Acórdão nº 493/05 de Tribunal Constitucional (Port, 28 de Setembro de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Maria dos Prazeres Beleza
Data da Resolução28 de Setembro de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 493/2005 Processo n.º 711/05 Plenário

Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

1. O Presidente da República veio requerer ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 278º, n.ºs 1 e 3 da Constituição e 51º, n.º 1 e 57º, n.º 1 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas dos artigos 1º e 2º do Decreto do Governo registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o n.º 313/2005 – PCM, recebido na Presidência da República para ser promulgado como decreto-lei, com a seguinte redacção:

Artigo 1º Repristinação

É repristinado o Decreto-Lei n.º 237/98, de 5 de Agosto.

Artigo 2º Convalidação

São convalidados os actos praticados pela Alta Autoridade para a Comunicação Social ao abrigo do Decreto-Lei n.º 237/98, de 5 de Agosto, durante a vigência da Lei n.º 32/2003, de 22 de Agosto.

2. Fundamentou assim o pedido:

«1. Como se infere da conjugação do artigo 1º e do artigo 2º do Decreto n.º 313/2005, é entendimento do Governo que o Decreto-Lei n.º 237/98, de 5 de Agosto, que estabelece o regime de atribuição de licenças e autorizações para o exercício da actividade de televisão, terá caducado ou sido revogado com a entrada em vigor da Lei n.º 32/2003, de [14 de Julho], que aprova a lei da televisão. Por partir desse pressuposto, pretende agora o Governo repristinar aquele decreto-lei (artigo 1º) e convalidar os actos que a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) praticou em sua aplicação (artigo 2º). Porém, um tal entendimento carece de fundamento constitucional e as normas emitidas com base nesse pressuposto geram dúvidas de constitucionalidade.

2. A Lei n.º 32/2003, quando entrou em vigor, revogou expressamente a anterior lei da televisão, a Lei n.º 31-A/98, de 12 de Agosto, mas, e compreensivelmente, não fez o mesmo relativamente ao DL n.º 237/98. E não o fez porque, se bem que previsse no seu artigo 22º a necessidade de um desenvolvimento normativo aplicável ao licenciamento e autorização de serviços de programas televisivos, enquanto ou se não existisse essa regulação continuaria obviamente a aplicar-se, sob pena de um vazio legal, o diploma que regulava especificamente esse tipo de questões, ou seja, o DL n.º 237/98. Só não seria assim, isto é, teria havido revogação tácita, relativamente a hipotéticas normas do DL n.º 237/98 que fossem eventualmente incompatíveis com o novo regime estabelecido pela Lei n.º 32/2003.

3. Muito menos se pode concluir pela caducidade do DL n.º 237/98 por facto de este se autoqualificar como decreto-lei de desenvolvimento, pelo que a entrada em vigor de uma nova suposta lei de bases, a Lei n.º 32/2003, teria determinado a sua automática caducidade.

4. E não é assim porque, em primeiro lugar, nem a lei da televisão de 1998 (a Lei n.º 31-A/98) nem a nova lei da televisão (a Lei n.º 32/2003) são manifestamente leis de bases, nem consequentemente, o DL n.º 237/98, apesar da sua autoqualificação como tal, é, em rigor, um decreto-lei de desenvolvimento. O DL n.º 237/98 é, antes, um decreto-lei que regula especialmente o regime de atribuição de licenças e autorizações para o exercício da actividade de televisão de acordo com as regras e princípios estabelecidos na lei da televisão em vigor.

5. Mas, mesmo que o DL n.º 237/98 fosse um verdadeiro decreto-lei de desenvolvimento, tal natureza em nada determinaria uma sua eventual caducidade por força da revogação da “lei de bases” que desenvolvera. A relação entre um decreto-lei de desenvolvimento e uma lei de bases é uma relação de subordinação material, mas, enquanto acto legislativo em sentido próprio, formal e material, qualquer decreto-lei de desenvolvimento tem uma existência própria. Por exemplo, se uma lei de bases do ensino substitui, revogando, a anterior lei de bases, tal facto não determina, por si só, a automática caducidade dos inúmeros decretos-leis que desenvolviam a anterior lei de bases. Um decreto-lei de desenvolvimento só caduca, aquando da entrada em vigor de nova lei de bases ou de novo decreto-lei de desenvolvimento, por revogação ou previsão legal expressa, por revogação tácita – nos termos atrás assinalados –, ou por privação objectiva do objecto e fins que regulava. Não se verifica, no caso em apreço, qualquer destas situações, até porque há domínios que só o DL n.º 237/98 continua a regular especificamente, como seja o da renovação das licenças dos actuais operadores.

