Acórdão nº 1876/07.6PEAVR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 14 de Abril de 2010

Magistrado ResponsávelEDUARDO MARTINS
Data da Resolução14 de Abril de 2010
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: I. Relatório: No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 1876/07.6PEAVR que corre termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Aveiro, foi imputada à arguida M… a prática de um crime de peculato, p. e p. pelos artigos 375.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Penal.

Durante a audiência de julgamento, no dia 12/2/2009, conforme acta de fls. 496/500, o Meritíssimo Juiz proferiu o seguinte despacho: “Sem prejuízo de uma mais apurada análise do tipo legal de crime imputado à arguida e sem tomar qualquer posição quanto à prova até este momento produzida, à cautela, o Tribunal chama a atenção dos sujeitos processuais de que, porventura, os factos da acusação poderão, eventualmente, integrar um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, al. e), do Código Penal, em vez do crime que lhe é imputado na acusação.

Por tal razão. E sem prejuízo de uma melhor análise do tipo legal de crime imputado à arguida na acusação, nesta altura, se dá cumprimento ao que dispõe o artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, face a uma eventual alteração da qualificação jurídica para o crime de furto atrás referido.

” Na sequência, a ilustre defensora oficiosa da arguida disse necessitar de um prazo de cinco dias para reorganizar a defesa, o que lhe foi concedido, sendo certo que, nesse período, nenhuma prova suplementar apresentou (ver acta de fls. 501 e 502).

Realizado o julgamento, por sentença de 25 de Fevereiro de 2009, foi decidido absolver a arguida do crime de peculato que lhe era imputado e condená-la, como autora de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de sete euros, num total de € 980,00 (novecentos e oitenta euros euros), a que correspondem, subsidiariamente, noventa e três dias de prisão.

**** Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 27/3/2009, o Ministério Público, conforme fls. 520/535, defendendo a revogação da sentença recorrida, e substituição por outra que condene a arguida pela prática do crime de peculato, p. e p. no artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, ou, subsidiariamente, pelo crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al. f), do mesmo código, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões: 1. O Mmo. Juiz a quo deu como provado que ao compartimento onde se guardavam os objectos dos internandos “só tinham acesso as testemunhas C... , G... e E... ” – ponto 4 dos factos provados.

  1. E deu, também, como provado que “a arguida, pelo facto da respectiva porta se encontrar aberta, logrou ter acesso ao interior da referida casa-forte e daí retirou aquele aparelho de telemóvel que fez seu” – ponto 5 dos factos provados.

  2. Ora, estes dois factos são contraditórios, já que, se apenas determinadas pessoas tinham acesso àquele compartimento, a respectiva porta teria que estar permanentemente fechada, de forma a não poder o interior do mesmo ser “acessível” a nenhum outro funcionário do Centro Educativo. Se a porta poderia estar aberta, qualquer funcionário do Centro – incluindo a arguida – poderia ali entrar.

  3. A arguida, como funcionária do Centro Educativo que colaborava com as técnicas de Reinserção Social a quem cabia a guarda dos objectos dos internandos, designadamente partilhando com elas o local de trabalho, podia aceder ao local onde estavam guardados os objectos dos internandos.

  4. O ponto 4 dos factos provados, embora constasse do libelo acusatório, não corresponde, na sua totalidade, ao resultado da prova produzida em audiência de julgamento.

  5. Decorre, dos depoimentos prestados em audiência de julgamento pela arguida e pelas testemunhas V…, C…, G… e E…, que à sala onde eram guardados os objectos dos internandos poderia aceder a primeira.

  6. Desde logo, poderia fazê-lo quando as técnicas de reinserção social necessitavam de aí guardar objectos ou de os retirar, pois deixavam a porta aberta enquanto voltavam aos seus gabinetes para falar com os internandos.

  7. Nesses períodos, a sala ficava acessível às demais técnicas de reinserção social, à coordenadora e à arguida que, com elas, partilhava o local de trabalho.

  8. Também poderia a referida porta ficar, por um qualquer motivo, aberta, como, aliás, referiu a arguida e foi dado como provado, sendo que, no próprio dia em que se deu por falta do telemóvel, a arguida esteve, com a coordenadora, dentro do compartimento a procurar tal objecto.

  9. Vejam-se as passagens 05m.05s. – 05m.29s., do depoimento da testemunha A... , 06m.37. – 07m.29s., 07m.49s. – 08m.19s., 08m. 22s. – 08m. – 38s., 09m.05s. – 09m.09s., 09m.25s., e 14m.20s. – 14m.34s., do depoimento de C... , 03m.13s. - 03m.36s., e 03m.51s. – 04m.16s., do depoimento de G... e 02m.01s. – 03m.21s., do prestado por E... .

