Acórdão nº 995/14.7T8BRG-J.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 02-03-2023

Data de Julgamento02 Março 2023
Número Acordão995/14.7T8BRG-J.G1
Ano2023
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Em 7 de dezembro de 2022 foi prolatado o seguinte despacho, objeto do presente recurso:

Veio o falido AA requerer que fosse determinada a cessação dos descontos/apreensões sobre os rendimentos por si auferidos, para o que aduziu que está previsto, nos arts. 235.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o regime da exoneração do passivo restante, regime este que permite um “fresh star” aos devedores, e do qual nunca pôde beneficiar dada a aplicação do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), estando objetivamente a ser discriminado em relação a todos os que beneficiaram de tal instituto, pelo que entende que a aplicação do CPEREF é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Cumpre decidir.

Olhado o requerimento em apreciação, verifica-se que o falido pretenderia que fosse determinado o fim dos descontos nos seus rendimentos por aplicação do regime que resulta da exoneração do passivo restante.
Ora, do art. 12.º, n.º 1, Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, resulta afirmado que o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência continua a aplicar-se aos processos de recuperação da empresa e de falência pendentes à data de entrada em vigor do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelo que inexistam dúvidas de que, no caso, estando-se perante um processo de falência iniciado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 53/2004, não são aplicáveis as normas do CIRE, concretamente a exoneração do passivo restante, prevista nos arts. 235.º e ss..
É certo que a continuação da aplicação do regime do CPEREF acarreta para o falido um regime patrimonial menos favorável do que aquele que eventualmente lhe resultaria da aplicação do CIRE, onde se prevê a possibilidade de, mediante a verificação de certos pressupostos, ao devedor poder ser concedida a exoneração do passivo restante.

Mas será que pode afirmar-se, em face de tal, a inconstitucionalidade material pretendida pelo falido, por violação do art. 13.º da CRP?

Cremos que não.

Segundo o art. 13.º da CRP:
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Constitui entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça distinções, mas apenas diferenciações de tratamento (e sua medida) sem justificação racional e bastante.
Diz-se a este propósito no Acórdão do TC n.º 362/2016:
“Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo
13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias.
Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88: «A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Por outro lado, não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011:
«[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavlmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”.
Feito este introito, há que concluir que, no caso, a opção do legislador de continuação da aplicação do regime legal do CPEREF aos processos de falência pendentes, como é o caso do presente processo, com a consequente diferenciação do tratamento a prestar aos falidos em relação aos devedores da insolvência, não se apresenta como arbitrária, estando aliás perfeitamente justificada com a circunstância de o regime dos referidos diplomas legais ser bastante díspar entre si, tendo-se procurado respeitar a harmonia processual e as diferentes finalidades e estrutura dos processos, a que presidem filosofias autónomas e distintas, bem como respeitar as decisões já proferidas nos processos de falência e os efeitos jurídicos delas decorrentes, anotando-se que, no caso, foi já proferida nos autos, antes da entrada em vigor do Processo: 995/14.7T8BRG CIRE, decisão transitada em julgado que tomou posição a respeito dos descontos no vencimento do...

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