Acórdão nº 116/06 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Fevereiro de 2006

Data08 Fevereiro 2006
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 116/2006

Processo nº 422/05

  1. Secção

Relatora: Conselheira Maria João Antunes

Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal, de 14 de Outubro de 2004.

    2. Em 12 de Maio de 2004, o Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo em que é arguido A., por um período de 6 meses, impondo-lhe a injunção de entregar, na instituição denominada Centro de Solidariedade B., a quantia de 300€, devendo fazer prova no processo da referida entrega, no prazo estabelecido para a suspensão.

      Conclusos os autos ao juiz de instrução, nos termos e para os efeitos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Penal, foi proferida a seguinte decisão:

      “Discordamos da decisão de suspensão provisória do processo pelas seguintes razões:

      - primeira – O Ministério Público não tem competência jurisdicional para decidir e impor injunções e regras de conduta ao arguido.

      O Ministério Público faz uma interpretação literal do artigo 281.º do Código de Processo Penal, interpretação que deve ser considerada inconstitucional, conforme nos parece dever resultar do Ac. n.º 7/87, de 9 de Janeiro de 1987, do Tribunal Constitucional, publicado no D.R., I Série, de 9 de Fevereiro de 1987. Nesse douto acórdão, apreciando a constitucionalidade do artigo 281.º do Código de Processo Penal, na redacção que havia sido aprovada em 4 de Dezembro de 1986 pelo Conselho de Ministros, e que não continha qualquer referência ao juiz de instrução, refere-se o seguinte:

      “Naturalmente que, praticados os actos necessários, compete também ao MP encerrar o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação (artigos 276.º, 277.º e 283.º).

      O artigo 281.º consagra, porém, uma inovação nesta matéria, estabelecendo o princípio da oportunidade do exercício da acção penal pelo MP relativamente à pequena criminalidade, atribuindo-lhe o poder de suspender o processo, quando se verifiquem conjuntamente certas condições [as constantes do proémio do n.º 1 e das alíneas a) a e) do mesmo número], mediante a imposição – pelo próprio MP – de injunções e regras de conduta (as definidas nas alíneas a) a i) do n.º 2].

      É a inconstitucionalidade de todo este processo que vem suscitada.

      A questão posta, ou seja, a suspensão do processo do MP, findo o inquérito, pode cindir-se em duas: uma, a da admissibilidade da suspensão, em si mesma considerada; a outra, a da competência para ordenar a suspensão e a imposição das injunções e regras de conduta.

      A admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional.

      Já não se aceita, porém a atribuição ao MP da competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução, e daí a inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.os 1 e 2 do artigo 281.°, por violação dos artigos 206.º e 32.º, n.° 4, da CRP.”

      (sublinhado nosso).

      Ora, o artigo 206.º da CRP na redacção anterior à Revisão de 1989, tinha o teor que hoje corresponde ao artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, sob a epígrafe “Função jurisdicional”:

      “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”.

      Os actos que devam constituir “actos judiciais” para os efeitos do artigo 202.º da Constituição (artigos 205.º e 206.º antes da Revisão de 1989) devem ser praticados pelo juiz de instrução, como foi expressamente afirmado no Acórdão n.º 7/87, de 9 de Janeiro, à semelhança do entendimento defendido pelo Prof. Figueiredo Dias, e publicado em “Para Uma Nova Justiça Penal”, 1983, págs. 189 e segs., citado no acórdão (DR n.º 33, de 9/02/1987, pág. 504-(6).

      Como refere José António Barreiros, “o Ministério Público actua no processo penal como órgão autónomo de administração de justiça, o que se não confunde com a acção dos órgãos judiciais, nem com a função jurisdicional e lhe garante independência de actuação face ao Ministro da Justiça.” (…) O Ministério Público não é, assim, órgão judicia1, nem lhe cabe a função jurisdicional, a qual é património exclusivo do poder judicial (artigo 205.°da Constituição).” (“Sistema e Estrutura do Processo Penal Português”, II, págs. 109 e 110).

      No mesmo sentido, pode ler-se Germano Marques da Silva: “Sujeitos processuais são o juiz, a quem cabe o exercício da jurisdição, o Ministério Público, o arguido, o assistente e o defensor, aos quais cabe o exercício de poderes e deveres que soe conglobar-se na noção de acção, que na forma de acusação, quer na forma de defesa. (…) Tomamos aqui a acção num sentido muito amplo, como o conjunto de poderes e deveres da acusação e da defesa em ordem ao reconhecimento do direito pela jurisdição.” (Curso de Processo Penal”, 1993, tomo 1, págs. 95 e 96).

