Acórdão nº 75/13 de Tribunal Constitucional (Port, 31 de Janeiro de 2013

Magistrado ResponsávelCons. Ana Guerra Martins
Data da Resolução31 de Janeiro de 2013
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 75/2013

Processo n.º 550/11

  1. Secção

Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

  1. Nos presentes autos em que é recorrente A., Lda e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, de acórdão proferido pela Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, em 03 de maio de 2011 (fls. 471 a 512) para fosse apreciada a constitucionalidade de várias interpretações normativas.

    Por não ser legalmente admissível conhecer de algumas dessas questões, foi proferida a Decisão Sumária n.º 492/11. Por força do trânsito em julgado dessa decisão, o objeto do presente recurso circunscreve-se, assim, à inconstitucionalidade:

    i) “Do art. 20º nº 4 e 5º do DL nº 64/2008 de 08 de abril, por violação do direito à livre iniciativa privada, tal como prevista no art. 61º nº 1 da CRP”;

    ii) “Do art. 20º nº 5 do DL nº 64/2008 de 08 de abril, por violação do direito ao Ambiente, tal como previsto no art. 66º nº 1 da CRP” (fls. 516).

  2. Notificada para tal pela Relatora, a recorrente produziu alegações, das quais constam as seguintes conclusões:

    “1. O Estado, tendencialmente, não pode limitar a liberdade de organização e gestão das unidades produtivas, dos entes coletivos privados.

  3. O Estado condiciona a organização e gestão da atividade de operador de gestão de resíduos, uma vez que obriga à despoluição do VFV no prazo máximo de, imagine-se, 8 dias; e obriga à remoção de componentes reutilizáveis no período máximo de 45 dias - ultrapassado este prazo, todos os componentes recicláveis e valoráveis têm de seguir para fragmentação.

  4. A haver limitações ao direito à livre iniciativa privada, estas sempre devem estar sujeitas (1) à reserva de lei formal; (2) à existência e salvaguarda de outro princípio, direito ou interesse igualmente defensável; e (3) ao princípio da proporcionalidade.

  5. Quanto à reserva de lei formal, verifica-se desde já que de acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n. 64/2008, a aprovação deste diploma legal ocorreu nos termos do artº 198º., nº 1 da CRP, ou seja, não estamos perante uma Lei, como é evidente, nem tão-pouco perante um Decreto-Lei autorizado. Há por isso inconstitucionalidade formal.

  6. Estes prazos não beliscam ou salvaguardam o direito ao ambiente, pelo contrário.

  7. Em relação ao prazo de 8 dias, verifica-se que inexistindo esse prazo ou, na pior das hipóteses, existindo um prazo substancialmente alargado, os fluidos do VFV seriam igualmente removidos, sem com isso obrigar o operador de resíduos a laborar de forma intensiva, retirando muitas das vezes trabalhadores das áreas de remoção de componentes reutilizáveis para a despoluição dos referidos VFV.

  8. Já quanto ao prazo de 45 dias, arrisca-se a Recorrente a referir que própria estipulação de um prazo consubstancia efetivamente uma violação do direito ao ambiente - não há pois qualquer concordância prática, na medida em que face ao período de 45 dias legalmente previsto, grande parte dos componentes que podiam ser reutilizados e valorizados nunca serão sequer removidos dos VFV, seguindo com estes para a fragmentação, prejudicando dessa forma uma maior geração de receitas (direito à iniciativa privada) e o principio da reutilização (direito ao ambiente).

  9. Em relação ao terceiro requisito (princípio da proporcionalidade), parece à Recorrente que o seu sub-princípio da adequação está desrespeitado. Parece desrazoável, prejudicando por isso a efetivação do sub-princípio da adequação, que o legislador imponha prazos, ainda para mais de tal forma curtos, que limitam em excesso o direito à livre iniciativa privada, sem com isso beneficiar (pelo contrário) o direito ao ambiente.

  10. Desta forma, entende a Recorrente que o prazo de 8 dias previsto no art.º 20º., nº 4 do DecretoLei n. 64/2008, assim como o prazo de 45 dias previsto no art.º 20º, nº 5 do mesmo diploma legal, por serem desproporcionalmente limitativos, são inconstitucionais por violação do direito à livre iniciativa privada.