6. Assim sendo, quando o artigo 1º do Decreto n.º 313/2005 – PCM pretende “repristinar” o DL n.º 237/98, essa intenção normativa não tem qualquer sentido útil correspondente, na medida em que este decreto-lei estava em vigor quando da aprovação da lei da televisão de 2003 e continuou ininterruptamente em vigor desde essa data. Aliás, esse tem sido o entendimento pacífico das entidades administrativas e particulares abrangidas, como se comprova do facto de tanto o Instituto da Comunicação Social quanto a Alta Autoridade para a Comunicação Social o aplicarem invariavelmente ao longo dos anos posteriores a 2003 e até à presente data, como se deduz também do facto de os actuais operadores nele se terem baseado para ainda recentemente instruírem e apresentarem à AACS os requerimentos para renovação das respectivas licenças.

7. Aí reside, precisamente, a fonte das dúvidas de constitucionalidade que a pretensa repristinação contida no Decreto n.º 313/2005 suscita. É que, não podendo constituir uma verdadeira repristinação, a entrada em vigor do artigo 1º do Decreto 313/2005 teria um outro, e esse sim verdadeiro, efeito jurídico: ela constituiria uma verdadeira revogação tardia do DL n.º 237/98, que produziria efeitos retroactivos desde Agosto de 2003 até à eventual data da entrada em vigor do Decreto aqui em apreciação. Isto mesmo pressupõe o Governo quando no artigo 2º do mesmo Decreto pretende a “convalidação” de todos os actos da AACS entretanto praticados ao abrigo do DL n.º 237/98. Isto é, num domínio tão sensível quanto o da actividade televisiva, todos os inúmeros actos administrativos legalmente praticados ao longo de dois anos seriam agora afectados por uma suspeita generalizada de ilegalidade e seriam mesmo legalmente declarados ilegais, independentemente da concomitante e discutida validade da sua “convalidação”. Mais, perderiam também qualquer suporte e efeitos legais os requerimentos de renovação de licenças entretanto apresentados pelos operadores de televisão, na medida em que o Decreto n.º 315/2005 determina, a posteriori, a inexistência da base legal que sustentava a respectiva apresentação à AACS.

8. A insegurança e incerteza jurídicas que, independentemente das intenções subjacentes, uma tal norma produziria são evidentes e não parece que tais efeitos sejam compatíveis com as exigências de segurança jurídica ínsitas no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição. Daí a dúvida sobre a constitucionalidade do artigo 1º do Decreto n.º 313/2005 – PCM.

9. Por outro lado, como a repristinação só produziria efeitos a partir da data da entrada em vigor do Decreto n.º 313/2005 – PCM, o Decreto-Lei n.º 237/98 passaria a constituir lei posterior relativamente às leis que entretanto a Assembleia da República aprovou neste domínio, designadamente a Lei n.º 32/2003, que aprovou a lei da televisão, e a Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, que aprovou a lei das comunicações electrónicas. Nesse sentido, também as disposições destas últimas leis que sejam diferentes, divergentes ou até contrárias a disposições do DL n.º 237/98 teriam igualmente a sua vigência afectada ou seriam mesmo revogadas agora pelo DL n.º 237/98, sem que, todavia, essa pareça ser a intenção do legislador/Governo. Tal geraria novas e múltiplas situações de incerteza e insegurança jurídicas relativamente aos actos administrativos a praticar em aplicação dessas leis, o que, no plano da constitucionalidade, também não parece compatível com as exigências de segurança ínsitas no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.

10. Mais, há disposições das leis referidas, a Lei n.º 32/2003 e a Lei n.º 5/2004, que regulam matéria de reserva de lei parlamentar, designadamente as disposições incidindo sobre o núcleo do regime de licenciamento da actividade televisiva e respectivos direitos. Ora, quando o “novo” decreto-lei ou o decreto-lei repristinado reentra supostamente em vigor com um conteúdo substancialmente diferente ou divergente do conteúdo daquelas leis (por exemplo, o DL n.º 237/98 erige a AACS como entidade exclusivamente responsável pelo licenciamento, não contemplando, até pela data em que foi elaborado, a actualmente existente repartição de competências de licenciamento a cargo da AACS e a cargo da ANACOM, respectivamente relativamente a actividade televisiva em sentido estrito e direitos de utilização das frequências de emissão), ele está ilegitimamente a invadir, porque não dispõe da necessária habilitação, a área de reserva de lei parlamentar que resulta da conjugação do artigo 165º, n.º 1, alínea b), e artigo 38º, n.º 7, da Constituição.

Nestes termos, o artigo 1º do Decreto n.º 313/2005 – PCM pode ser inconstitucional por violação do princípio da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição e por violação da reserva de lei parlamentar que resulta da conjugação do artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição com o artigo 38º, n.º 7, da Constituição.

11. Por sua vez, também o artigo 2º do Decreto n.º 313/2005 suscita dúvidas de constitucionalidade. Assim, no pressuposto de que o DL n.º 237/98 cessou a sua vigência a partir da entrada em vigor da lei da televisão aprovada em 2003, o Governo pretende, através do artigo 2º do Decreto n.º 313/2005 – PCM, “convalidar” os actos praticados pela AACS ao abrigo do DL n.º 237/98 durante a vigência da Lei n.º 32/2003.

12. Significa isto que através de...

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