  10. Decorre, pois, da prova produzida em audiência de julgamento que, não obstante apenas três pessoas, entre as quais não se contava a arguida, tivessem a chave do espaço onde eram guardados os objectos dos internandos, tal espaço era, para todos os efeitos, acessível a todos os funcionários que desempenhavam as suas funções naquela ala do Centro Educativo, entre os quais a arguida.

  11. Ao apropriar-se do telemóvel, quer o tenha feito, como o referiu e foi dado como provado, numa manhã em que a porta do “cofre” estava entreaberta, que tal tenha ocorrido num dos – muitos – momentos em que a porta estava aberta enquanto eram retirados/colocados objectos no respectivo interior pelas três técnicas (ou, mais concretamente, enquanto estas estavam nos seus gabinetes a tratar de tais assuntos), a arguida subtraiu um objecto que lhe era acessível em razão das suas funções.

  12. Não actuou perante o telemóvel como um qualquer terceiro.

  13. Ela só pôde praticar os factos pelos quais foi condenada – e que assumiu – porque era funcionária administrativa do Centro Educativo.

  14. Se fosse uma qualquer outra pessoa, nunca teria acesso ao referido objecto, desde logo porque tudo se passou num Centro Educativo, ao qual ninguém acede, sem a devida autorização.

  15. A arguida pôde subtrair o telemóvel, que havia sido guardado em espaço próprio do Centro, pela técnica que acompanhava o internando, seu dono, apenas e tão-só porque, como funcionária do Centro Educativo que trabalhava com as técnicas responsáveis pelos jovens, dando-lhes o necessário apoio administrativo, tinha, normalmente, acesso a tal objecto.

  16. Não obstante não lhe coubesse a função de guarda dos objectos dos internandos, tinha naturalmente contacto com tal actividade, no mínimo porque partilhava do espaço onde tal guarda era efectivada, tendo acesso ao mesmo quando, normalmente, era utilizado.

  17. Assim, o Tribunal teria de dar como provado que, na sala onde eram guardados os objectos dos internandos, podiam entrar, para além das técnicas de reinserção social, os demais funcionários daquela área do Centro, concretamente a coordenadora e a arguida.

  18. A prova destes factos decorre das declarações prestadas pela arguida e pelas testemunhas A... , C... , G... e E... , nos segmentos citados supra, no ponto 10 das Conclusões.

  19. Ao analisar os factos que constituem o objecto dos presentes autos, não se afigura possível considerar que a arguida, funcionária de um Centro Educativo, onde estão internados jovens que praticaram factos típicos ilícitos, previstos como crime, a fim de os educar para o direito, ao subtrair um objecto pertencente a um dos internandos e à guarda do Centro, tenha, apenas, atentado contra o património.

  20. É quase intuitiva a maior censura que deve ser feita ao comportamento da arguida, censura esta que se funda na maior relevância/amplitude dos bens jurídicos que violou.

  21. À arguida só foi possível a apropriação precisamente porque é funcionária daquele Centro e porque, por força das suas funções, acedeu ao local onde o objecto estava guardado.

  22. Há, aqui, um acréscimo de ilicitude, de dolo e de culpa, que não se compadece, apenas, com o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de furto – a ilegítima subtracção de coisa móvel alheia com intenção de apropriação.

  23. É que a coisa móvel alheia estava à guarda do Estado, num Centro Educativo.

  24. E a arguida era funcionária desse Centro educativo e só por este motivo tinha a cesso ao objecto em causa.

  25. Estão, pois, também preenchidos os elementos típicos do crime de peculato: a ilegítima subtracção de coisa móvel alheia com intenção de apropriação por parte de um funcionário relativamente ao qual tal coisa era acessível em razão das suas funções.

  26. A sentença ora em crise violou o disposto no artigo 375.º, do Código Penal.

  27. Deve, pois, a arguida, M... , ser condenada pela prática, em autoria material, do crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, em pena de prisão, próxima do mínimo legal, suspensa na sua execução.

  28. Caso assim não se entenda, isto é, caso se considere que à arguida era vedado o acesso ao local onde eram guardados os objectos dos internandos, ter-se-á que concluir, então, a arguida só teve acesso ao telemóvel porque se introduziu ilegitimamente em espaço vedado, pelo que o furto é qualificado.

  29. A arguida transpôs as portas de um Centro Educativo, passando pelo respectivo segurança e sendo devidamente identificada, dentro do Centro acedeu a uma zona restrita, a área técnica e, uma vez neste local, ainda transpôs uma porta para aceder a uma caixa onde estava guardado o telemóvel.

  30. Sempre se verificariam, assim, os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al. f), do Código Penal.

  31. Em tal caso, deveria a arguida ser condenada em pena de multa aproximada do ponto médio da moldura penal respectiva e no quantitativo fixado na sentença ora em crise.

  32. Sempre sem prescindir, teria a sentença ora em crise violado, em tal caso, o disposto no artigo 204.º, n.º 1, al. f), do Código Penal.

    **** A arguida não apresentou...

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