Acórdão nº 9743/2003-5 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 16 de Março de 2004 (caso None)

Magistrado ResponsávelPULIDO GARCIA
Data da Resolução16 de Março de 2004
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na secção criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa: Nos autos de Processo Comum-Singular NUIPC 669/01. 9 JDLSB, da 3ª secção do 2º Juízo Criminal de Lisboa, por sentença de 30 de Junho de 2003 (de fls.97-107), no que agora interessa, foi decidido (transcreve-se): «... o tribunal julga provada e procedente a acusação e consequentemente condena a arguida (A) a) Como autora de um crime de furto simples previsto e punido pelo artº 203º, nº 1 do Código Penal na pena de cento e vinte dias de multa à taxa diária de seis euros b) Como autora de um crime de burla informática previsto e punido pelo artº 221º, nºs 1 e 4, al. a. do Código Penal na pena de cento e vinte dias de multa à taxa diária de seis euros c) Em cúmulo vai a arguida condenada na pena única de cento e oitenta dias de multa à taxa diária de seis euros (...).» Por não se conformar totalmente com o decidido, interpôs recurso a arguida, sendo a respectiva motivação rematada com as seguintes, e longas, conclusões (cfr.fls.111-130; transcrevem-se): «1) A recorrente não se conforma com a decisão contra si proferida, a qual lhe imputa a prática de um crime de furto simples, em concurso real, com um crime de burla informática, ambos previstos e puníveis, pelos arts. 203.º, n.º 1 e 221.º, n.ºs 1 e 4, al. a do Código Penal, na pena única de cento e oitenta dias de multa à taxa diária de seis euros, o que perfaz o montante total de €.1080 (mil e oitenta euros).

2) Não concebe a arguida como pode chegar o Tribunal à subsunção da sua conduta em dois tipos de ilícitos diferentes, condenando-a assim por dois crimes: um crime de furto e um crime de burla informática.

3) No entender da recorrente entre as normas do furto previsto no art. 203.º do CP e de burla informática constante no art. 221.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, intercede pelo menos uma relação de concurso aparente, não podendo desta forma a arguida ser condenada por ambos os preceitos legais.

4) Na verdade, o bem jurídico protegido por ambas as normas é o mesmo; todavia, enquanto o tipo legal do furto protege apenas a "propriedade", o tipo legal da burla informática protege o "património em geral", onde se inclui também e necessariamente o conceito de propriedade.

5) A decisão recorrida olvida a realidade inerente à utilização dos cartões multibanco, pois os mesmos só têm utilidade em conjugação com o conhecimento de um código de acesso que viabiliza a realização de várias operações, onde se conta o levantamento de montantes em dinheiro.

6) A conduta da arguida foi una, visando a utilização do cartão multibanco.

7) Aliás, muitos Autores têm vindo a defender a desnecessidade da incriminação constante do tipo de burla informática (art. 221.º, n.º 1), por força do conceito de "coisa" subjacente ao direito positivo português subsumíveis nos tipos legais do furto, do abuso de confiança ou da infidelidade.

8) Considerando que o crime de furto consubstancia um exemplo paradigmático de crime patrimonial simétrico e que o valor das coisas se afere pelo seu valor de uso, então logo se pode concluir que o furto do cartão multibanco não se pode autonomizar da pretensa burla informática, pois ao furto do cartão não correspondeu o empobrecimento da vítima e igual enriquecimento da arguida, resultando a medida do prejuízo e correspondente benefício patrimonial da arguida, da conduta una e causal desempenhada pela mesma, correspondendo ao normal uso de um cartão multibanco.

9) Não pode, portanto, a arguida ser condenada pela prática dos dois crimes constantes da acusação e da decisão recorrida, sob pena de violação flagrante e intolerável do princípio, com tutela constitucional (art. 29.º da Lei Fundamental), de que ninguém pode ser julgado ou sentenciado duas vezes pela prática do mesmo facto.

10) Inconstitucionalidade essa que desde já se argui para todos os efeitos legais.

11) No entender da Recorrente, a matéria apurada nos autos é apenas susceptível de ser integrada no crime de furto, previsto e punido no art. 203.º do Código Penal, subsumindo-se a conduta de digitação do código do cartão multibanco no conceito de apropriação.

12) Violou assim a decisão recorrida os normativos constantes dos arts. 203.º e 221.º/1 do Código Penal, bem como o art. 29.º da C.R.P., pois ao não considerar existir no caso uma relação de concurso aparente de crimes, puniu duas vezes a arguida pela mesma conduta.

13) Quanto à escolha e dosimetria da pena, atenta a factualidade dada como provada na decisão recorrida (veja-se n.ºs 12 a 17 da lista de factos provados da decisão recorrida), não entende a arguida como pôde o Tribunal a quo encontrar como medida de pena justa e adequada a pena única de multa no valor €.1080 (mil e oitenta euros), 14) No caso em apreço, considerando o facto de a arguida viver com parcos recursos económicos, de ter uma filha menor dependente dos seus cuidados, bem como o facto de a arguida ter sofrido, exactamente pelos mesmos factos por que foi julgada, sanção disciplinar de suspensão do exercício de funções durante um ano, seria aconselhável que à arguida fosse aplicada uma pena de prisão, suspensa na sua execução.

