Acórdão nº 06P548 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 27 de Abril de 2006

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução27 de Abril de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. OS FACTOS - Arguido/recorrente: AA (1) O arguido é pai de BB, nascida a 22 de Setembro de 1988. Desde data situada entre o final do ano de 2000 e o início do ano de 2001, contava BB 12 anos, o arguido começou a manter com ela relações sexuais de cópula completa, introduzindo-lhe o pénis erecto na vagina. Tal prática sexual verificou-se na residência do agregado, sita na altura no .., Casa ...., em Talaíde, quando o arguido ficava sozinho em casa com a filha. Para esse efeito, aproveitava-se da circunstância de a mulher chegar mais tarde do trabalho ou sair para trabalhar durante os sábados. Tais relações sexuais, mantidas entre o arguido e a filha ocorreram durante o período compreendido entre finais do ano de 2000 e 2002, naquele local, tendo-se repetido, no seu total, não mais de dez vezes. Em 2002/2003, o agregado familiar mudou a sua residência para o Bairro de ..., Rua das ...., em Porto Salvo. Na nova residência e durante os anos de 2003/2004 (até final em Junho deste último ano), o arguido voltou a manter relações sexuais com a filha, penetrando-lhe a vagina com o pénis. Tal relacionamento acontecia na sala, em especial em cima dum sofá-cama aí existente, e nos quartos. O arguido chegou, nessas situações, a beijar a vulva da filha. Pediu-lhe, ainda, que lhe beijasse o pénis, o que ela recusou. Tal relacionamento sexual era ordenado pelo arguido à filha, que retirava, sob as indicações do pai, a roupa da cintura para baixo. O arguido, que nunca usou preservativo, retirava o pénis, antes de ejacular, do corpo da filha. Por vezes, o arguido, para poder estar sozinho com a filha, levava a filha mais nova, Patrícia, a casa de uma tia ou mandava-a fazer umas compras. No dia 12 de Junho de 2004, após ter regressado duma festa de casamento, o arguido deitou-se no sofá da sala e aí manteve relações sexuais com a sua filha BB, penetrando-lhe a vagina com o pénis. Veio a adormecer nesse sofá, ainda na companhia da filha, tendo vindo a ser surpreendido pela mulher, quando ainda ostentava o pénis fora dos calções que trajava. Em determinada ocasião da primeira metade do ano de 2004, o arguido AA dirigiu a BB a expressão: "Logo à noite quero delirar contigo". Noutro momento, dentro desse período temporal, o arguido referiu à filha que, se dormisse com ele, deixava-a namorar com outros à vontade. Afirmou-lhe ainda que já não gostava da mãe; gostava era dela e que queria fugir com ela. Quando iniciou relacionamento sexual com o pai, esta ainda não tinha estabelecido qualquer outro relacionamento sexual. Por diversas vezes, o arguido entrou na casa de banho quando BB aí se encontrava desnudada, pretendendo observá-la nessa situação. Da mesma forma entrou por diversas vezes no quarto de dormir desta, quando ela aí se encontrava a mudar de roupa. Bem sabia o arguido que sua filha BB apenas lhe permitia o relacionamento sexual que aquele procurava e concretizava em virtude da sua ascendência e autoridade parental, bem como da sua superioridade física.

O arguido adquiriu e detinha em seu poder, no interior da residência, uma pistola semi-automática, marca Tanfoglio, modelo GT28, originalmente de calibre 8 mm e destinada a deflagrar munições de alarme, posteriormente adaptada a disparar munições com projéctil, de calibre 6,35 mm Browning, sem número de série visível, à qual foram apostas as inscrições: "Star - Made in Spain Cal. 6,35". Tal arma foi-lhe apreendida em 12 de Julho de 2004. O arguido não possuía licença de uso e porte de arma. Bem sabia o arguido que este seu comportamento era proibido e punido pela lei.

Não tem antecedentes criminais. É oriundo dum agregado familiar muito numeroso, tendo vivenciado precocemente uma situação familiar desestruturada, tanto no plano afectivo e relacional como a nível sócio-económico.

Os progenitores separaram-se quando o arguido tinha doze anos, iniciando-se aí um período de institucionalizações sucessivas, caracterizado pela quase ausência de contactos com a figura materna e por acolhimentos temporários junto do pai, que o arguido percepciona como uma pessoa violenta e pouco afectiva. As competências escolares e sócio-profissionais do arguido são reduzidas, não tendo completado o primeiro ciclo do ensino básico, alegando dificuldades de aprendizagem. Também não concluiu a formação profissional de electricista, área em que esteve integrado nas várias instituições que frequentou. No período de serviço militar obrigatório há a referir a sua deserção. A sua experiência afectiva e sexual mais significativa ocorreu quando tinha 24 anos, na sequência de um relacionamento de namoro que culminou na união do casal motivada em grande parte pela gravidez da companheira. O núcleo familiar constituído pelo arguido, esposa e filhas é caracterizado por um grande isolamento face ao exterior, nomeadamente aos contactos com outros familiares, o que impossibilitou a aferição de outros modelos familiares.

O espaço habitacional onde a família viveu é exíguo, caracterizando-se pelas ténues fronteiras físicas, que dificulta o desenvolvimento da noção de intimidade e dos limites individuais. O arguido encontra-se a residir há meses no agregado de uma irmã, na sequência da obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por vigilância electrónica.

Em termos profissionais, o arguido desenvolveu o seu percurso na área da construção civil, tendo permanecido na mesma empresa cerca de catorze anos. Durante o período em que viveu no agregado familiar, o arguido trabalhou com regularidade, preocupando-se com o bem-estar material da família.

  1. A CONDENAÇÃO Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 3º Juízo Criminal de Oeiras (2), em 08Jul05, condenou AA (-05Set62), como autor de um crime de abuso sexual de crianças agravado (art. 172º, nº 1 e 2, e 177º, nº 1, alínea a), do Cód. Penal), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, e de um crime de detenção ilegal de arma (art. 6º, nº 1, da Lei nº 22/97, de 27Jun, com a redacção introduzida pela Lei nº 98/2001 de 25Ago), pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 2,00: Nos termos do art. 172º, nº 1, do CP, "Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos". Acrescenta o nº 2, desta mesma disposição legal: "Se agente tiver cópula, coito anal ou oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos". Dispõe, por seu turno, o art. 177º, nº 1, alínea a), do Cod. Penal: "As penas previstas nos art.s 163º a 165º e 167º a 176º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima (...) for ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela". Ora, o arguido, sendo pai da ofendida, manteve com esta relações sexuais de cópula completa, introduzindo o seu pénis erecto no interior da vagina daquela. Noutras ocasiões, o arguido chegou a beijar a vagina da filha, pedindo-lhe para que a mesma beijasse o seu pénis, o que ela recusou. Tais práticas sexuais ocorreram durante o período que mediou entre finais de 2000/inícios de 2001 até Junho de 2004. Ou seja, o relacionamento sexual referido ocorreu numa altura em que BB contava apenas 12 anos de idade, tendo-se prolongado até aos seus 15 anos de idade. É, portanto, evidente, o preenchimento de todos os elementos do tipo legal de crime em referência, por parte do arguido, sendo absolutamente irrelevante um hipotético consentimento da ofendida quanto a essas mesmas práticas. Conforme se escreve no acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Maio de 1997, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXII, tomo 3º, ps. 148 a 150: "Em todos os ilícitos se pune a prática de actos sexuais contra a vontade daquele que os sofre, daqueles que, em razão da enfermidade, inexperiência, dependência hierárquica carecem de capacidade para avaliarem o sentido crítico do acto de consentimento ou entrega sexual. É o caso das crianças, relativamente às quais o legislador presume "juris et de jure" a falta de vontade, a ausência de consentimento, pois que ainda manifesto é irrelevante. Combate-se a sua natural impreparação para aquela necessária avaliação. A prática de actos sexuais nas suas pessoas é perturbadora e, por isso, se persegue aquela". Há, pois, que concluir, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos, que o arguido cometeu, o ilícito penal que lhe é imputado. A respectiva moldura penal abstracta fixa-se entre um mínimo de 4 anos e um máximo de 13 anos e 4 meses.

    A determinação da pena concreta, nos termos do art. 71º do Cód. Penal de 1995, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, geral e especial. Na sua articulação, seguimos a lição de Figueiredo Dias, in «Consequências jurídicas do crime», ps. 227 e ss., que podemos enunciar do seguinte modo: Atendendo à necessidade de tutela do bem jurídico e de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, entendemos que a prevenção geral positiva fornece uma «moldura de prevenção», dentro da qual actuam razões de prevenção especial de socialização, que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Contudo, esta nunca poderá ultrapassar a culpa do agente, por imposição do princípio constitucional da culpa, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Quanto ao cometimento do crime de detenção ilegal de arma, entende o tribunal dar preferência à aplicação de pena...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT