Acórdão nº 09B0523 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 31 de Março de 2009

Magistrado ResponsávelJOÃO BERNARDO
Data da Resolução31 de Março de 2009
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I - No Tribunal de Vila Nova de Famalicão, AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra: BB.

Alegou, em síntese, que: Alguns anos depois da morte de sua avó, PB, a sua mãe, AB, entregou ao réu, a seu pedido, e por empréstimo fundado numa relação de amizade, as condecorações recebidas por aquela como actriz de teatro; Tais condecorações fazem parte da herança daquela sua avó, relativamente à qual, ela, autora, desempenha as funções de cabeça-de-casal.

Pediu, em consequência, a condenação dele a restituir-lhe as referidas condecorações e, bem assim, a pagar-lhe 5.000$00 por cada dia em que se recuse a efectuar a dita entrega a título de sanção pecuniária compulsória.

Contestou o réu, alegando que as ditas condecorações lhe foram doadas pela falecida AB, estando na posse das mesmas há já mais de 30 anos, sendo, como tal, seu possuidor e dono, motivo pelo qual deverá improceder o pedido da autora.

II - A acção prosseguiu a sua tramitação e, na altura própria, foi proferida sentença em que absolveu o réu do pedido.

Em resumo, entendeu-se que teve lugar um contrato de doação das condecorações, assistindo ao réu, como donatário, a propriedade delas.

III - Apelou a autora e com êxito porquanto o Tribunal da Relação do Porto julgou a acção procedente, condenando o réu nos pedidos.

Alterou a matéria de facto - em termos que infra se vão referir - e, corolariamente, entendeu que não teve lugar o dito contrato de doação e que não teve o réu posse que conduzisse à usucapião.

IV - Pede revista agora este.

Conclui as alegações do seguinte modo: 1 - Analisada a causa de pedir em contraposição com o pedido, o facto da herança se achar indivisa associado ao facto de os bens a restituir pertencerem à herança, nunca poderia ser pedido como foi a restituição das condecorações e a sua entrega à autora (a titulo individual) e a aplicação ao réu de sanção pecuniária compulsória a favor da autora.

2 - A autora não podia pedir a restituição das condecorações para si própria, como pediu, tinha de formular pedido para restituição das condecorações para a herança.

3 - A herança não se confunde com a autora, não obstante esta ter alegado que desempenhava cargo de cabeça de casal, que não veio a ser demonstrado.

4 - Há contradição relevante entre pontos de facto decisivos, o que se invoca nos termos e para os efeitos do art. 729, n.º 3, do Código de Processo Civil.

5 - Na resposta ao quesito primeiro refere-se que as condecorações foram entregues pela mãe da Autora à mãe do Réu e no quesito 36 refere-se que as condecorações foram entregues ao réu.

6 - A ser considerado a matéria de facto do quesito primeiro o réu nunca interveio directamente no alegado contrato de depósito e este nem sequer lhe é oponível. Aliás, 7 - A versão trazida aos autos cai pela base pois que 8 - A autora alega ter entregue as condecorações ao réu.

9 - O Tribunal recorrido fez um uso indevido de normas adjectivas (mormente do art. 712 CPC) o que constituiu matéria de direito e assim pode ser conhecida por este tribunal.

10 - Analisadas as conclusões da apelação, nunca o tribunal recorrido poderia ter revalorado toda a prova produzida, como valorou.

11 - O recurso deveria ser rejeitado quanto à matéria de facto ou, a apelante convidada a corrigir a sua apelação, tal matéria ser sujeita a contraditório antes da pronúncia do tribunal.

12 - Por último, a resposta à matéria de facto quesitada de n.º 14 a 20 da base instrutória, permite-nos concluir que houve inversão do titulo possessório, porquanto 13 - O recorrente aquando da criação do Museu do Teatro, recebeu correspondência da recorrida a solicitar a devolução das condecorações tendo, de imediato negado tal devolução, arrogando-se de dono das mesmas.

14 - Tal comunicação do recorrente nunca foi repelida pela mãe da autora que não usou de qualquer meio de defesa e 15 - Desde essa data até ao arrolamento decorreram mais de 19 anos tendo o recorrente exercido tal posse publica, ininterruptamente, pelo que 16 - Os actos de posse comprovados nos autos preenchem os requisitos que levam à aquisição por usucapião.

17 - No acórdão recorrido, entre outras, foram desrespeitados os comandos ínsitos ao disposto nos art. 3°, 690-A, 712.º CPC e art. 1185.º, 1187.º, 1205.º, 1263.º, al. d) e 1265.º CC.

Termos em que deve revogar-se o acórdão recorrido, substituindo-o por um outro que julgue procedente por provado o presente recurso e, por via disso, ser julgada improcedente por não provada a presente acção, com a consequente absolvição do aqui recorrente.

Não houve contra-alegações.

V - 1 Na sequência que impõe o artigo 659.º do Código de Processo Civil, aplicável, "mutatis mutandis" aos acórdãos proferidos em recurso, há agora que fixar as questões que cumpre solucionar.

Estas são delimitadas pelas conclusões das alegações e, ante estas, chamamos para a primeira linha a questão referida nos pontos 9.º a 11.º pelas discussões que levanta sobre os limites de conhecimento deste Supremo Tribunal.

