nos termos da apropriação, da sua ilegitimidade e do dolo respectivo (aí devendo ser considerados cf. Infra 25,28,31). Uma vez estabelecida aquela conclusão, problemas sobrantes e diversas situações especiais a propósito pensáveis (v. g. dinheiro enviado pelo correio, por vale postal, etc.) serão ainda decididos de acordo com o princípio de que é ao direito civil - eventualmente também ao direito administrativo - que pertence determinar quem é, em cada momento, o titular da propriedade do dinheiro” (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pp. 99).

O crime de abuso de confiança consuma-se com a apropriação, que se traduz na inversão do título de posse, passando o agente a dispor de coisa como sua, sendo que a manifestação externa do acto de apropriação carece de ser demonstrada por actos concludentes. No caso de coisas móveis fungíveis (como o dinheiro), a mera. confusão ou o simples uso são insuficientes para integrar o elemento objectivo apropriação. Em tais casos a apropriação terá de resultar, mais tarde, pela disposição da coisa de forma justificada ou pela sua não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos, ao que terá de acrescer o correspondente dolo (Ac. Rel. do Porto, de 2/4/03, no recurso 0210711).

Perante o exposto e a factualidade dada como provada, nomeadamente de que a “arguida fez suas as ...importâncias” “...utilizando-o em proveito próprio e no seu interesse pessoal”, consideramos não assistir razão à recorrente, quer no que respeita à verificação dos pressupostos, quer no que respeita à inconstitucionalidade.

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3 - Alegando no Tribunal Constitucional, a recorrente sintetizou nas seguintes conclusões o seu discurso argumentativo:

1) O crime de abuso de confiança taxado no art.º 205°, n° 1, do C. Penal não abrange as coisas móveis fungíveis, designadamente as somas em dinheiro, pois a não ser assim estar-se-ia a legitimar a prisão por dívidas,

2) Quando a coisa for fungível, o agente deve ser absolvido da prática do crime e apenas condenado no pagamento das importâncias de que se mostre provado que indevidamente se apropriou;

3) Ao não se entender assim, sufragando que a interpretação a dar ao art. 205°, n° 1, do C. P. não é a agora preconizada, como é o caso do acórdão da Relação, mostra-se violado o disposto no art.º 8°, nº 1, e por compreensão lógica, o conteúdo do art. 27°, n° 1, ambos da Constituição da República Portuguesa;

4) A norma do art. 205°, n° 1, do C. P., por errada interpretação e aplicação, que é a do acórdão da Relação, deve ser declarada inconstitucional, e não pode ser aplicada pelos tribunais, di-lo o art. 204° da C.R.P..

Termos em que, e invocando o douto suprimento de V. Exªs, colendos julgadores, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e o art. 205°, n° 1, do Código Penal ser declarado inconstitucional por no seu âmbito não caber o ilícito que se traduz na apropriação indevida de coisas móveis fungíveis, como são as quantias pecuniárias, pois a não ser assim estar-se-ia a legitimar a prisão por dívidas, o que é ilegal e inconstitucional, tudo com as legais consequências.

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4 – Por seu lado, o Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional contra-alegou, defendendo o não provimento do recurso e concluindo do seguinte jeito:

“Não viola manifestamente o princípio da proporcionalidade a inclusão, no âmbito do tipo legal do crime de abuso de confiança, do comportamento do trabalhador/comissário que – no exercício das funções de “caixa” ao serviço da respectiva entidade patronal – se apropria ilegitimamente de quantias em dinheiro de que era mero detentor, desviando-as do património social a que se destinavam, para as fazer suas, utilizando-as em proveito próprio e no seu interesse pessoal”.

B – Fundamentação

5 – A questão decidenda é a de saber se a norma do art.º 205º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação segundo a qual se abrangem na sua previsão quantias em dinheiro de que o trabalhador/comissário é mero detentor por serem destinadas ao património social da entidade patronal/comitente, é inconstitucional, por violação do princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado no direito à liberdade e segurança reconhecido no art.º 27º, n.º 1, da CRP, em consonância com o estabelecido no artigo 1º do Protocolo Adicional (n.º 4) à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

6 – O artigo 205º, n.º 1, do Código Penal tem a seguinte redacção:

Artigo 205º

Abuso de confiança

1 – Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

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A recorrente controverte a constitucionalidade desta norma com o fundamento de que “o abuso de confiança pressupõe a existência de um direito de propriedade a favor do titular da coisa, e dado que só existe propriedade, com os inerentes direitos de sequela e de reivindicação, quando estamos perante coisas certas e determinadas, as coisas fungíveis escapam ao aro da incriminação. Porque, a não ser assim, estaria o legislador a permitir que alguém pudesse ser preso por dívidas”. Mas esta tal interpretação – acrescenta - viola não só o art.º 1º do Protocolo Adicional (n.º 4) à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 16/09/1963, que vigora no nosso ordenamento jurídico como direito internacional recebido como o art.º 27º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

O Tribunal Constitucional já foi confrontado com a problemática da prisão por dívidas, entre outros casos, a propósito da conformidade com a Lei Fundamental da norma do art.º 49º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de...

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