15) A ameaça de cumprimento da pena de prisão, consubstanciada na aplicação de uma pequena pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos dos art. 50.º e 56.ºdo C. Penal, acautelaria de forma suficiente e adequada as finalidades da punição.

16) Violou, assim, a decisão recorrida os comandos prescritos pelos arts. 70.º, 50.º e 56.º ao não ter aplicado à arguida uma pena de prisão suspensa na sua execução.

17) Na fixação da pena de multa deve atender-se a duas operações perfeitamente distintas e autonomizáveis: na primeira operação visa salvaguardar-se a igualdade formal pela actuação do princípio da culpa; pela segunda operação almeja dar-se cumprimento à igualdade substancial que é assegurada pela adequação do quantitativo diário à situação económico-financeira do condenado.

18) O Tribunal a quo, dando cumprimento às duas assinaladas operações, fixou, quanto à primeira a pena de 120 dias de multa por cada crime, na pena única conjunta de 180 dias de multa.

19) Ora, pelos factos já invocados: confissão, arrependimento, vontade de ressarcir a, sanção disciplinar pelos mesmos factos e atendendo ao facto de o quantitativo de dias de multa dever ser fixado entre 10 e 360 dias, afigura-se manifestamente excessiva a pena de 180 dias de multa que foi aplicada à arguida.

20) Quanto à segunda operação, relativa à fixação do quantitativo diário, a mesma não foi observada ou sequer ponderada pelo Tribunal a quo.

21) O M.mo Juiz a quo encontrou um critério que não tem paralelo com a ratio inerente à determinação da 2.ª operação, não demonstrando a mínima sensibilidade pelas reais condições sócio -económicas da arguida, encontrando uma pena única que contradiz e viola as finalidades da própria pena de multa.

22) Considerando o ordenado da arguida e sua única fonte de rendimento, no montante de €539,98 mensais, o facto de ter uma filha menor de 13 anos de idade a seu cargo, a pena de €.1080 é quase o dobro do seu ordenado, e só por isso potenciadora de efeitos criminogéneos.

23) É manifesto que a arguida não tem como despender o valor correspondente a 180 dias de multa à taxa de € 6 diários, valor esse que, à partida, teria de ser pago de uma só vez.

24) O art. 47º, nº2 do Código Penal ao prever como limite mínimo diário o quantitativo de € 1 e como máximo de € 498,80, quis precisamente que a pena de multa pudesse cumprir cabalmente as funções a que está adstrita, assim adaptando-se ao maior número possível de situações.

25) O M.mo. Juiz a quo preteriu manifestamente a igualdade substancial ao não tomar em linha de conta as reais condições pessoais e económico-financeiras da arguida.

26) Porquanto, a pena aplicada implica a colocação da arguida em condições de vida muito abaixo do limiar mínimo de subsistência, assim podendo gerar efeitos criminogéneos, o que manifestamente não é querido pela lei 27) Atendendo às sua condições, o quantitativo diário só poderá ser o montante mínimo legalmente previsto ou, quanto muito, um montante muito próximo desse limiar.

28) Ao não valorar correctamente quer os critérios gerais de determinação da pena tendentes à fixação do quantitativo de dias de multa - que estabeleceu em 180 - quer as condições económico financeiras da arguida, tendentes à determinação do quantitativo diário da multa - que fixou em € 6 - violou o tribunal a quo os arts. 47º, nºs 1 e 2 e 71º, ambos do Código Penal.

29) Requerendo-se, nestes termos, a V. Ex.ªs a procedência do presente recurso, determinando-se a alteração da decisão de direito em conformidade com o teor da presente motivação.» Admitido o recurso (fls.138), e efectuadas as necessárias notificações, apresentou resposta o MºPº (fls.141-149), na qual conclui (transcreve-se): «1. Dos factos provados em julgamento resulta que a arguida cometeu, em concurso real, um crime de furto e outro de burla informática, previstos e punidos, respectivamente pelos art.ºs 203º nº 1 e 221º do Código Penal, como lhe era imputado na acusação.

  1. Resulta da matéria de facto provada (essencialmente dos n.ºs 1, 3, 4, 7, 8 e 9) que a arguida actuou em diversos momentos, sendo sua intenção no primeiro momento a de se apoderar de algo que não lhe pertencia, contra a vontade do dono, ou seja do cartão da sua colega de trabalho. Posteriormente, já na posse do cartão, decidiu utilizá-lo quantas vezes pudesse para assim sacar quantias monetárias da conta correspondente.

  2. O tribunal quando fez o enquadramento jurídico-penal, unificou o comportamento repetido da arguida que consistiu em efectuar diversos levantamentos, considerando que cometeu um único crime de burla informática não obstante a violação plúrima da norma.

  3. A resolução criminosa única reporta-se tão só à utilização do cartão não abrangendo o momento anterior que consistiu na subtracção de um documento alheio, retirando-o do domínio de quem de direito.

  4. Quanto aos crimes de furto...

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