      Citando Figueiredo Dias, “a específica função judicial há-de caracterizar-se materialmente pela declaração do direito do caso, através de uma decisão susceptível de transitar em julgado” (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pág. 366).

      No entanto, no regime da suspensão provisória do processo não é isso que se verifica. Nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal, o juiz de instrução não decide a suspensão provisória do processo e não escolhe nem aplica as injunções e regras de conduta. Quem decide é o Ministério Público, e o juiz encontra-se numa situação idêntica à do arguido e à do assistente: concorda ou discorda (artigo 281.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, e similar à que o Ministério Público tem na instrução, fase em que “é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 281.º, obtida a concordância do Ministério Público” (artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

      Ou seja, nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal, como se verifica no caso dos autos, o juiz não decide, nem tem qualquer intervenção na decisão do Ministério Público. Ou seja, atribui-se a função jurisdicional ao Ministério Público, que decide o caso concreto, cabendo ao juiz de instrução uma intervenção processual acessória e não jurisdicional, de mera concordância, sem qualquer intervenção na escolha das injunções ou regras de conduta a aplicar ao arguido. Nesse mesmo sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Évora, de 8/04/97 – in C.J., XXII, 2, p. 275: “Quem decide pela suspensão provisória do processo é o Ministério Público. Quem impõe ao arguido as injunções e regras de conduta é o Ministério Público. (…) O juiz de instrução não pode substituir-se ao Ministério Público no sentido de impor por sua iniciativa injunções e regras de conduta que não sejam as propostas pelo Ministério Público.”

      Ao atribuir-se ao Ministério Público a competência para a prática daqueles actos jurisdicionais, viola-se o princípio de tutela jurisdicional dos direitos fundamentais, e a reserva de jurisdição dos tribunais a quem compete “administrar a justiça em nome do povo”, “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” bem como “reprimir a violação da legalidade democrática” (artigo 202.º, nº 1 e nº 2, da Constituição).

      - segunda – O artigo 281.º do Código de Processo Penal viola o princípio da independência dos tribunais consagrado no artigo 203.º da Constituição, uma vez que não prevê qualquer intervenção do juiz de instrução para a escolha e determinação da solução de direito do caso concreto. O Ministério Público decide a suspensão provisória e determina as injunções ou regras de conduta a aplicar ao arguido, sem qualquer intervenção do juiz de instrução, que é depois colocado diante do “facto consumado”, por vezes com a injunção já cumprida pelo arguido.

      Nas palavras de Castro Mendes, “a independência dos Juízes é a situação que se verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente outros factores que não os judicialmente adequados a conduzir à legalidade e à justiça da mesma decisão” (“Estudos sobre a Constituição”, 3.º vol., 1979, pág. 654). O que manifestamente não sucede na previsão do artigo 281.º do Código de Processo Penal, condicionando o juiz pela anterior decisão do Ministério Público, nomeadamente quanto à selecção das injunções e regras de conduta e à determinação do período de suspensão, de uma forma ofensiva da dignidade da função de julgar.

      - terceira – Acresce que o artigo 281.º do Código de Processo Penal é também inconstitucional quando interpretado em conjunto com o disposto no artigo 64.º do Código de Processo Penal, no sentido de ser dispensada a assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a concordar com a suspensão provisória do processo e com as injunções e regras de conduta que lhe são apresentadas pelo Ministério Público.

      Na verdade, ainda que se defenda que as injunções ou regras de conduta não constituem uma pena no sentido do direito penal material nem uma sanção de natureza para-penal (Lowe/Rosenberg, citados por Manuel da Costa Andrade, “Consenso e Oportunidade”, in “Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal”, pág. 353), as mesmas representam sempre uma limitação aos direitos e liberdades do arguido.

      “Do ponto de vista do direito penal substantivo, trata-se aqui de uma sanção de índole especial não penal a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa. Significativo para o efeito que o arguido não possa ser coagido nem à aceitação das injunções e regras nem ao respectivo adimplemento: o efeito de sanção que lhe está ligado assenta na liberdade de decisão (FreiwilligKeit) do arguido”...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
2 temas prácticos
2 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT