Acórdão nº 188/03 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Abril de 2003

Magistrado ResponsávelCons. Helena Brito
Data da Resolução08 de Abril de 2003
EmissorTribunal Constitucional (Port

Proc. n.º 234/00 Acórdão nº 188/03

Plenário

Relatora: Maria Helena Brito

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I

O pedido e os seus fundamentos

  1. O Provedor de Justiça requereu, em Março de 2000, ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 2º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 103-A/90, de 22 de Março, "na parte em que reservam o seu âmbito de aplicação a quem seja portador de deficiência motora a nível dos membros superiores ou inferiores".

    Estas normas dispõem o seguinte:

    Artigo 2º

    1 - Para efeitos de aplicação do presente diploma, considera-se deficiente motor todo aquele que, por motivo de lesão, deformidade ou enfermidade, congénita ou adquirida, seja portador de deficiência motora, ao nível dos membros inferiores ou superiores, de carácter permanente, de grau igual ou superior a 60%, avaliada pela Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes no Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 43 189, de 23 de Setembro de 1960, desde que tal deficiência lhe dificulte, comprovadamente:

    1. A locomoção na via pública sem auxílio de outrem ou recurso a meios de compensação, designadamente próteses, ortóteses, cadeiras de rodas, muletas e bengalas, no caso de deficiência motora ao nível dos membros inferiores;

    2. O acesso ou utilização dos transportes públicos colectivos convencionais, no caso de deficiência motora ao nível dos membros superiores.

    2 - Para efeitos do presente diploma, considera-se multideficiente profundo todo o deficiente motor que, para além de se encontrar nas condições referidas no artigo 1º e no número antecedente, enferme, cumulativamente, de deficiência sensorial ou intelectual ou visual de carácter permanente de que resulte um grau de desvalorização superior a 90% e por tal facto esteja comprovadamente impedido de conduzir veículos automóveis.

  2. O Provedor de Justiça vem impugnar a constitucionalidade das normas constantes do artigo 2º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 103-A/90, "na parte em que reservam o seu âmbito de aplicação a quem seja portador de deficiência motora a nível dos membros superiores ou inferiores", por entender que as mesmas violam o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.

    2.1. Para o efeito, desenvolve uma argumentação que pode, no essencial, reconduzir-se ao seguinte:

    1. "No n.º 1 do artigo 2º define-se que são considerados deficientes motores, para efeitos do diploma em causa, aqueles que, por motivo de lesão, deformidade ou enfermidade, congénita ou adquirida, sejam portadores de deficiência motora, ao nível dos membros inferiores ou superiores, de carácter permanente, de grau igual ou superior a 60%, avaliada pela Tabela Nacional de Incapacidades".

      Mas, não se bastando a lei com esse enunciado, "as alíneas a) e b) do referido art.º 2º, n.º 1, disjuntivamente aplicáveis, esclarecem que os cidadãos nas condições do proémio do n.º 1 só são elegíveis caso a deficiência de que sejam portadores provoque os efeitos gravosos definidos nessas duas alíneas quanto à sua mobilidade e facilidades de locomoção".

      Assim, é "a própria lei que permite a conclusão de que o que se visa atenuar são os efeitos desfavoráveis da deficiência na deslocação e autonomia dos cidadãos deficientes e não simplesmente criar um privilégio para estes, imponha ou não a sua situação concreta esse tipo de apoio" (artigos 6º a 10º do requerimento inicial).

    2. Sendo certo que uma das bases do constitucionalismo é "a repulsa aos privilégios de índole fiscal", essa ideia liberal foi completada com outra, que aceita soluções que consagrem a igualdade real, "admitindo, no que aqui interessa, a exceptuação de situações diversas da incidência dos tributos, tão logo tal se mostre necessário, adequado e proporcionado à eliminação das desigualdades de base".

      No tocante à situação de pessoas portadoras de deficiência, a própria Constituição, de resto, prevê, no seu artigo 71º, n.º 2, um apoio específico, "que passa também pela via da isenção fiscal, a qual constitui de igual modo uma forma de apoio financeiro".

      "É manifesto que a concretização desses apoios está sujeita à reserva do possível". Uma vez, porém, que se decida concedê-los, "está o Estado vinculado a conformá-los de modo a não violar o princípio da igualdade, ou seja, a não estabelecer requisitos inclusivos ou exclusivos que não possuam relevo material bastante para que se possa considerar como constitucionalmente aceite uma diferenciação entre sujeitos". Mais precisamente: "o Estado pode considerar prioritário o apoio a certas categorias de deficiências face a outras, mas não é livre de categorizar os deficientes em função de elementos classificatórios constitucionalmente inábeis" (artigos 14º a 19º do requerimento inicial).

