Acórdão nº 0233/07 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 23 de Maio de 2007

Magistrado ResponsávelANTÓNIO CALHAU
Data da Resolução23 de Maio de 2007
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: I - Não se conformando com o acórdão do TCA Norte que julgou improcedente a acção administrativa especial de impugnação do despacho n.º 7/98-XIII, de 4/3/98, do Secretário de Estado da Administração Fiscal, dele vem agora a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, com sede no Porto, interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões: 1.ª Certamente por lapso, a douta sentença recorrida não deu como provados os seguintes factos, alegados pela Recorrente no seu requerimento inicial, e que se encontram indiciariamente provados pela prova documental junta aos autos e pelo processo administrativo, razão pela qual se impõe a ampliação da matéria de facto, mediante a inclusão daqueles factos entre a factualidade dada como provada nos presentes autos de processo cautelar:

  1. Em 15-SET-1997, foi prestada pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais uma informação, cujo conteúdo se dá agora por reproduzido.

  2. Em 16-SET-1997, foi exarado, sobre a informação do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o seguinte despacho: "Concordo inteiramente" - Despacho n.º 1199/97.

Isto visto, 2.ª Contrariamente ao decidido pelo Venerando TCAN, o CPT prevê apenas a dação em cumprimento (datio in solutum), não havendo lugar, no campo do direito tributário, à dação em função do cumprimento prevista na lei civil.

Com efeito, 3.ª De acordo com o princípio tempus regit actum, a regra é a de que a apreciação contenciosa da legalidade dos actos administrativos deve ser feita à luz do quadro normativo vigente à data da prolação do acto impugnado, sendo que ao tempo da emissão do acto impugnado estava em vigor o Código de Processo Tributário (CPT), sendo esse diploma o aplicável à hipótese sub juditio.

  1. As normas tributárias devem ser interpretadas de acordo com os princípios gerais da hermenêutica jurídica, pelo que, na sua interpretação como na de quaisquer outras normas jurídicas, são convocadas as regras consagradas no art.º 9.º do Cód. Civil, daí que não possa ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art.º 9.º, n.º 2), bem como na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3).

  2. Acresce ao acima exposto que quando o Direito Fiscal utiliza conceitos importados e recebidos de outro ordenamento jurídico devem os mesmos ser qualificados do mesmo modo porque o são no ramo de Direito de origem.

  3. Ora, o acto impugnado foi proferido no âmbito do plano de regularização de dívidas fiscais regulado no DL n.º 124/96, o qual, por sua vez, foi emitido ao abrigo do regime jurídico estabelecido no art.º 59.º da Lei n.º 10-B/96; por outro lado, o Despacho n.º 7/98-XIII, ora impugnado, remete expressis et apertis verbis para os art.ºs 109.º-A, 284.º e 284.º-A do CPT, normas que na sua redacção empregam as expressões "dação em cumprimento" e "dação em pagamento".

  4. A dação constitui, a par da consignação em depósito, da compensação, da novação, da remissão e da confusão, uma das causas de extinção das obrigações, além do cumprimento, previstas e reguladas no Código Civil; isto é, os sobreditos diplomas e disposições legais utilizam um conceito recebido da dogmática civilística, pelo que o termo "dação em pagamento" empregue nessas normações deve ser interpretado e qualificado no sentido e acepção que tem no Código Civil, no seguimento aliás do preceituado no art.º 11.º, n.º 2, da LGT.

  5. O Código Civil prevê dois tipos ou modalidades de dação: a dação em cumprimento (dação em pagamento ou datio in solutum) e a dação em função do cumprimento (dação em função do pagamento ou datio pro solvendo).

  6. São dois os elementos essenciais da dação em cumprimento: i) que haja uma prestação diversa da que é devida; ii) que essa prestação tenha por fim extinguir a obrigação - o que vale por dizer que, seja qual for o seu objecto, o que há de característico na dação em cumprimento é a extinção da obrigação operar-se através da realização de uma prestação diversa da devida.

  7. Diversamente, a dação em função do cumprimento é uma dação condicional, pois o efeito extintivo da obrigação só se verifica se e quando for realizado o valor da coisa ou do direito que o devedor prestou em substituição da prestação devida.

  8. Ora, no CPT acolheu-se, exclusivamente, a figura da dação in solutum, pois não desconhecendo o legislador as figuras da dação em cumprimento e da dação em função do cumprimento, é de entender e concluir que empregou o termo "dação em pagamento" na mesma acepção que esta expressão tem no ramo de direito de que provém.

  9. Ora, na dogmática civilística (nacional e estrangeira), dação em pagamento é sinónimo de dação em cumprimento (datio in solutum, dation en paiement, substituted payment, zahlungsstaff): a dação em pagamento corresponde à dação em cumprimento e como tal sempre foi entendida - assim, Manuel de Andrade/Rui Alarcão, Teoria Geral das Obrigações, 1963, pp. 83-84; Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, II, p. 149.

