Acórdão nº 344/07 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Junho de 2007

Magistrado ResponsávelCons. Vitor Gomes
Data da Resolução06 de Junho de 2007
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 344/07

Processo n.º 215/06

Plenário

Relator: Conselheiro Vítor Gomes

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença do Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal), de 14 de Dezembro de 2005, que absolveu a arguida A. da contravenção de que vinha acusada e que consistia em fazer-se transportar num autocarro de uma carreira de transporte colectivo de passageiros, sem que estivesse munida do correspondente título de transporte válido. Para tanto, a sentença recorrida recusou aplicação à norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, com fundamento em violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, que considerou consagrados nos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 25.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, da Constituição, por estabelecer, para a contravenção em causa, uma multa de montante fixo.

Pelo acórdão n.º 117/2007 (3.ª Secção), o Tribunal concedeu provimento ao recurso, decidindo não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, na parte em que estabelece, para a contravenção aí prevista, uma multa correspondente a 50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado.

2. Deste acórdão interpôs o Ministério Público recurso para o Plenário, ao abrigo do artigo 79.º-D da LTC, com fundamento em que tal julgamento é contraditório com o juízo de inconstitucionalidade formulado, quanto à mesma norma, no acórdão n.º 579/2006.

O recurso para o Plenário foi admitido, tendo apresentado alegações, somente, o Ministério Público. Reproduz, no essencial, o que alegara perante a Secção e conclui nos termos seguintes:

1 – É inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma constante do artigo 3º, nº. 2, alínea b) do Decreto-Lei nº. 108/78, de 24 de Maio, na medida em que estabelece uma pena de multa de valor fixo, que o Tribunal terá sempre de aplicar em caso de condenação.

2 – Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida quanto à questão de inconstitucionalidade que é objecto de recurso

.

  1. Fundamentação

    4. Nada obsta ao conhecimento do recurso pelo Plenário.

    Designadamente, verifica-se que o acórdão recorrido julgou a questão de constitucionalidade da referida norma em sentido oposto ao decidido pelo acórdão n.º 579/2006, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Janeiro de 2006, satisfazendo-se, assim, o pressuposto estabelecido pelo n.º 1 do artigo 79.º-D da LTC.

    Efectivamente, pelo acórdão nº 579/2006, com fundamentação retomada no acórdão n.º 679/2006, o Tribunal julgou inconstitucional a norma que é objecto do presente recurso, considerando que a cominação de uma pena de multa de montante fixo para os ilícitos contravencionais em causa viola os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

    E sobre esse mesmo problema – a questão da constitucionalidade da cominação de penas fixas para o ilícito contravencional punido com pena de multa – embora versando sobre a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º do mesmo diploma, que estabelece a sanção para a ultrapassagem da paragem para que o título era válido, recaiu o acórdão n.º 5/2007, também no sentido da inconstitucionalidade.

    5. Lembremos o caso: o Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal) recusou a aplicação da norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 108/78, de 24 de Maio, com fundamento na violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Constituição.

    É a seguinte a redacção daquela disposição legal:

    Artigo 3º

    1 – (…)

    2 – Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma multa de montante de:

    a) 50% do preço do respectivo bilhete mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer título válido de transporte;

    b) (…)

    .

    Entretanto, a Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho, veio substituir este regime sancionatório, definindo a falta de título de transporte válido como contra-ordenação punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menos valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com respeito pelos limites máximos previstos no artigo 17.º do regime geral do ilícito de mera ordenação social (artigo 7.º) e mandando punir como contra-ordenações as anteriores contravenções, sem prejuízo do regime mais favorável (artigo 14.º). Intervenção legislativa esta que se insere num "pacote legislativo" em que, além desse diploma, se incluiu a Lei n.º 30/2006, de 11 de Julho, visando a erradicação das contravenções que ainda subsistiam no nosso ordenamento jurídico, substituindo-as por contra-ordenações.

    Recorde-se que se pune o comportamento de utilização de meio de transporte colectivo de passageiros sem título válido de transporte, nos casos em que a cobrança não é feita por agente cobrador mas por outro processo, sujeitando o infractor - além do pagamento do preço do bilhete correspondente ao seu percurso aspecto que não está em causa, porque não respeita ao segmento sancionatório – a uma multa de “50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado”. Trata-se de forçar o utente a adequar o seu comportamento à evolução do sistema de cobrança nos transportes colectivos de passageiros, criando uma sanção suficientemente dissuasora do incumprimento da obrigação legal de pagar o preço do transporte, desmotivando para uma conduta cuja generalização importa prevenir porque, além da consequência imediata na relação entre o prestador do serviço e o utente, tornaria menos eficiente a prestação do serviço público em causa, porque obrigaria a mobilizar recursos para a cobrança ou o controlo sistemático.

    É inegável que a norma em causa estabelecia, para um ilícito de natureza contravencional, uma multa de montante fixo, caso se verificasse a situação descrita no tipo (utilização de transporte colectivo de passageiros sem título válido). Não era um montante absolutamente fixo, na medida em que o montante da multa era calculado em função do preço do respectivo bilhete ou do mínimo cobrável no transporte utilizado, consoante o maior produto; mas era uma pena fixa, no sentido de não graduável pelo juiz dentro de uma moldura penal abstracta que estabelecesse um mínimo e um máximo (Cfr., sobre diversas acepções da expressão pena fixa, acórdão n.º 83/91, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Agosto).

    6. Deve começar-se por salientar que não há divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento quanto à inconstitucionalidade da cominação, para ilícitos criminais, de penas insusceptíveis de individualização pelo juiz. Também no acórdão recorrido se acompanha o que no acórdão n.º 124/2004 (Diário da República, I-Série A, de 31 de Março), filiando-se no Acórdão n.º 95/2001, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Abril de 2002, se pondera:

    (...) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.

    Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, vai buscar o seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, página 73).

    Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.

    A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.

    Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas, o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também vincula o juiz.

    A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim...

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