Acórdão nº 112/10.2JAPRT-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 07 de Julho de 2010

Magistrado ResponsávelMAIA COSTA
Data da Resolução07 de Julho de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: HABEAS CORPUS Decisão: INDEFERIDO Sumário : I - O habeas corpus não é o meio próprio de impugnar as decisões processuais ou de arguir nulidade e irregularidades, cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário (ou os recursos extraordinários, quando verificados os seus pressupostos). O habeas corpus não pode revogar ou modificar decisões proferidas no processo. Pode, sim, e exclusivamente, apreciar se existe, ou não, uma privação ilegal da liberdade e, em consequência, decidir, ou não, a libertação imediata do recluso.

II - A viabilidade do habeas corpus pressupõe uma privação da liberdade actual, não funcionando, pois, como mecanismo declarativo da ilegalidade de uma ultrapassada situação de privação da liberdade, nem como meio preventivo de uma eventual futura privação da liberdade.

III - Mas não só a privação da liberdade deve ser actual. Também a ilegalidade tem de revestir essa natureza. Ou seja, só é fundamento de habeas corpus a ilegalidade que existir ou perdurar ao tempo da apreciação do pedido. O que significa que qualquer ilegalidade verificada em fase anterior do processo, que já não persista quando o pedido é julgado, não pode servir como fundamento de habeas corpus.

IV - No caso em apreço, o Juiz de Instrução, após realização de interrogatório judicial, proferiu despacho no qual, em síntese, julgou ilegal a detenção do requerente, mas simultaneamente aplicou a prisão preventiva, por julgar verificados os respectivos pressupostos e não haver qualquer impedimento à aplicação dessa medida de coacção pelo facto de a precedente detenção ser ilegal. Não se questiona a ilegalidade da detenção do requerente. Não só os factos abonam essa tese, como o despacho judicial é expresso e inequívoco nesse sentido. Contudo, daí não decorre a ilegalidade da actual prisão preventiva.

V - Desde logo, o requerente não reagiu tempestivamente contra a detenção ilegal, conforme era seu direito, recorrendo ao habeas corpus previsto no art. 220.º do CPP (contra detenção ilegal), não podendo alegar falta de informação ou de meios, já que estava assistido pelo seu mandatário judicial. E nem sequer nos actos em que interveio nesse dia, nas instalações da PJ, o requerente invocou a ilegalidade da detenção. Se a detenção persistiu, isso ficou a dever-se, em alguma medida, à inércia do próprio requerente.

VI - Em qualquer caso, presentemente o requerente não se encontra já na situação de detenção, mas na de sujeição a prisão preventiva, medida de coacção que foi aplicada após a realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado nos termos prescritos pelo art. 141.º do CPP, e após prolação de despacho judicial que fundamentou exaustivamente a verificação dos pressupostos dessa medida.

VII - Quando foi apresentado a interrogatório judicial, a detenção do requerente encontrava-se já regularizada, uma vez que fora notificado do mandado de detenção no dia anterior. É certo que tal mandado não “cobre”, não “legaliza”, o período de detenção sofrido até esse momento. Mas, a partir de então, não se pode pôr em dúvida a legalidade da detenção. O requerente estava, pois, legalmente detido quando apresentado para primeiro interrogatório judicial.

VIII - Nem se pode duvidar da legalidade das diligências processuais em que o requerente participou na situação de detenção ilegal, pois ele estava assistido pelo seu mandatário, e, portanto, a ilegalidade da detenção em nada afectou os seus direitos de defesa, não agravou, nem sequer alterou, a sua posição relativamente à situação que se teria verificado caso a detenção fosse legal desde o início.

IX - O interrogatório judicial obedeceu a todos os formalismos legais, com efectiva garantia dos referidos direitos de defesa, não tendo também o requerente contestado, na ocasião, a legalidade do interrogatório, nem a sua condição de arguido (podendo fazê-lo, já que, insiste-se de novo, estava assistido pelo seu mandatário), tendo inclusivamente prestado declarações nessa qualidade (de arguido), não na de mero suspeito.