  10. A dação em pagamento prevista nos art.ºs 109.º-A, 284.º e 284.º-A do CPT é, portanto, a dação como causa de extinção automática da obrigação tributária (dação em cumprimento, datio in solutum): por isso se fala no art.º 284.º do CPT em "extinção da dívida exequenda com a dação em pagamento de bens móveis ou imóveis" (n.º 1) e "bens a entregar em cumprimento da dívida exequenda e acrescido" (n.º 8), assim como se alude no n.º 4 do art.º 284.º-A do CPT a "obrigações extintas com a dação em pagamento".

  11. Isto é: prevê-se apenas e tão só a extinção automática da obrigação tributária e consequente liberação imediata do devedor; o mesmo é dizer que em nenhures se prevê a condicionalidade do efeito extintivo da dação.

  12. Em suma: resulta da letra dos art.ºs 109.º-A, 284.º e 284.º-A do CPT que a única forma de dação neles prevista é a dação em cumprimento e no mesmo sentido depõem o elemento intelectual daquelas normas.

    Senão, veja-se.

  13. Em primeiro lugar, a exigência da avaliação do valor dos bens oferecidos, pois tal avaliação só faz sentido se o fim da dação for a extinção imediata da dívida fiscal: tal avaliação só pode ter o significado de habilitar a Administração Tributária a concluir no sentido da idoneidade e suficiência dos bens oferecidos em pagamento para extinguir a dívida fiscal.

  14. Em segundo lugar, a natureza extintiva está também reflectida no n.º 14 do art.º 284.º do CPT quando aí se estatui que o auto de dação em pagamento valerá, para todos os efeitos, como título de transmissão, pois esse efeito translativo é típico e exclusivo da dação em cumprimento.

  15. Em terceiro lugar, decorre do n.º 4 do art.º 284.º-A do CPT que, no caso de o valor dos bens dados em pagamento ser superior ao valor da dívida fiscal, o devedor não pode pretender que lhe seja devolvido o acréscimo.

  16. Donde: para além da letra da lei, também o elemento lógico e intelectual precipita a conclusão de que o único meio de extinção da obrigação tributária previsto nos art.ºs 109.º-A, 284.º e 284.º-A do CPT é a dação em cumprimento (datio in solutum) - nesse sentido vai a lição autorizada de Almeida Costa que, entre vários exemplos de dação em cumprimento, arrola "o art.º 284.º do Cód. de Proc. Tributário, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril (a respeito da extinção da dívida exequenda e acrescido nos processos de execução fiscal, norma que transitou do Dec.-Lei n.º 52/84, de 11 de Fevereiro" (in Direito das Obrigações, 5.ª ed., p. 934, nota 2).

  17. De resto, a tradição no nosso ordenamento fiscal é a de apenas admitir a dação em cumprimento - vejam-se, a esse propósito, os exemplos do art.º 129.º-A do Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações; o art.º 30.º da Lei n.º 80/77; e o art.º 40.º, n.º 2 da LGT.

    Isto visto, 21.ª Em obediência ao princípio da legalidade administrativa - que informa e enforma toda a actividade da Administração, por força do art.º 266.º, n.º 2, da CRP, concretizado no plano do direito ordinário pelo art.º 3.º do CPA e art.º 17.º, al. a) do CPT (actualmente, o art.º 55.º da LGT) - a Administração Tributária apenas podia determinar a aceitação de uma dação em cumprimento, pois era a única solução legalmente possível.

  18. Aqui chegados, é de axiomática evidência a nulidade do acto impugnado: a constituição de um terceiro (no caso, a Liga) na responsabilidade do pagamento de uma dívida já extinta é um acto cujo objecto se mostra juridicamente impossível.

  19. Nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 133.º do CPA, são nulos os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime.

  20. A impossibilidade do objecto do acto pode resultar da falta de substrato material, quando a sua execução seja factual ou tecnicamente impossível ou da falta de substrato jurídico: são de objecto impossível os actos cujos efeitos sejam jurídica ou fisicamente impossíveis.

  21. In casu, o Despacho n.º 7/98-XIII, no segmento ora impugnado (ponto 7), carece de substrato jurídico, uma vez que os seus efeitos são juridicamente impossíveis: não é juridicamente possível ressuscitar uma dívida extinta e muito menos carregá-la (seja em que medida for) a um terceiro.

  22. É, pois, manifesta a nulidade do acto impugnado, no segmento em questão, por impossibilidade jurídica do seu objecto.

  23. Não se diga ex adverso que, ao intervir no auto de dação em pagamento, a Liga veio aceitar a responsabilidade (independentemente da sua exacta qualificação jurídica) que lhe foi imposta no acto impugnado: desde logo, essa figura da "aceitação" mostra-se irrelevante, pela singela mas decisiva razão de que um acto nulo não deixa de o ser pelo facto de o destinatário lhe prestar assentimento.

  24. No douto Acórdão recorrido não se aborda a questão da violação do princípio da especialidade...

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