Acórdão nº 01810/03 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 22 de Junho de 2004

Data22 Junho 2004
Órgãohttp://vlex.com/desc1/1541_01,Supremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: 1. RELATÓRIO 1. 1. A..., com os devidos sinais nos autos, propôs, no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) do Porto, acção, com processo ordinário, contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo a sua condenação em responsabilidade civil pelos danos corporais, morais e perdas que sofreu em virtude de um incêndio na cela onde se encontrava preso, no Estabelecimento Prisional de Guimarães.

A matéria de facto foi julgada pelo tribunal colectivo e, em 21/04/2003, foi proferida sentença absolutória, com fundamento em que o Réu Estado não cometeu qualquer facto ou omissão geradores de responsabilidade.

É dessa sentença que vem agora interposto o presente recurso.

O Autor alegou e formulou conclusões, que, de útil, dizem: - A causa de pedir não se limita actuação culposa dos guardas prisionais, mas também à actuação do Estado enquanto responsável pela organização e funcionamento do sistema prisional, designadamente que não foram retirados aos reclusos os meios de fazer fogo e materiais inflamáveis, não foi exercido o dever de vigilância, não existiam meios de detecção de incêndios e as condições de sobrelotação e falta de isolamento durante a noite em relação aos demais detidos, estando em prisão preventiva com mais nove reclusos, alguns deles a cumprir pena.

- A posse dos meios para fazer fogo estava proibida, uma vez que apenas os objectos permitidos podiam estar na posse dos detidos e por serem substâncias que representavam perigo para a vida e saúde, podendo ser utilizados como arma ou instrumento de tortura, violava os artigos 119.º, n.º 1 e 110.º`, n.º 6, do DL 265/79, de 1 de Agosto.

- Se tivessem sido cumpridas estas normas e as dos artigos 18.º, n.ºs 1 e 4, 209.º, n.º 1, e 210.º, n.º 1 do mesmo diploma, o incêndio não teria acontecido, nem provocado as lesões de que sofreu.

- É aplicável a presunção de culpa do artigo 493.º, n.º 2, do CC, e o disposto no artigo 8.º do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, uma vez que se trata de uma actividade de risco, devido ao tipo de pessoas que frequentam os estabelecimentos, não se podendo considerar um incêndio provocado em consequência de um plano de fuga como circunstância não previsível.

  1. 2. Contra-alegou o Exm.º Magistrado do Ministério Público, sustentando, em síntese, que não se podia conhecer das agora invocadas violações do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1/8, por constituírem alteração da causa de pedir e, por outro lado, que é de manter a absolvição do Réu, por se não verificar o pressuposto da ilicitude.

  2. 3. Foram colhidos os vistos dos Exm.ºs Juízes Adjuntos, pelo que cumpre decidir.