X - A medida de coacção de prisão preventiva foi, portanto, aplicada nos termos da lei, e é nessa situação, e não na de detenção, que o requerente se encontra. Não se verifica, pois, actualmente, nenhum fundamento para a concessão de habeas corpus.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. RELATÓRIO AA, com os sinais dos autos, preso preventivamente à ordem do 2º Juízo da comarca de Valongo, vem requerer a providência de habeas corpus, ao abrigo do art. 222º, nº 2, b) do Código de Processo Penal (CPP), nos seguintes termos: I- A presente providência fundamenta-se numa razão, a saber: A- Artigo 222º n.°s 1 e 2 b) do Código do Processo Penal II- Analisando, especificamente, este fundamento invocado: 1º A providência de Habeas Corpus é um modo de impugnação de detenções ou de prisões ilegais que funciona quando, por virtude do afastamento de qualquer autoridade da ordem jurídica, os meios legais deixam de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos; não substitui, porém, os meios ordinários da apreciação da legalidade, Este meio foi por nós perfilhado na Constituição de 1933, e depois, ao nível da lei ordinária, pelo Decreto-Lei n.° 35 043, de 20 de Outubro de 1945, em moldes que se aproximam dos que agora foram perfilhados. Do relatório do Dec-Lei n.° 35043 constam considerações que continuam a ser de muito interesse para compreensão da história, da estrutura e do alcance desta medida.

  1. Com a cessação da ofensa, fica realizado o fim da providência, no qual, portanto, se não inclui a reacção criminal contra o responsável pela ilegalidade cometida.

  2. Do relatório do Dec-Lei n.° 35043 constam as seguintes considerações: “Nenhum aspecto da organização jurídica revela tão claramente o grau de perfeição e estabilidade de estrutura e civilização de um país como as suas instituições penais. Da sua modelar relacionação e do seu equilibrado funcionamento dependem simultaneamente os dois pilares em que assenta a vida social: a autoridade e a liberdade. Nelas se reflecte a intrínseca unidade destes dois princípios (…)" 4º Ora, afirma-se comummente que o poder judicial constitui a mais sólida salvaguarda dos direitos individuais. A afirmação é exacta mas a sua aplicação encontra-se precisamente no facto de ser o poder judicial a garantia da segurança da própria Ordem Jurídica.

  3. A liberdade que se desgarra da Ordem é crime, a autoridade que se desprende da Ordem é arbítrio. O primeiro desvio, porque individual, pode ser combatido com eficácia pela força do Estado. O segundo, porque praticado por quem detém autoridade, só pela força do mesmo Estado, entregue a um órgão de jurisdição imparcial e independente, pode ser corrigido.

  4. É na solução deste problema que se insere a providência de Habeas Corpus, a qual, precisamente, consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.

  5. Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação quando, por virtude do afastamento da autoridade da ordem jurídica, o "jogo" normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.

  6. O Habeas Corpus não é um processo de reparação dos direitos individuais ofendidos, nem de repressão das infracções cometidas por quem exerce o poder público, pois que uma e outra são realizadas pelos meios civis e penais ordinários. É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. Com a cessação da ilegalidade de ofensa fica realizado o fim do próprio Habeas Corpus. De outro modo, tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso.

  7. No interrogatório judicial a que foi submetido, o arguido AA ficou a conhecer a invalidade da sua detenção e posterior prisão, como veremos. ASSIM, E conforme o referido pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, temos o seguinte: 10º Pese embora a detenção dos arguidos tenha sido validada pela Digna Magistrada do Ministério Público, conforme se alcança de fls. 967, entendemos ser competência do Juiz de Instrução Criminal a validação da detenção dos arguidos.

  8. Os arguidos foram detidos fora de flagrante delito, quando apenas e só tinham a qualidade de suspeitos, conforme se alcança dos mandados de busca domiciliária constantes dos autos.

  9. A expressão "detidos", advém do facto de se perceber que durante o período que mediou entre a execução dos mandados de busca e posterior condução dos arguidos às instalações da Polícia Judiciária para posterior interrogatório e sujeição a meios de prova, nomeadamente reconhecimentos, os arguidos encontravam-se factualmente na situação de verdadeira detenção porquanto não tinham liberdade de locomoção.

  10. No que concerne ao arguido AA foi algemado e todos os seus movimentos foram acompanhados pelos Senhores Inspectores da Polícia Judiciária.

  11. Concluiu, e bem, o Meritíssimo Juiz de Instrução que aquando da emissão dos competentes mandados de detenção, que só teve lugar pelas 20h30, conforme despacho de fls. 947 a 953, se encontravam factualmente na situação de detidos por privados da sua liberdade e do jus ambulandi.

  12. Note-se que o arguido, desde o período da manhã até às 22h45, esteve sempre factualmente na situação de verdadeira detenção, tendo inclusive sido sujeito a interrogatório e diligências da prova, nomeadamente a reconhecimentos pessoais, sendo que e em caso algum houve lugar à identificação do suspeito e pedido de informações, a que alude o art° 250° do Código de Processo Penal.

  13. Por outro lado, ainda que houvesse lugar à diligência referida, o seu prazo máximo de seis horas terá sido ultrapassado, de acordo com o n.° 6 do referido dispositivo legal.

  14. Por se tratar de situação de fora de flagrante delito, a detenção por autoridade de polícia criminal terá que obedecer aos requisitos...

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