Acórdão nº 673/05 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Dezembro de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução06 de Dezembro de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 673/2005

Processo n.º 100/03 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

Em acção de despejo instaurada na 4.ª Vara Cível da Comarca do Porto, A. formulou, contra B., L.da, com fundamento no não pagamento das rendas vencidas desde 1 de Outubro de 2000, pedido de condenação na entrega, inteiramente devolutas de pessoas e bens, de três fracções autónomas por ele arrendadas a essa ré e no pagamento das rendas vencidas e vincendas.

A ré contestou, excepcionando a sua ilegitimidade, por, em 20 de Maio de 1998, ter comunicado por fax ao autor, após conversações entre ambos, a cedência do estabelecimento a C., L.da, comunicação que, recepcionada pelo autor, foi por ele assinada e devolvida, tendo a ré formalizado o trespasse por escritura pública celebrada em 17 de Setembro de 1998, tendo a partir desta data a C. assumido a posição de arrendatária.

O autor, na réplica, para além de ampliar a causa de pedir à não comunicação do alegado trespasse, pediu a intervenção principal desta sociedade.

Citada a C., veio esta interveniente contestar e reconvir, corroborando a descrição dos factos feita pela ré B. e aduzindo, em suma, que em 21 de Dezembro de 1999, acordou com o autor a compra e venda das fracções, pelo preço de Esc. 190 000 000$00, montante em que seriam reduzidos os valores até aí entregues a título de rendas, tendo no acto, como sinal e princípio de pagamento, a C. entregue dois cheques pré-datados, nos valores de Esc. 2 000 000$00 e 2 210 000$00, que posteriormente foram recebidos pelo autor. Apesar de posteriormente ter efectuado entregas de valores no total de Esc. 3 912 500$00, um representante do autor ter-lhe-á comunicado, no decurso do ano de 2001, que o referido acordo ficara sem efeito. Termina preconizando a improcedência da acção e deduzindo reconvenção, visando a condenação do autor na execução específica do contrato promessa de compra e venda ou, em alternativa, a pagar-lhe o valor das fracções à data da rescisão, com dedução do preço convencionado, ou restituir-lhe o sinal e a parte do preço que pagou em dobro.

Após réplica do autor à contestação da interveniente e frustração de tentativa de acordo, o autor veio requerer o despejo imediato do locado, ao abrigo do artigo 58.° do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (doravante designado por RAU), com fundamento na falta de pagamento, quer pela primitiva ré, quer pela interveniente, das rendas vencidas na pendência do processo, pretensão a que a interveniente se opôs, aduzindo que, aquando da celebração do acordo tendo em vista a venda das fracções em causa, o autor dispensou a interveniente do pagamento da renda, conforme já alegado na artigo 13.º da contestação, para além de que, face à posição do autor que considera ineficaz o trespasse efectuado, encontra-se por determinar quem é o actual arrendatário das fracções.

Foi elaborada a base instrutória, com formulação de quesitos relativos, designadamente, à alegada celebração de contrato promessa de compra e venda entre o autor e a interveniente, à entrega por esta de valores por conta do preço estipulado e à falta de colaboração do autor no sentido da celebração do contrato definitivo de compra e venda (quesitos 14.º a 26.º). E, de seguida, foi proferido despacho a decretar o despejo imediato da ré e da interveniente do local em causa, do seguinte teor:

“Incidente de despejo imediato de fls. 116 e seguintes:

Vem o autor requerer este incidente, nos termos do artigo 58.º do RAU, invocando completa falta de pagamento de rendas até 8 de Março de 2002.

Ouvidas a ré e a interveniente (demandada a título subsidiário) nem uma nem outra fizeram prova do pagamento ou depósito de qualquer das rendas em causa, invocando esta última a circunstância de estar alegada a dispensa de pagamento de rendas.

Cumpre decidir.

É fundamento de despejo imediato a não comprovação do pagamento das rendas vencidas após o termo do prazo da contestação quando seja causa de pedir da acção a falta de pagamento de rendas.

O arrendatário, a título de réu principal ou subsidiário, apenas pode fazer prova documental do pagamento ou do depósito das rendas respectivas.

Não lhe é permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do pagamento, sendo as mesmas a apreciar e a decidir na acção.

Nenhum dos ouvidos fez tal prova.

Assim, nos termos da norma referida, decreto o despejo imediato da ré e da interveniente do locado, sendo este constituído pelas fracções descritas em A) e B) da matéria assente.”