  11. A Constituição normativizou o ambiente em duas dimensões distintas: uma primeira, a que podemos chamar de vertente patológica, relativa ao direito de promover a cessação ou perseguição judicial das infrações ambientais e ao direito do lesado exigir a respetiva indemnização; e uma segunda dimensão, com uma vertente não-patológica, em que se está perante um direito social constitucionalizado, exigindo-se que haja não só uma limitação ecológica à liberdade individual, mas também que exista uma evidente e necessária concordância prática entre os valores de proteção do ambiente e os valores inerentes à liberdade económica e propriedade privada - cfr. MARIA ADELAIDE T. de MENEZES C. LEITÃO, O planeamento administrativo e a tutela do ambiente, Revista da Ordem dos Advogados, 1, 1996, pp. 32 e 33.

  12. Ora, o que se pretende com a referida segunda dimensão, em especial ao nível da concordância prática, é que haja a prossecução de um desenvolvimento económico sustentável. De facto, nos termos do art.º 66º., nº 2 da CRP, incumbe ao Estado português, com o envolvimento e participação dos cidadãos, a defesa do ambiente “no quadro de um desenvolvimento sustentável”.

  13. De forma a desenvolver e concretizar os princípios e normas constitucionais, o legislador aprovou a Lei n.º 11/87, de 7 de abril, vulgarmente designada de Lei de Bases do Ambiente. Também na Lei de Bases do Ambiente se estabelece a concordância prática entre a conservação da natureza e a prossecução de políticas de crescimento económico. Nestes termos, veja-se o artº 3º, al. b) que refere, no âmbito do princípio do equilíbrio, que se devem criar “os meios adequados para assegurar a integração das políticas de crescimentos económico e social e de conservação da natureza, tendo como finalidade o desenvolvimento integrado, harmónico e sustentável”.

  14. Desta forma, verifica-se que um dos limites de toda uma política de ambiente, orientada pela Lei de Bases do Ambiente e assente na Constituição, é precisamente o desenvolvimento económico e social, na ótica da proteção do meio ambiente não poder ser assumida como um objetivo absoluto mas, pelo contrário, dever ser realizada através de um justo equilíbrio entre a referida proteção e a vida económica e social.

  15. In casu, a Recorrente foi condenada na infração prevista e punida nos termos do artº 20º, nº 5 do Decreto-Lei nº 64/2008, de 08 de abril.

  16. Estabelece o referido artº 20º, nº 5, que tem como epígrafe “Operadores de desmantelamento e de fragmentação”: “Os operadores de desmantelamento ficam obrigados a realizar as operações descritas no nº 2.2 do anexo iv imediatamente após a receção de VFV, em todo o caso nunca excedendo o prazo de 45 dias úteis.”

  17. A gestão de VFV compreende a reciclagem e reutilização de alguns componentes, designadamente, a “remoção de todos os componentes suscetíveis de reutilização como peças em segunda mão, quando técnica e economicamente viável; remoção dos catalisadores; remoção dos componentes metálicos que contenham cobre, alumínio e magnésio, se esses metais não forem separados no ato de fragmentação; remoção de pneus; remoção de grandes componentes de plástico (por exemplo, para-choques, painel de bordo, reservatórios de fluidos, etc.) se estes materiais não forem separados no ato de fragmentação; remoção dos vidros”, cfr. anexo IV, 2.2, do Decreto-Lei 64/2008.

  18. Ora, caso não sejam removidas as referidas peças, o objetivo de reutilização e valorização de componentes automóveis é totalmente gorado, o que acarreta como é óbvio reflexos nefastos no meio ambiente.

  19. Acontece que, o legislador estabeleceu o prazo de 45 dias após a entrada do veículo da unidade de gestão de VFV para que os operadores efetuem a remoção dos componentes respetivos para a reutilização, de acordo com o disposto no art.º 20º, nº 5 do Decreto-Lei n.º 64/2008.

  20. Em virtude deste prazo, verifica-se que o operador de gestão de resíduos tem precisamente 45 dias para: (1) encontrar compradores de determinados componentes reutilizáveis e (2) se encontrar comprador, dentro do mesmo prazo, deve remover os referidos componentes.

  21. In praxis, o respeito integral destes 45 dias leva a que seja inviável economicamente a reciclagem e reutilização de componentes automóveis.

  22. Ao não serem removidos determinados componentes reutilizáveis e valoráveis, por força da compressão imposta por aquele prazo e por nesse prazo não ser técnica e economicamente fazê-lo, há um evidente obstáculo ao princípio da reutilização e valorização, prejudicando pois o ambiente - paradoxalmente (des)protegido por este Decreto-Lei, pela Lei de Bases do Ambiente e pela Constituição da República.

  23. Veja-se a missiva junta aos autos na fase de julgamento, enviada pela VALORCAR (entidade de gestão de VFV) à Agência Portuguesa do Ambiente, em...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
2 temas prácticos
2 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT