Acórdão nº 06P3199 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 23 de Novembro de 2006

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução23 de Novembro de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. OS FACTOS "AA" era casado com a assistente BB, sendo ambos donos de uma loja de animais sita na Rua ..., em ...... O arguido é casado com CC, residindo na altura dos factos na Rua ..., ..., Rio de Mouro. CC era cliente da loja de BB e tinha uma dívida por compras feitas nessa loja. Por causa dessa dívida, BB interpelou-a para que a pagasse, o que desagradou a CC, que enviou à assistente uma mensagem dizendo que "contaria tudo ao AA". Na sequência dessa mensagem, BB dirigiu-se à residência de CC, sita no local acima mencionado, interpelando CC, que descera à rua, sobre o sentido da mensagem que lhe enviara, ao que aquela retorquiu que "iria contar". Nessa altura em que BB se deslocara a casa de CC, AA estava na loja de animais. Face à resposta de CC, BB desferiu-lhe umas bofetadas, provocando-lhe hematomas.

Nesse momento, quando eram cerca de 20 horas [do dia 13Jan05] (1) , chegou o arguido que se apercebeu da agressão e perguntou a BB o que se passava. Nessa altura, chegou também AA, vindo da loja próxima onde se encontrava, que se dirigiu ao arguido e lhe deu um soco e um empurrão que o desequilibraram, levando-o a cair por cima de um automóvel estacionado, provocando-lhe uma equimose amarela na região malar esquerda, com dois centímetros de diâmetro médio. Em resposta, o arguido empurrou AA com os pés, com força, atirando-o contra a parede do prédio em frente, onde embateu com as costas. Em seguida, o arguido, [perturbado e irritado,] (2) empunhou na mão direita uma arma branca com lâmina, tipo navalha, a qual não foi apreendida, dirigiu-a ao peito de AA, onde a espetou no lado esquerdo. AA, assim ferido, efectuou a travessia da rua e caiu no chão no lado oposto, onde faleceu. Após o AA cair, o arguido retirou-se para sua casa onde foi detido pela GNR. Com a facada (3), o arguido provocou ao AA as seguintes lesões (...) (4), que foram causa directa e necessária da sua morte (5) (6) .O arguido - utilizando um instrumento de natureza corto-perfurante do tipo navalha, cujas características altamente letais conhecia, manipulando-o de forma inesperada para AA - previu a morte deste, como consequência possível da sua conduta, conformando-se com tal possibilidade (7). O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo proibida pela lei a sua conduta.

O arguido trabalhava como segurança em Inglaterra, auferindo um salário mensal, com horas extraordinárias, de cerca de duas mil libras; tem um filho com vinte e um anos que já trabalha. Do seu certificado de registo criminal nada consta.

DD nasceu a 7 de Abril de 1993, sendo filho de AA e de BB.

EE nasceu a 23 de Novembro de 1996, sendo filho de AA e de BB.

FF nasceu a 30 de Agosto de 2000, sendo filho de AA e de BB. AA e BB casaram em 17 de Outubro de 1992.

AA tinha cerca de trinta e cinco anos de idade e vivia com sua mulher e os seus filhos DD, EE e FF, não lhe sendo conhecidos problemas de saúde ou de adicção. AA era pessoa dedicada à família, tendo a sua mulher e os filhos DD, FF e EE sentido imenso desgosto com a sua morte. FF assistiu aos factos que originaram a morte do pai e aos últimos momentos de vida deste, factos que o irão acompanhar ao longo da vida.

Para além de DD, EE e FF, AA tem, pelo menos, outras duas filhas» 2. A CONDENAÇÃO Com base nestes factos, 1.ª Vara Mista de Sintra, em 17Fev06, I) Condenou GG (-13Abr62), como autor de um crime de homicídio (art. 131.º do CP), na pena de 13,5 anos de prisão; II) Remeteu as partes para os meios comuns quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por AA, nomeadamente o dano da perda da vida; e III) condenou o arguido/demandado civil a pagar à assistente/demandante civil BB o montante de € 28.000, ao demandante civil DD o montante de € 28.000, ao demandante civil EE o montante de € 28.000, ao demandante civil FF o montante de € 36.000, a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros contados à taxa de 4% (quatro por cento) ao ano desde a data desta decisão até integral pagamento, sem prejuízo de eventual alteração legal da taxa: Vem imputada ao arguido a prática como autor material de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e 2, alínea h), do Código Penal. Prescindindo, por ora, para facilidade de exposição, da análise da qualificativa indicada, visto o disposto no artigo 131º, do Código Penal, para a verificação do ilícito, necessário se torna que o agente tenha praticado com êxito todos os actos idóneos a causar a outrem a morte.

Ora, face a tal, encontram-se provados os factos que determinam a verificação dos elementos constitutivos do crime quanto ao arguido, por isso que se provou que, desferiu um golpe com uma arma corto-perfurante no corpo do AA que lhe provocou lesões e destas decorreu a morte como causa directa e necessária. Provou-se ainda que o arguido agiu com intenção de matar o AA.