A interveniente interpôs recurso de agravo deste despacho para o Tribunal da Relação do Porto, terminando as respectivas alegações com a formulação das seguintes conclusões:

“1. A douta decisão recorrida, ao considerar que, no âmbito do incidente previsto no artigo 58.º do RAU, a recorrente «apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósito das rendas respectivas», não lhe sendo «permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do pagamento», fez incorrecta interpretação do citado preceito, contrariando a jurisprudência que vem sendo seguida a propósito, designadamente a constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 1998, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, tomo 2, pág. 81, e do Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Maio de 1994, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 437, pág. 577.

2. Perante a actual redacção do artigo 58.° do RAU não é mais aceitável a conclusão que prevalecia no domínio de aplicação do anterior artigo 979.º do CPC, nos termos da qual a única defesa relevante que o arrendatário pode produzir é demonstrar que pagou ou depositou a renda.

3. Da actual redacção do artigo 58.° do RAU resulta que este artigo pressupõe que as rendas deviam ser pagas e não o foram; isto é o mesmo que dizer que não se justifica o despejo imediato previsto no artigo 58.° do RAU quando se discute se aquele que se arroga o direito de receber renda está, ou não, em situação de poder exigi-la.

4. A providência do artigo 58.° do RAU pressupõe que se encontra assente a relação processual entre demandante e demandado.

5. Nos presentes autos, é o próprio autor que põe em causa a validade do arrendamento em relação à recorrente C., não a reconhecendo como actual legítima arrendatária, sustentando expressamente que o trespasse realizado é ineficaz em relação a si (cfr. artigos 4.º, 13. °, 14. ° e 15. ° da réplica).

6. Daí que, não sendo à recorrente reconhecida pelo senhorio a qualidade de actual arrendatária, não se lhe pode impor uma obrigação (pagar rendas) que apenas sobre o detentor de tal posição impende.

7. A dar-se como assente (?) a validade do arrendamento nos termos em que o autor configurou a presente acção, então a obrigação de pagar as rendas recairia sobre a ré B. – que, nos termos da petição inicial, é a única entidade reconhecida pelo autor como legítima arrendatária (cfr. artigos 4.°, 13.º e 15.º da réplica).

8. Sendo controversos os termos que assumiu a relação locatícia estabelecida entre as partes, o que foi levado à base instrutória dos presentes autos, nomeadamente por indefinição quanto à identidade do actual arrendatário e actual montante das rendas, não é possível impor a qualquer uma das rés uma obrigação (pagamento de rendas) sem previamente se apurar quem possui legitimidade para suportar tal obrigação e qual o actual montante mensal da renda.

9. Por outro lado, na sua defesa, a recorrente veio alegar factos que colocam em causa o direito que o autor se arroga de receber rendas, nomeadamente por ter sido este que a dispensou do respectivo pagamento (artigo 13.° da contestação) e ainda porque se recusou a dar quitação (artigo 31.° da contestação).

10. Assim sendo, é inaceitável que o arrendatário, não tendo pago por razões unicamente imputáveis ao senhorio, esteja obrigado a ir pagar ou depositar, com indemnização, as rendas em questão.

11. É que o incidente previsto no artigo 58.º do RAU, «porque é de uma nova acção – incidental embora – que se trata, ao arrendatário está aberta a possibilidade de se opor ao seu senhorio do mesmo modo e nos exactos termos em que se lhe oporia numa acção autónoma» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Novembro de 1995, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1995, tomo 3, pág. 59).

12. Aliás, o entendimento do despacho recorrido viola as disposições dos artigos 2.°, 9.°, alínea b), 13.°, 18.° e 20.°, n.ºs 1 e 4, da Lei Fundamental, colidindo directamente contra princípios constitucionais como o do Estado de direito democrático, princípio da igualdade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.”

Por acórdão de 14 de Novembro de 2002, este Tribunal da Relação negou provimento ao agravo, desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:

“III – Temos, portanto, que, na situação em presença, o autor pretende, através do incidente a que se reporta o artigo 58.° do RAU, obter o despejo imediato das fracções objecto do contrato de arrendamento, invocado como causa de pedir na acção em que o aludido incidente foi deduzido.

Com efeito, do indicado normativo da codificação locatícia urbana decorre que, durante a pendência de qualquer acção de despejo que haja sido instaurada, devem continuar a ser pagas ou depositadas as rendas devidas, constituindo a omissão de tal pagamento fundamento para a dedução de uma nova acção, agora de natureza incidental, a qual é enxertada na acção principal, independentemente de, nesta, ser idêntica ou diversa a causa de pedir que haja sido aduzida pelo senhorio, como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento celebrado.

Na verdade, a obrigação de pagamento da renda convencionada ou fixada, imposta ao locatário como contrapartida da obrigação que impende sobre o locador de proporcionar àquele o gozo da coisa...

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