    3. "Aplicando esta [última] asserção ao caso sub judice, parece manifesto que a concessão da isenção fiscal na aquisição de veículos automóveis e demais facilidades atribuídas, escopo do Decreto-Lei n.º 103-A/90, é justificável materialmente pelos efeitos gravosos da deficiência e não pela sua etiologia": "o que releva para justificação desta isenção é a verificação de determinado grau de dificuldade na locomoção e mobilidade".

      "O próprio art.º 2º, n.º 1, não afasta este entendimento, ao exigir a verificação dos requisitos enunciados nas suas alíneas a) e b), em disjunção obviamente não exclusiva" (artigos 20º a 22º do requerimento inicial).

    4. Sendo assim, "se dois cidadãos manifestam a mesma penosidade e dificuldade real na sua mobilidade, não é critério constitucionalmente adequado atribuir a um a isenção fiscal por a sua lesão, deformidade ou enfermidade ser num determinado órgão e a outro não por o órgão directamente atingido ser outro".

      Ora - e a Ordem dos Médicos, no parecer emitido, a solicitação do requerente, pelo Conselho Nacional do Exercício Técnico da Medicina confirma-o - é "perfeitamente viável pensar-se na verificação de efeitos gravosos ao nível dos descritos nas alíneas a) e b) do artigo 2º, n.º 1, ora impugnado, por existência de outra deficiência que não as enunciadas no seu proémio" [isto é, deficiência motora, ao nível dos membros inferiores ou superiores].

      "Cria-se, assim, uma discriminação entre cidadãos portadores de deficiência que causam os mesmos efeitos que a isenção visa atenuar, sem qualquer título constitucional que a tal habilite a norma" - o que põe em causa "o princípio da igualdade, na sua vertente de igualdade perante a tributação e concomitantemente perante a concessão de uma eventual isenção, e na vertente mais geral de não discriminação negativa".

      "É assim inconstitucional o art. 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 103-A/90, na parte em que define como deficiente motor para efeitos do mesmo diploma apenas os cidadãos que sejam portadores de deficiência motora ao nível dos membros superiores ou inferiores [...], excluindo os demais que, obedecendo aos demais requisitos, padeçam dos mesmos efeitos enunciados nas alíneas a) ou b)" (artigos 23º a 28º do requerimento inicial).

    5. "O vício que afecta o proémio do artigo 2º, n.º 1, reflecte-se também no seu n.º 2, na parte em que considera como um dos elementos da qualificação como multideficiente a verificação dos pressupostos do n.º 1".

      Assim ( e sendo embora certo que, alterada a solução jurídica que se extrai do artigo 2º, n.º 1, por via da declaração parcial da sua inconstitucionalidade, modificado logo ficaria também o âmbito do n.º 2 - é desejável, para clarificação total da situação, que também este último, na parte correspondente, seja abrangido por aquela declaração (artigos 29º a 32º do requerimento inicial).

      2.2. O requerente juntou ao pedido dois documentos:

      ( o primeiro é a cópia de um ofício que dirigiu ao Bastonário da Ordem dos Médicos, solicitando que essa entidade se pronunciasse sobre a questão de saber se é possível a produção de efeitos idênticos aos descritos nas alíneas a) e b) do artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 103-A/90 ( isto é, a dificuldade de "locomoção na via pública sem auxílio de outrem ou recurso a meios de compensação" ou de "acesso ou utilização de transportes públicos, colectivos ou convencionais" ( em situações de deficiência que não as incluídas no capítulo I da Tabela Nacional de Incapacidades, respeitando unicamente ao aparelho locomotor, e, deste modo, apenas constantes de outros capítulos, como, por exemplo, os da neurologia (capítulo III) ou angiocardiologia (capítulo IV).

      ( o segundo é a cópia do ofício de resposta dirigido ao Provedor de Justiça pelo Bastonário da Ordem dos Médicos, ofício esse que transcreve o seguinte parecer, emitido pelo Conselho Nacional do Exercício Técnico da Medicina sobre a questão colocada:

      "Em relação ao pedido de parecer solicitado pela Provedoria de Justiça, este Conselho Nacional do Exercício Técnico da Medicina encara de forma afirmativa a produção de efeitos idênticos aos descritos nas alíneas a) e b) da norma transcrita, independentemente da causa de deficiência."

  3. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio oferecer o merecimento dos autos.

  4. Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, foi o processo distribuído à relatora para elaboração do acórdão.

    II

    Enquadramento das normas sub judicio

    1. Evolução histórica

  5. O Decreto-Lei n.º 103-A/90, de 22 de Março (com a rectificação, quanto ao teor do seu artigo 9º, publicada no Diário da República, I Série, n.º 149, Suplemento, de 30 de Junho de 1990), em que se inserem as normas em apreço, tem por objecto a concessão, aos deficientes motores, civis ou das Forças Armadas, da isenção de imposto automóvel na aquisição de veículos automóveis ligeiros para seu uso...

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