  3. FUNDAMENTAÇÃO 2. 1. OS FACTOS: A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos: Da matéria de facto assente: A) No dia 13 de Julho de 1999, o Autor foi indiciado da prática de um crime de roubo (p. e p. no art.º 210.º, n.º 1, do Cód. Penal) num estabelecimento comercial de pronto a vestir; B) Por este motivo, foi-lhe aplicada uma medida de coacção, pelo que teve de aguardar julgamento em regime de prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Guimarães; C) Como é evidente, o Autor ficou sujeito a prisão preventiva contra a sua vontade; D) Sendo certo que, a partir de então, o réu Estado passou a obrigá-lo a viver e permanecer num espaço confinado; E) No dia 17 de Julho de 1999, entre as 4 e as 5 horas da manhã, deflagrou um incêndio no Estabelecimento Prisional de Guimarães, onde se encontrava detido o Autor; F) De facto, o Autor encontrava-se na cela n.º 29, juntamente com mais 9 reclusos; G) Um desses reclusos ateou o fogo dentro da cela, designadamente aos colchões; H) Na altura, o Autor estava a dormir e acordou envolvido pelas chamas e pelo fumo, que já estava a consumir a sua cama; I) Antes dos factos em causa, não foram retirados aos reclusos, incluindo aqueles que foram colocados na mesma cela do Autor, os meios para fazerem fogo; J) Assim como não foram retirados dessa cela os materiais inflamáveis, mas sim, pelo contrário, colocados colchões, mantas e cobertores facilmente inflamáveis; L) O fogo propagou-se rapidamente, atingindo o Autor; M) Depois de ser retirado da cela, o autor foi transportado para o hospital, ficando internado em Coimbra, na Unidade de Queimados, onde esteve dois dias; N) Seguidamente, foi transferido para o Hospital de Caxias, onde esteve internado durante dois meses; O) Após dois meses, deixou o Hospital de Caxias e veio para Guimarães, em meados de Setembro; P) Como consequência directa, necessária e suficiente, o Autor sofreu queimaduras nas pernas, braços, face e nariz; Q) Por isso, o Autor teve de ser submetido a uma intervenção cirúrgica, no Hospital de Caxias, às duas pernas, abrangendo a zona dos joelhos até aos tornozelos; R) À data do incêndio, o Autor tinha 36 anos; S) Nas camaratas não existem detectores de incêndio; Da matéria de facto controvertida: 1.° Apesar do fumo e das chamas que se espalhavam por toda a cela, nenhum guarda prisional detectou o fogo, sendo certo que igualmente não existia, nem funcionou, qualquer sistema automático de detecção de incêndios; 2°, 5.° e 30.° Os guardas prisionais, quando alertados para o facto da existência de um incêndio no interior da cela, pelo facto de o Autor e os seus colegas estarem aos gritos e a bater na porta a chamar por ajuda, abriram a porta e retiraram do seu interior os reclusos, alguns já feridos; 9.° Não obstante a operação e todos os tratamentos a que foi submetido, o Autor ficou com o seu corpo irremediavelmente afectado e com graves lesões que lhe dificultam o movimento dos membros e o impedem de trabalhar normalmente; 10.º Com efeito, o Autor ficou marcado para sempre com cicatrizes e lesões espalhadas por todo o corpo que além de o afectarem esteticamente, tornaram a pele, músculos e tendões rígidos, dificultando os movimentos; 11.º Sendo certo que sempre que o Autor efectua os movimentos normais, tais como andar, baixar-se, dobrar as pernas ou até correr, sofre dores horríveis; 12.º Em consequência das queimaduras sofridas no incêndio, o Autor ficou com uma incapacidade permanente geral de 10%; 16.º Deste modo, devido às lesões sofridas, o Autor ficou com a sua saúde definitivamente afectada e diminuída a sua capacidade de ganho; 18.º,19.º e 20.º Com as graves sequelas provocadas pelo incêndio, o Autor experimentou e experimenta, dores fortes e uma grande tristeza, angústia e sofrimento pelo facto de ter ficado incapacitado e ter noção das suas lesões e limitações; 21.º Além disso, o Autor ficou defeituoso para sempre, chamando a atenção de todas as pessoas que com ele se encontram e deixando chocados os que o conheciam antes do acidente; 22.º Aliás, o Autor não pode sequer frequentar uma praia ou qualquer local público, tal como piscinas ou parques desportivos, onde surja a possibilidade de mostrar o seu corpo, pois a extensão de cicatrizes causa repulsa a outras pessoas; 23.º Consequentemente, o Autor sofreu e sofre um profundo desgosto, sente-se marginalizado e tem justo receio de encarar o futuro; 24.º O incêndio deflagrou, não em resultado de qualquer circunstância previsível, para a qual o Réu deveria estar precavido, mas em consequência de um plano urdido pelo recluso B...; 25.º, 26.º, 27.º e 28.º O recluso ... congeminou o incêndio com o propósito de provocar grande quantidade de fumo, por forma a serem os reclusos, por intoxicação, evacuados para o hospital de onde esperavam poder pôr-se em fuga. Na execução deste plano, no dia e hora acima referenciados, pegou fogo ao colchão da cama. Ateado o incêndio procurou evitar que os companheiros desde logo se apercebessem, por não interessar que os guardas fossem de imediato prestar socorro. Tentou, por isso, transportar o colchão incendiado para um...

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