Acórdão nº 283/04 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Abril de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução21 de Abril de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 283/2004

Processo n.º 758/03

  1. Secção

    Relator: Cons. Mário Torres

    Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

    1. Relatório

    1. e marido B. intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, contra C. e mulher D., acção pedindo a resolução do contrato de arrendamento de uma fracção autónoma de prédio sito no lugar de ------------, freguesia de ----------------, ---------, propriedade da autora, de que os réus são arrendatários, com a consequente condenação destes a despejarem o locado, e ainda em indemnização por actuarem com abuso de direito. Aduziram, em suma, que os réus compraram entretanto uma casa de habitação, pelo que não têm necessidade da fracção arrendada, enquanto os autores vivem em casa emprestada por um familiar e têm, por isso, interesse em que a fracção em causa lhes seja entregue a fim de aí instalarem a sua morada de família; no entanto, os rés exigem a quantia de 3 500 000$00 para abandonarem a fracção arrendada (pela qual pagam renda mensal de apenas ? 71,85), o que consubstancia uma conduta imoral e ilícita.

    Por despacho saneador, de 6 de Janeiro de 2000, foi a acção julgada improcedente, basicamente por se haver entendido ter carácter taxativo a enunciação dos casos de resolução do contrato por iniciativa do senhorio, constante do artigo 64.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), e por, dos dois requisitos elencados no n.º 1 do subsequente artigo 71.º para a denúncia para habitação do senhorio, não se ter provado o primeiro (ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de 5 anos, pois está provado que os autores adquiriram o prédio por doação em 26 de Outubro de 1999) e nem sequer ter sido alegado o segundo (não terem, há mais de um ano, casa própria ou arrendada na localidade, que satisfaça as necessidades de habitação própria). Quanto ao pedido indemnizatório, foi o mesmo desatendido, por não se provar nem qualquer conduta ilícita dos réus, designadamente integradora de abuso de direito, nem qualquer dano dos autores.

    Os autores apelaram desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando, entre o mais, a inconstitucionalidade, por violação dos princípios consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 20.º, n.º 1, e 65.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), da interpretação dada por essa decisão ao disposto no artigo 64.º do RAU (taxatividade das causas de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio).

    O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 7 de Outubro de 2003, julgou improcedente a apelação, desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:

    ?Como resulta do estabelecido no artigo 684.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente.

    Assim, estas, assentando no pressuposto de que os autores pediram que se declarasse resolvido o contrato de arrendamento por se terem alterado relevantemente as circunstâncias em que foi celebrado, constituindo a actuação dos réus ofensa ao dever de boa fé e abuso do direito que emergiu daquele, de modo a brigar com o direito dos recorrentes à habitação, que a Constituição em vigor reconhece, censuram a sentença recorrida por atribuir prevalência ao disposto taxativamente no artigo 64.° do RAU sobre os mencionados princípios.

    A essa luz, consideram transferida para o senhorio a tutela constitucional do direito à habitação, por carecerem de local onde residam, a operar directamente.

    Atingem este ponto defendendo que os réus já não carecem da habitação arrendada, facto essencial à justificação daquela protecção constitucional.

    Acontece que os demandados não se socorrem, nem se impõe que se socorram, do disposto no artigo 65.° da Constituição, bastando-se, e entende-se aqui que bem, com o direito que para eles emergiu do contrato celebrado, bem como da disciplina legal do respectivo exercício.

    Tem-se por excessivo que o disposto no artigo 64.° do RAU dependa do invocado suporte na citada norma, pois a mesma teria perfeito cabimento na ordem jurídica, caso o texto constitucional fosse até omisso sobre o direito à habitação.

    Por outro lado, tão-pouco podem os recorrentes valer-se, procedentemente, da arrogada titularidade do mencionado preceito constitucional, pois não é certo que tal garantia deva efectivar-se, ao menos directamente, contra os réus.

    Por conseguinte, considera-se que a sentença recorrida, ao basear-se no disposto no artigo 64.° do RAU, que teve como excluindo o direito de resolução do contrato por a situação dos autos não estar aí prevista, não afrontou a citada norma constitucional.

