Acórdão nº 433/04.3TAPRD de Court of Appeal of Porto (Portugal), 06 de Fevereiro de 2007

Data da Resolução06 de Fevereiro de 2007
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

(Despacho proferido na 1ª Instância) I [1] Os arguidos B………… e «C………….., Limitada», encontram-se pronunciados, nos presentes autos, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p., à data da prática dos factos, pelos artigos 27.º-B e 24.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, e actualmente pelo artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, com referência ao artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (doravante, apenas RGIT).

[2] Ora, o artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2007), recentemente publicada, alterou o n.º 4 do artigo 105.º do RGIT (aplicável ao caso ex vi do preceituado no falado artigo 107.º, n.º 2, do mesmo diploma legal), que assim passou a ter a seguinte redacção: «Artigo 105.º Abuso de confiança (…) 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

(…) [3] A alteração em apreço consistiu, portanto, e em síntese, no aditamento, ao preceito legal em referência, de uma (nova) circunstância (saber qual a específica natureza desta «circunstância» é matéria a que regressaremos mais adiante) que, a verificar-se, exclui a punição do obrigado tributário que eventualmente não tenha feito entrega, à Fazenda Pública, de prestação que, nos termos da legislação fiscal pertinente, estivesse obrigado a efectuar, e que por isso mesmo, e em princípio, poderia (deveria) vir a ser responsabilizado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, tal como configurado nos números 1 e 3 do artigo 105.º do RGIT. Aparentemente, pois, operou-se por via desta recentíssima alteração legislativa uma redução do universo dos comportamentos abrangidos pela indicada norma do RGIT, cujos reflexos sobre o caso dos autos é agora, naturalmente, necessário determinar à luz das regras sobre a sucessão de leis penais no tempo. Esse é, pois, o problema a que vão dedicadas as considerações subsequentes.

II [4] A resposta ao problema suscitado, se bem vemos, há-de encontrar-se no âmbito do direito inter-temporal penal. «Como produto histórico-cultural de um determinado momento, a lei penal não pode aspirar a uma validade indefinida» (José Miguel Zugaldía Espinar, Fundamentos de Derecho Penal, 3.ª ed., 1993, pág. 317). Surge, por isso, «o problema de determinar - naqueles casos em que se sucedam no tempo várias leis penais - qual é a aplicável a um facto realizado sob a vigência de uma lei (a antiga e já revogada) quando ele é julgado já sob a vigência de outra lei diferente (a nova lei)» (id, ib.; sublinhados no original).

[5] O princípio de partida é, também no domínio do direito penal, o do tempus regit actum: por via de regra, os factos devem ser apreciados de acordo com a lei que estava em vigor no momento da sua prática. Se «[n]inguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior» (Constituição da República Portuguesa, artigo 29.º, n.º 1), também «[n]inguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos» (mesmo artigo, n.º 4, 1.ª parte). Isto significa, como escrevem J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., vol. I, 2007, pág. 495), «fundamentalmente duas coisas: (a) que a lei penal não pode qualificar como crimes factos passados, valendo somente para o futuro; (b) que a lei não pode aplicar a crimes anteriores penas mais graves (ou aplicar medidas de segurança a situações anteriormente irrelevantes ou a que correspondiam medidas menos severas). A razão de ser deste princípio básico da "constituição penal" tem a ver com a própria racionalidade e razoabilidade da censura penal, não fazendo nenhum sentido que alguém possa ser condenado por uma conduta que não era criminalmente relevante no momento da sua prática ou que seja condenado por uma pena mais grave do que a que estava prevista no momento da prática do crime».

[6] Porém, já se aplicam «retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido» (Constituição da República Portuguesa, artigo 29.º, n.º 4, 2.ª parte): «[s]e é proibida a aplicação retroactiva da lei penal desfavorável, já é obrigatória a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (…). Se o legislador deixa de considerar criminalmente censurável uma determinada conduta, ou passa a puni-la menos severamente, então essa nova valoração legislativa deve aproveitar a todos, mesmo aos que já tinham cometido tal crime. Este princípio compreende também duas vertentes: (a) que deixa de ser considerado crime o facto que lei posterior venha despenalizar; e (b) que um crime passa a ser menos severamente punido do que era no momento da sua prática, se lei posterior o sancionar com pena mais leve» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição, cit., págs. 495-496; sublinhados no original).

[7] Do exposto resulta, assim, que, pressupondo os conflitos temporais de leis (penais) a ocorrência de uma sucessão de leis penais (ou seja, que se verifique, entre o momento da prática do facto e o momento em que há que proceder à sua apreciação, e fixar a eventual responsabilidade do seu agente pela conduta por si empreendida, uma alteração legislativa-penal), não é indiferente, para determinar as consequências decorrentes de tal alteração, a natureza desta.

[8] Assim «[a]s alterações legislativas penais ou sucessão de leis penais em sentido amplo, podem derivar da mutação da concepção do legislador sobre a ilicitude do facto ou sobre a necessidade político-criminal da pena, quer em sentido negativo (lei despenalizadora), quer em sentido afirmativo (lei penalizadora)» (Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 2.ª ed., 1997, pág. 110; sublinhados no original). Neste caso, às hipóteses «de pura e simples despenalização e da alteração da qualificação da hipótese de crime para contra-ordenação» (aut.

cit., pág. 111), a lei nova despenalizadora aplicar-se-á retroactivamente (assim dispõe, aliás, o n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal: «O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais»), e nas hipóteses de lei nova penalizadora, esta só se aplicará pós-activamente (cfr.

aut. e ob.

cit., ib.).

[9] Já «as modificações legislativas que, mantendo a ilicitude penal do facto - deixando, portanto, intocado o preceito primário ou hipótese legal -, e, correspondentemente, a responsabilidade penal, todavia, por razões político-criminais de prevenção geral e/ou especial, alteram o preceito sancionatório da norma penal, agravando ou atenuando as consequências jurídico-penais» (Taipa de Carvalho, cit., pág. 111; sublinhados no original), configuram «casos patentes de sucessão de leis penais stricto sensu» (id., pág. 112). A estas «hipóteses em que, não havendo alteração da factualidade típica (tipo legal), e mantendo esta a qualificação de infracção penal, é, porém, alterada a responsabilidade penal dela emergente, isto é, há somente, modificação da pena (principal e/ou acessória) e/ou dos efeitos penais» (id., ib.), aplica-se o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal: «é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado».

[10] A distinção enunciada já se complica - naturalmente - nos casos daquelas alterações legislativas que se traduzem «na modificação da estrutura do tipo legal de crime, isto é, as hipóteses em que tanto a L.A. [Lei Antiga] como a L.N. [Lei Nova] prevêem tipos legais de crime, mas a L.N. adiciona, subtrai ou substitui circunstâncias ou elementos do tipo legal...

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