Vem imputado crime qualificado nos termos do artigo 132º, nº 1 e 2, alínea h). Para a verificação da qualificação, para além do já referido quanto ao crime simples do artigo 131º, é necessário que os actos tenham sido praticados em circunstâncias susceptíveis de revelarem especial perversidade ou censurabilidade do agente, sendo que a lei considera susceptíveis de as revelarem, entre outras, as circunstâncias previstas no artigo 132º, número 2, do Código Penal.

Quanto à mencionada alínea h). Dispõe a alínea d), do artigo 132º: "h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso". Face à matéria dos autos apenas pode considerar-se a hipótese de integração da circunstância do uso de meio insidioso. Para o que cumpre apreciar do meio em concreto utilizado. Não foi apreendida a arma mas existem elementos dos quais se retirou que seria uma arma branca do tipo navalha. Não resultou provado que essa arma tivesse um qualquer disfarce. O arguido puxou dela num contexto de altercação nada havendo que permita concluir que o fez de forma a esconder a existência da arma. Também nada se provou quanto a um conhecimento do arguido de que o AA estivesse desarmado. Em suma, da matéria de facto resulta que o arguido desferiu o golpe mortal utilizando uma arma adequada a tal fim, o que não excede a previsão do tipo simples de crime, uma vez que se não provou qualquer situação de insídia. Nada se provou que possa demonstrar que essa actuação do arguido se revestiu de características susceptíveis de demonstrarem particular perversidade ou censurabilidade do arguido. A perigosidade da arma utilizada decorre da sua adequação a causar a morte do atingido. Entende-se, em consequência, que essa perigosidade não pode fundar a qualificação do homicídio. Na verdade, existindo intenção de matar, tem de haver um mínimo de adequação do meio utilizado ao fim e não se vê que a utilização daquele instrumento exceda esse mínimo em termos de qualificar o homicídio.

Resta apreciar se, para além destas circunstâncias especificamente referidas no nº 2 do artigo 132º, do Código Penal, se verificam outras, não tipificadas, das quais se possa concluir pela especial censurabilidade ou perversidade da conduta, nos termos que acima se definiram, integrando a previsão do nº 1 da norma. Como se referiu, a censurabilidade deve encontrar-se em formas de prática do facto especialmente desvaliosas.

Ora, nada se provou que permita considerá-lo, nomeadamente qualquer situação de particular indefesa da vítima. Em consequência, o arguido cometeu um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 131º, do Código Penal, com prisão de oito a dezasseis anos.

Deduziram a assistente, viúva de AA, e alguns filhos da vítima pedido de indemnização civil para apreciação dos danos não patrimoniais por a vítima e por eles sofridos em razão da morte. Pedem uma indemnização de € 150.000,00 pelo dano morte e de € 120.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes. Constituem pressupostos de responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483º, nº 1, do Código Civil, a prática pelo lesante de um facto ilícito, a imputação do facto ao lesante a título de culpa, a existência de danos indemnizáveis e de nexo de causalidade entre o facto e os danos. Atento o disposto no artigo 483º, nº 1, do Código Civil, a ilicitude civil do facto pode resultar da violação de um direito de outrem ou de norma legal destinada a proteger interesses alheios. Tem de considerar-se ilícita civilmente a conduta do arguido enquanto violadora das normas penais que protegiam o direito à vida do AA. A imputação dos factos ao arguido a título de culpa, na modalidade de dolo, resulta do exposto em sede de apreciação da responsabilidade penal dele e do disposto no artigo 487º, nº 2, do Código Civil. Resultou provado que o AA foi morto pelo golpe desferido pelo arguido e que dessa morte resultou desgosto e sofrimento para os demandantes. Verifica-se, assim, nexo de causalidade entre os factos e os danos, nos termos do artigo 563º, do Código Civil.

Nos termos do artigo 496º, nº 1 e 2, do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, tendo direito a indemnização, em caso de morte, o cônjuge não separado de pessoas e bens e os filhos.

Não define a lei o que seja a gravidade dos danos susceptível de determinar indemnização. Integra-se, assim, o conceito entre aqueles que o Professor Manuel de Andrade qualifica "como essencialmente flexíveis, meras directrizes gerais muito vagas e plásticas, cuja consistência exacta a lei não específica e tem de ser decidida pelo Juiz, no momento da aplicação, segundo as concepções reinantes no agregado social (...)" (cfr. "Ensaio sobre a Teoria de Interpretação das Leis", Coimbra, 1987, p. 47). Face ao que o intérprete deve, desde logo, buscar no conjunto do ordenamento jurídico um critério orientador. Entendemos que tal critério orientador em casos que assumem relevância criminal é o de considerar que, se a importância dos bens...

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