    Quanto à ofensa do dever de boa fé por banda dos réus, também não resultaria dos factos alegados pelos autores, ainda que inteiramente demonstrados.

    Com efeito, está contida no âmbito das obrigações e direitos emergentes do contrato a sustentação da posição contratual, mesmo sendo o inquilino dono de uma casa de habitação, pois esse facto não é, em si, causador de qualquer prejuízo para o senhorio. Segundo o Prof. João de Castro Mendes, Direito Civil ? Teoria Geral, 1967, 3.° vol., págs. 411 a 413, quando a lei estabelece que no cumprimento da obrigação e no exercício do direito devem as partes proceder de boa fé, refere-se à boa fé no sentido ético, que é, então, a imposição da consideração pelos interesses legítimos da outra parte. É a devida ponderação dos interesses alheios. Reconhece-se ao agente, claro, a liberdade de prosseguir os seus próprios interesses, mas nessa prossecução deve evitar, na medida do possível, sacrificar injustificadamente os interesses alheios. Quando a medida do sacrifício do interesse alheio não é justificada por um interesse próprio estamos fora da boa fé em sentido ético.

    Face ao quadro alegado pelos autores, em que face ao seu interesse no despejo do locado se coloca o interesse dos réus em manter o arrendado, onde segundo a própria alegação dos primeiros mantêm centrada a sua vida, não se vê que aquele desequilíbrio, exigido pelo ilustre autor citado, se verifique. Aliás, tão-pouco o legislador do RAU teve por injustificado que o inquilino dispusesse de casa para além da arrendada, presente o aqui exposto sobre a conformidade do citado artigo 64.° com a Constituição.

    Improcedem, assim, as correspondentes conclusões dos apelantes.

    No concernente ao invocado abuso do direito por parte dos recorridos, emerge também do já explicado que não ocorre.

    Na verdade, manterem-se os réus a viver no locado, fim para que o tomaram de arrendamento, não excede de nenhum modo os limites da boa fé, já atrás expostos, porquanto a defesa do seu interesse na respectiva ocupação não afronta excessivamente o dos autores em aí instalarem a respectiva residência.

    Finalmente, pretenderem os inquilinos receber certa quantia para desocuparem o referido apartamento não configura, tal como vem alegado, procedimento que vá além do que seja aceitável para os compensar do sacrifício, como se viu inexigível, do seu mencionado interesse.

    Nada vem alegado que desenhe possível ilicitude nem sequer desvalor ético dessa posição, pois a troca de bens ou direitos que sejam disponíveis não é censurada pela ordem jurídica, designadamente o disposto nos artigos 64.°, n.° 1, alínea c), do RAU e 14.° do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro.

    Improcedem, como tal, essas conclusões dos apelantes, do que decorre, com o mais exposto, não dever o recurso ter êxito.?

    Os autores interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a questão da inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 65.º, 1.º e 20.º da CRP, da norma do artigo 64.º do RAU, maxime da alínea c) do seu n.º 1, interpretado como consagrando um elenco taxativo de causas de resolução do contrato de arrendamento para habitação.

    No Tribunal Constitucional, os recorrentes apresentaram alegações, no termo das quais formularam as seguintes conclusões:

    ?1.ª ? O caso dos autos tem a caracterização concreta seguinte:

    a) Os recorrentes são donos de uma fracção urbana autónoma, destinada a habitação, que, antes de a adquirirem, ou seja, em 30 de Outubro de 1974, foi dada de arrendamento aos recorridos para a habitação destes; os recorrentes precisam dessa fracção para aí instalarem a sua habitação, porque não têm casa própria nem arrendada, nunca a tiveram em parte alguma, vivem em casa emprestada, com a sujeição de terem de a entregar aos donos em qualquer momento; os recorrentes não têm meios económicos para adquirirem uma habitação própria, e para satisfazerem essa necessidade, de forma estável e permanente, terão de pagar uma renda mensal de valor não inferior a 250,00 euros, ou adquirirem uma casa com recurso ao crédito, cuja prestação mensal não será inferior a 600,00...

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