Acórdão nº 117/2006-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 18 de Janeiro de 2007

Data18 Janeiro 2007
ÓrgãoCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

P. 117/06- 9 Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa: I - RELATÓRIO No âmbito do processo nº 1684/02.0PCSNT, do 3º Juízo Criminal de Sintra, o Ministério Público, findo o inquérito, deduziu acusação, entre outros, contra os arguidos I.

, L.

e A. , imputando-lhes a prática, a cada um, da autoria material, em concurso aparente, de um crime de infracção de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços, p. e p. pelo artº 277º, nºs 1, al. a) e 2, do C. Penal, com referência ao disposto no artº 202º, al. a), do mesmo diploma, e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artº 148º, nº 1, do C. Penal.

Porém, discordando do referido despacho acusatório, requereram os arguidos a abertura da instrução, suscitando, a título de questões prévias, a nulidade da acusação, alegando, em síntese, não se proceder, na mesma, a uma narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação da pena, não tendo sido suficientemente individualizada a actuação dos arguidos, bem como a inconstitucionalidade da norma do artº 277º, nº 1, al. a), do C. Penal, por, alegadamente, o normativo em referência não descrever, ele mesmo, o comportamento devido ou proibido, limitando-se a remeter, quanto a essa mesma descrição, para outras normas, que podem revestir natureza legal, regulamentar ou técnica, donde não ser possível, através da disposição em apreço, saber quais os comportamentos concretos cuja comissão ou omissão envolve responsabilidade penal. Entendem os arguidos que a imputação da prática do crime apenas seria admissível na medida em que existissem normas legais, regulamentares ou técnicas que concretizassem o critério da incriminação penal, o que, in casu, não se verifica, pois o Ministério Público, ao limitar-se a invocar a violação pelos requerentes "das mais elementares regras de cuidado", cujo comportamento lhes seria exigível face às competências e respectivos conhecimentos, remetendo, genericamente, para as disposições do plano de segurança e saúde da obra e para o DL nº 155/95, enferma de vaguidade e indeterminação, não sendo constitucionalmente admissível imputar aos requerentes a prática de um crime que depende da verificação da violação de um dever alegadamente previsto em normas complementares, quando, também nessas normas, não se encontra inequivocamente tal previsão. Concluem no sentido de o art. 277.º, n.º 1 Cód. Penal violar, assim, o princípio da legalidade, na sua vertente de reserva de lei, por a regra que é chamada a complementar a norma do art. 277.º do Cód. Penal não conter elementos do tipo incriminador, não sendo norma constante de diploma da AR ou de diploma autorizado do Governo.

Por despacho de 19-09-05, o Mmo. Juiz "a quo" indeferiu as suscitadas questões prévias.

Inconformados com esta decisão, da mesma recorreram os arguidos, e, da sua motivação, extraíram as seguintes conclusões: 1. O artigo 283º, n.º 3 do CPP estabelece quais os elementos essenciais que a acusação deve conter, sob pena de nulidade, e neste elenco encontramos "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança" (alínea b)), e a "indicação das disposições legais aplicáveis" (alínea c)).

  1. A acusação destes autos encontra-se ferida de nulidade, por não respeitar o disposto no artigo 282º, n.º 3, do CPP, quer quanto à narrativa suficiente, clara, completa e congruente dos factos, quer quanto à indicação (com aquelas características) das normas aplicáveis.

  2. Com efeito, a acusação não indica (não indica pura e simplesmente ou não indica de forma suficiente, clara, completa e congruente) nomeadamente factos que indiciem (muito menos suficientemente) que os recorrentes tenham, no âmbito da sua actividade profissional, infringido regras que devessem ter sido observadas no planeamento, direcção ou execução desta obra, nem, finalmente, qual a regra legal, regulamentar ou técnica infringida, quer em geral, quer por cada um dos Arguidos, em particular os aqui recorrentes.

  3. Assim, contrariamente ao que se defende no despacho recorrido, não "ressalta, da mera leitura da peça acusatória, encontrar-se o comportamento dos arguidos individualizado", ou, pelo menos, individualizado de forma a permitir preencher (minimamente) os requisitos exigidos no artigo 283º, n.º 3 do CPP.

  4. Com efeito, o MP não faz mais do que indicar (vagamente) quais as funções exercidas pelos recorrentes, sem que daí retire, ou permita retirar, quais os deveres que cabiam a cada um em matéria de segurança, deixando dessa forma os Arguidos sujeitos a exercícios de "imaginação" ou "adivinhação" que, evidentemente, não podem ser admitidos em sede criminal.

  5. Em suma, não diz, e muito menos claramente, que deveres concretos e específicos cabiam aos recorrentes e que estes incumpriram, qual a fonte de tais alegados deveres e, bem assim, qual a acção devida que omitiram e que seria, em tese, apta a evitar o resultado típico (o que é tanto mais importante, note-se, quanto mais levarmos em conta que estamos na presença de uma imputação de responsabilidade criminal por omissão - cfr. artigo 10.º, 2 do CP).

  6. E à escassez da matéria de facto alegada, acresce que, no que respeita à indicação das "disposições legais aplicáveis", o MP limita-se a concluir que os recorrentes conheciam os planos de segurança em vigor na obra e respectivas proibições e sabiam que a RRC se havia obrigado a cumprir as directivas de segurança e saúde a aplicar em estaleiros temporários móveis, conforme o estabelecido pela Directiva n.º 99/56/CE e D. Lei n.º 155/99, de 1.7.

  7. Verifica-se assim que a acusação faz um aglomerado vago e pouco claro de factos, e vem concluir simplesmente que aquela factualidade preenche um ou vários tipos de crime relativamente a pessoas com condutas e responsabilidades muito diferentes, contrariando assim todos os princípios da certeza e da segurança que o processo penal deve, em todas as circunstâncias, respeitar, e que se orientam, teleologicamente, para a garantia da defesa (da defesa esclarecida, plena e eficaz).

  8. De outro passo, a acusação suscita uma questão de inconstitucionalidade normativa, na medida em que pretende imputar aos Arguidos, e em particular aos aqui recorrentes, uma norma penal - resultado da conjugação da norma (penal em branco) contida no artigo 277º, n.º 1, alínea a), do CP e de uma pretensa norma (legal? regulamentar? técnica?) que apenas vagamente se sugere ou intui - que não respeita os mandamentos do princípio da legalidade, nem na vertente da reserva de lei, nem na vertente da tipicidade (lege certa).

  9. Com efeito, só as normas legais, regulamentares ou técnicas que estabeleçam proibições ou obrigações perfeitamente claras, precisas, determinadas e objectivas podem funcionar para efeitos de incriminação ao abrigo do supra citado artigo.

  10. Assim, a imputação aos ora recorrentes da prática do crime p. e p. no artigo 277º, n.º 1, alínea a) do CP só seria admissível na medida em que existissem normas legais, regulamentares ou técnicas que concretizassem o critério da incriminação penal o que, in casu, não se verifica.

  11. Não é, nestes termos, constitucionalmente admissível imputar a prática de um crime que depende da verificação de violação de um dever alegadamente previsto em normas complementares, quando, também nestas normas, não se encontra inequivocamente tal previsão, sendo certo que a norma assim "construída" é, consequentemente, incompatível com o princípio de certeza e segurança na definição da lei penal, consagrado no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.

  12. Acresce que, in casu, é ainda violado o princípio da culpa, consagrado nos...

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