Por regra, plasmada no artigo 26.º da LOFTJ (n.º3/99, de 13.1, ainda aqui aplicável), só conhece de direito. Concretamente, no que respeita ao recurso de revista, está balizado pelo que resulta dos artigos 721.º, n.ºs 2 e 3, 722.º, n.ºs 1 e 2 e 729.º, todos do Código de Processo Civil.

Esta regra projecta os seus efeitos no regime do artigo 712.º, mormente no seu n.º6. Perante ele, já se entendeu que a decisão factual tomada pela Relação era, nas suas várias vertentes, insindicável por este Tribunal. Não haveria, a respeito dela, sequer, recurso e, se o houvesse, por outras razões, não poderia ele alcançar tal questão.

Não cremos, no entanto, que seja de acolher esta posição radical.

Nos termos do artigo 722.º, n.º1, no recurso de revista, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admissível o recurso nos termos do n.º2 do artigo 754.º. No que respeita aos fundamentos acessórios exige-se, pois, a admissibilidade de recurso nos termos do artigo 754.º, n.º2.

Só que, este 754.º, n.º2 reporta-se unicamente aos agravos continuados, tendo, em nossa opinião, o legislador deixado aqui uma lacuna relativa aos casos em que o recorrente de revista pretenda alegar a violação da lei processual cometida, em primeira mão, pela Relação.

No preenchimento desta lacuna, e no que agora nos importa de invocação de violação da lei do processo quanto à aquisição factual, há que atender - até considerando o disposto no n.º3 do artigo 8.º do Código Civil - à jurisprudência, particularmente numerosa, que vem sendo proferida por este tribunal, no sentido de que continua a poder ser conhecida por este tribunal a vertente jurídica da aquisição da prova. Assim, os Ac.s de 31-01-2006 - Revista n.º 4044/05,1.ª Secção, 21-02-2006 - Revista n.º 4362/05 - 1.ª Secção, 21-03-2006 - Revista n.º 324/06 - 1.ª Secção, 18-05-2006 - Revista n.º 1009/06 - 1.ª Secção, 12-09-2006 - Revista n.º 1986/06 - 1.ª Secção, 08-05-2007 - Revista n.º 759/07 - 1.ª Secção, 26-06-2007 - Revista n.º 1735/07 - 1.ª Secção, 05-07-2007 - Revista n.º 1990/07 - 1.ª Secção, 05-07-2007 - Revista n.º 2199/07 - 2.ª Secção, 20-09-2007 - Revista n.º 2411/07 - 2.ª Secção, 25-09-2007 - Revista n.º 90/07 - 1.ª Secção, 27-09-2007 - Revista n.º 1982/07 - 2.ª Secção, 04-10-2007 - Revista n.º 2723/07 - 2.ª Secção, 08-11-2007 - Revista n.º 2626/07 - 7.ª Secção, 03-05-2005 - Revista n.º 268/05 - 1.ª Secção, 14-09-2006 - Revista n.º 2384/06 - 2.ª Secção e 11-09-2007 - Revista n.º 1812/07 - 6.ª Secção.

Temos, pois, o caminho livre para conhecer da questão constante das aludidas conclusões 9.ª a 11.ª V - 2 Para além da acabada de analisar, e, se não houver prejudicialidade, deparam-se as questões consistentes em saber se: A autora não podia pedir a restituição das condecorações para si própria, mas tão-só para a herança; Para isso, havia de ter demonstrado que era cabeça-de-casal e não demonstrou; Há contradição relevante entre a matéria de facto quanto à pessoa a quem foram entregues as condecorações; Deve entender-se que teve lugar inversão do título possessório e, consequentemente, aquisição por usucapião a favor do réu.

VI - 1 Na 1.ª instância, foi considerada provada a seguinte matéria de facto: 1. No dia 10/05/1967 faleceu, no estado de viúva, Maria ....PB, também conhecida por PB, uma das maiores actrizes do teatro nacional.

  1. PB foi a única a receber as seguintes condecorações: Ordem de Santiago e Espada, Ordem de Cristo, Medalha de Prata da Cidade de Lisboa, Ordem do Cruzeiro do Sul e Ordem de Cidadã Carioca.

  2. PB casou com CC e teve duas filhas, AB e ASB, esta falecida em 10/11/53, no estado de solteira.

  3. PB, o réu, e sua mãe partilharam em vida da artista de alguma amizade.

  4. AB casou com JC em 08/12/26, sendo que desse casamento nasceram quatro filhos, SC, AC, AQ e a autora AA.

  5. JC faleceu em 13/01/74, AC faleceu em 27/12/98, SC faleceu em 27/12/69, e AC faleceu em 15/12/95.

  6. As condecorações referidas em 2 estavam em casa do réu.

  7. Em 19/06/99, a autora enviou uma carta ao réu, junta a fls. 21 a 23 dos autos arrolamento apensos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

  8. Em 27/06/99, o réu respondeu à autora, enviando-lhe uma carta, junta a fls. 106 e segs. do apenso de certidão vindo da Relação, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

  9. Em inícios do ano de 1974, aquela AB, mãe da autora, declarou querer dar ao réu e a sua mulher, entretanto falecida, as condecorações em causa na presente acção, para isso entregou-as ao réu, que, por sua vez aceitou tão generosa oferta da mãe da autora, recebendo-as, umas directamente, outras por intermédio de sua mãe, que residia em Lisboa.

  10. Tais declarações de vontade da mãe da autora, AB, que o réu tratava carinhosamente por "LL": foram acompanhadas da entrega das condecorações ao réu.

  11. Por si e por seus antepossuidores, há mais de 30 anos, que...

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