Acórdão nº 08P3775 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Fevereiro de 2009
Magistrado Responsável | ARMÉNIO SOTTOMAYOR |
Data da Resolução | 18 de Fevereiro de 2009 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1.
AA foi submetido a julgamento em tribunal colectivo, no âmbito do processo n.º 426/07.9GCLRA do 1º Juízo Criminal de Leiria, tendo sido condenado, por acórdão de 29/04/2008, na pena de 12 anos de prisão, pela prática dum crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 alíneas h) e i), do Código Penal, beneficiando o arguido de atenuação especial da pena.
Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra e aí, por acórdão de 17/09/2008, foi concedido provimento parcial ao recurso, tendo sido decidido:
-
Quanto à matéria de facto: 1) Alterar o 39) dos factos provados para o seguinte - «Ao agir da forma descrita nas alíneas 1) a 27) o arguido sabia que o que estava a fazer era um acto proibido e punível por lei. Fê-lo ainda voluntariamente pois tinha capacidade de optar por não actuar dessa forma, embora a sua capacidade de auto-determinação se encontrasse fortemente condicionada face ao Síndrome de Asperger de que era portador».
2) E aditar uma outra alínea com o n.º 39-A) aos factos provados, com a seguinte redacção - «Este condicionamento da sua capacidade volitiva fazia com que a sua imputabilidade ficasse sensivelmente diminuída».
-
Quanto à medida da pena: fixar em nove anos de prisão a pena em que o arguido fica condenado (mantendo-se a mesma qualificação jurídica e atenuando-se extraordinariamente a pena).
Desse acórdão da Relação recorre o arguido, ainda inconformado, para o Supremo Tribunal de Justiça e, da sua fundamentação, concluiu o seguinte: 1. O dissídio do recorrente manifesta-se, tão só, no que tange à subsunção jurídica preconizada no acórdão em recurso.
-
Desde logo o Tribunal ignora as repercussões oriundas da consideração do homicídio qualificado como um tipo de culpa construído através técnica legislativa dos "exemplos-padrão".
-
Com efeito, atenta a elaboração típica referenciada, as condições enumeradas no art. 132°/2 do CP não funcionam automaticamente, antes assumindo um papel de índices semióticos da existência de uma especial perversidade ou censurabilidade do agente.
-
O mesmo é dizer que só uma imagem global do facto agravada (para usar a terminologia de FIG. DIAS) que traduza um mais acentuado desvalor de atitude se pode subsumir ao tipo em causa.
-
Ora uma personalidade como a da recorrente é incompatível com esse juízo de culpa agravado; trata-se de uma pessoa mergulhada num estado depressivo, potenciado pela caracteriologia imanente à sua específica personalidade, como tal com a sua liberdade de agir claramente limitada.
-
Neste conspecto é evidente a violação do artigo 132/1 do CP, na medita em que se não levou em conta a verdadeira essência desta figura típica.
-
Violadas se mostram ainda as als. h) e i) do n.º 2 do mencionado artigo 132.º do CP.
-
Na realidade, os autos não traduzem a existência de um "meio particularmente "perigoso"/"insidioso" ou "frieza de ânimo".
-
Relativamente a esta última dir-se-á que o condicionalismo endógeno referido na conclusão 5ª, é incompatível com tal estado de espírito.
-
Já no que tange à existência de "meio insidioso" não se tem por adequado que o efeito surpresa possa alcandorar-se, só por si, a revelar o carácter sub-reptício exigido pela expressão normativa em causa.
Sem prescindir, 11. Finalmente - independentemente do destino das anteriores conclusões - quer o recorrente dar nota do seu dissídio relativamente à pena que lhe foi aplicada.
-
Efectivamente a medida concreta da pena aplicada surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.
-
Designadamente mostram-se violados os art.ºs 71°/1 e 40/2, ambos do CP.
-
Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena elegendo, a esse propósito, uma teleologia essencialmente preventiva, todavia temperada pela ideia da culpa.
-
Nomeadamente o n.º 2 do citado artigo 40° estabelece que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa o que é a repristinação do velho brocardo nulla poena sine culpa.
-
Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta que a liberdade da agente de agir de acordo com o direito se encontrava diminuída pela patologia que o afligia - Síndroma de Asperger.
-
Razão pela qual a pena aplicada surge como draconiana e em distonia com os preceitos invocados, 18. Impondo a predita normatividade que a pena se fixe num patamar sensivelmente menor.
-
Até porque a moldura penal aplicável oscilava entre um mínimo de dois anos, quatro meses e vinte e quatro dias e um máximo de dezasseis anos e oito meses de prisão, 20. sendo certo que o arguido/recorrente confessou os factos, manifestou pungente arrependimento e não tem qualquer espécie de antecedentes criminais.
-
Condicionalismo que sopesado por um prisma que atenda á prevenção especial - iluminada por uma ideia propedêutica de ressocialização - corroboram a necessidade de fixar a pena num valor numérico inferior.
-
Consigna-se, nos termos do artigo 411°, 5 do CP Penal, que o recorrente pretende a realização de audiência para discutir as questões conexas à qualificação do homicídio e da determinação da pena.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das "conclusões" tecidas.
O Ministério Público na Relação de Coimbra respondeu, pronunciando-se no sentido da manutenção do julgado.
No visto inicial, o Ministério Público neste Supremo Tribunal promoveu a realização da audiência, a qual fora requerida pelo recorrente.
Foram colhidos os vistos e realizada a audiência com o formalismo legal, tendo o relator, na introdução, suscitado, para além das questões da qualificação jurídica e da medida da pena, a da possibilidade de o arguido, dada a sua anomalia psíquica, ser internado em estabelecimento destinado a inimputáveis.
Pelo defensor do arguido foi desenvolvida a argumentação que, partindo da tese de que o art. 132º do Código Penal é uma forma agravada do homicídio simples previsto no art. 131º por verificação de um tipo de culpa agravado, considera que não deve o arguido ser condenado pelo referido crime, em virtude de a sua culpa se encontrar diminuída devido à doença de que padece, devendo mesmo a pena ser especialmente atenuada perante a moldura do crime de homicídio do art. 131º do Código Penal. Relativamente à possibilidade de o arguido cumprir a pena em estabelecimento destinado a inimputáveis, considera que tal deve depender do resultado da observação clínica que vier a ser feita ao arguido e da conclusão sobre se o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial.
O Ministério Público, por seu turno, sustentou que devem ser mantidas a qualificação jurídica dos factos, bem como a pena aplicada na decisão recorrida, com a consequente improcedência do recurso. Relativamente ao local do cumprimento da pena, manifestou a sua concordância com o internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, referindo que, desse modo, são observadas os aconselhamentos constantes dos relatórios médicos juntos aos autos, que sugerem que o arguido seja sujeito a adequado tratamento para que a doença não degenere em esquizofrenia e para que não pratique actos semelhantes.
Cumpre decidir.
-
Os factos considerados provados pelas instâncias são os seguintes: 1) Em data não apurada, o arguido tomou a decisão de esfaquear o seu irmão BB, nascido a 29 de Julho de 1995, e por essa forma tirar-lhe a vida.
2) Além disso, pensou em levar à prática esse propósito em circunstâncias tais que posteriormente não fosse possível identificar o autor da prática de tal facto.
3) Com vista a alcançar tal desiderato, o arguido urdiu um plano segundo o qual iria atrair o seu irmão para um local ermo, a cerca de dois quilómetros da casa de habitação onde residia, alegando que havia encontrado uma ninhada de cães recém-nascidos e aí, com uma faca de cozinha, levaria à prática o seu projectado intento de lhe tirar a vida.
4) O arguido projectou ainda desfazer-se da faca utilizada no cometimento daquele acto logo após o ter realizado, e telefonar para os seus pais e para a emergência médica pedindo auxílio para o seu irmão, fazendo crer que este havia sido vítima de um ataque perpetrado por desconhecidos.
5) No dia 25 de Julho de 2007, por volta das 17.05 horas, o arguido encontrava-se na casa de habitação sita na Rua da ..., n.º ..., Vale da ...., Caranguejeira, Leiria, juntamente com o seu irmão BB.
6) Por volta das 17.15 horas, em execução do que havia planeado, o arguido disse ao BB que havia descoberto no pinhal sito nas proximidades da casa onde se encontravam uma ninhada de cães recém-nascidos, e convidou-o a ir lá para lhos mostrar, convite que o BB aceitou, tendo ficado combinado entre ambos que o arguido iria a pé e, quando chegasse aos pretensos cachorros, enviaria uma mensagem escrita por telemóvel para o BB, que então se deslocaria para o local de bicicleta.
7) Entretanto, antes de sair de casa, o arguido muniu-se com uma faca de cozinha (apreendida nos autos) com 23,5 centímetros de comprimento, sendo 12 centímetros de lâmina, a qual estava na cozinha daquela habitação, e que colocou à cintura, entre as calções e as cuecas, tendo-se ainda munido de um par de luvas que colocou nos bolsos dos calções que na ocasião trajava.
8) De seguida, o arguido tomou o caminho do pinhal que confina com a Rua ..., situado a cerca de 1.000 metros da sua residência.
9) Chegado à aludida rua, antes de entrar no pinhal, o arguido enviou uma mensagem escrita pelo telemóvel ao BB, dizendo-lhe para que fosse andando para o pinhal.
10) O BB recebeu a aludida mensagem e colocou-se ao caminho, fazendo-se transportar na sua bicicleta.
11) Entretanto, o arguido, após ter percorrido diversos caminhos no interior do aludido pinhal, chegou às imediações de uma linha de água situada num local conhecido por Vale da Janeca.
12) Aí, o arguido recebeu uma chamada no seu telemóvel realizada pelo BB, o qual pretendia...
-
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO-
Acórdão nº 205/14.7PLLRS.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 18 de Junho de 2015
...o tipo de culpa qualificador. ”. Ver ainda: Acórdão do STJ de 18/02/2009, relatado por Arménio Sottomayor, in www.gde.mj.pt, processo 08P3775, de cujo sumário citamos: “I - Os exemplos-padrão do art. 132.º, n.º 2, do CP prendem-se essencialmente com a questão da culpa, pois mesmo quando se ......
-
Acórdão nº 382/14.7JALRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 15 de Maio de 2019
...da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio. - Ac. STJ, de 18-2-2009, no proc. n.º 08P3775, e Ac. RC, de 12-11-2014, no proc. n.º 412/09.4PATNV.C1 in Por conseguinte, deve o acórdão recorrido ser corrigido quanto à qualificação jurídica do c......
-
Acórdão nº 205/14.7PLLRS.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 18 de Junho de 2015
...o tipo de culpa qualificador. ”. Ver ainda: Acórdão do STJ de 18/02/2009, relatado por Arménio Sottomayor, in www.gde.mj.pt, processo 08P3775, de cujo sumário citamos: “I - Os exemplos-padrão do art. 132.º, n.º 2, do CP prendem-se essencialmente com a questão da culpa, pois mesmo quando se ......
-
Acórdão nº 382/14.7JALRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 15 de Maio de 2019
...da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio. - Ac. STJ, de 18-2-2009, no proc. n.º 08P3775, e Ac. RC, de 12-11-2014, no proc. n.º 412/09.4PATNV.C1 in Por conseguinte, deve o acórdão recorrido ser corrigido quanto à qualificação jurídica do c......