Acórdão nº 83940/18.3YIPRT.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2024-01-09

Data de Julgamento09 Janeiro 2024
Ano2024
Número Acordão83940/18.3YIPRT.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA)
Relator: Sílvia Pires
Adjuntos: Fernando Marques da Silva
Henrique Antunes


Autora: A... S.A.

Ré: B... S.A.

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Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora requereu, usando o procedimento de injunção, a notificação da Ré para pagar-lhe a quantia de € 256.603,11 de capital, € 11.910,10 de juros, € 153,00 de taxa de justiça inicial e € 50,00 ao abrigo do disposto no art.º 7º do Decreto-Lei nº 62/2013 de 10 de maio e os juros de mora vincendos até efetivo pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, ter fornecido bens e prestado serviços à Ré, tendo emitido as faturas respetivas, correspondentes ao período entre julho de 2017 a outubro de 2017, e notas de crédito no valor de € 1.610,00 € 196,31, € 729, 05 e € 215,25, permanecendo em dívida o valor de € 256.603,11 acrescido dos juros de mora vencidos, e vincendos, que a Ré, apesar de interpelada não pagou.

A Ré contestou, invocando a nulidade dos contratos de prestação de serviços celebrados entre as partes, atento o disposto no art.º 397º, n.º 2, do CSC já que o detentor e beneficiário da Autora, sendo o seu administrador de facto, era AA o qual também era o administrador da Ré, no período em que foram celebrados os invocados contratos de fornecimento de bens e prestação de serviços, não tendo em momento algum sido autorizados pelo Conselho de Administração da Ré nem tendo obtido parecer favorável do conselho fiscal.
Impugnou ainda os factos alegados na petição inicial e deduziu pedido reconvencional, pedindo que a ação fosse julgada improcedente, ou caso fosse julgada procedente a compensação com o crédito que alegou deter sobre a Autora.

A Autora apresentou réplica, alegando que sendo a sua administradora casada com AA existiam relações comerciais entre ambas as sociedades, atendendo à complementaridade das respetivas produções e ao facto de operarem no mesmo mercado., sendo certo que AA nunca foi seu administrador, quer de facto ou de direito, e que é detida pela A... Group S.A. a qual nunca foi detida pelo referido AA.
Conclui pela validade do contrato, pela improcedência da reconvenção e pela procedência da ação.

Em 06 de Março de 2019 a Ré apresentou articulado, pedindo a redução do pedido reconvencional e juntando documentos.

A Autora respondeu, apresentando novo articulado no qual pediu a condenação da Ré como litigante de má-fé.

No despacho saneador, foi proferida decisão que absolveu a Autora do pedido reconvencional.

Veio a ser proferida sentença que julgou a ação pela seguinte forma:
Julgo totalmente procedente a presente acção e consequentemente:
i- condeno a R. B... S.A. a pagar à A. A... S.A. a quantia de € 268.553,21 (duzentos e sessenta e oito mil quinhentos e cinquenta e três euros e vinte e um cêntimos), acrescido dos juros de mora à taxa de juros comerciais, a contar de 19 de Julho de 2018 e até efectivo pagamento, sobre o capital de € 256.603,11 (duzentos e cinquenta e seis mil seiscentos e três euros e onze cêntimos)

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A Ré interpôs recurso de apelação desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da Sentença Recorrida, nos termos da qual se julgou totalmente procedente o pedido da Recorrida, condenando-se a Recorrente a pagar-lhe a quantia de € 268.553,21, acrescido de juros de mora à taxa de juros comerciais, a contar de 19 de julho de 2018 e até efetivo pagamento, sobre o capital de € 256.603,11.
B. Todavia, atenta a matéria de facto considerada provada na Sentença Recorrida, encontram- se reunidos todos os pressupostos de aplicação da previsão do art.º 397.º, n.º 2 do CSC, impondo-se a declaração de nulidade dos contratos de onde emergem os créditos de que a Recorrida se arroga titular no caso sub judice e, consequentemente, a improcedência do pedido da Recorrida e a absolvição da Recorrente do pedido.
C. Resulta da matéria dada como provada que, à data da celebração e execução dos Contratos Controvertidos, AA era: (i) administrador de direito da Recorrente e das demais sociedades do Grupo C...; e, ao mesmo tempo, (ii) dono e beneficiário efetivo e administrador de facto da Recorrida.
D. Impunha-se, por isso, a conclusão de que os Contratos Controvertidos se encontram feridos de nulidade, ao abrigo do disposto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC, por terem sido materialmente celebrados entre a Recorrente e AA, que era, à data, dono e beneficiário efetivo da Recorrida,
E. Sem que para tanto tivesse sido obtido o consentimento do Conselho de Administração da Recorrente ou um parecer favorável do seu Conselho Fiscal.
F. É, assim, manifesto que a Sentença Recorrida incorreu num erro na qualificação jurídica dos factos, em prejuízo da Recorrente, porquanto a conclusão de que os Contratos Controvertidos são nulos é uma dedução lógica dos factos considerados como provados.
DA MATÉRIA DE FACTO CONSIDERADA PROVADA
G. Dos factos considerados provados n.ºs 8 e 9 da Sentença Recorrida, resulta a conclusão de que AA era dono e beneficiário efetivo da Recorrida, na medida em que: (i) a Recorrida era detida pela A... Group; (ii) a A... Group era detida pelo D... (em concreto, 95% do capital social da A... Group); (iii) de que, por sua vez, AA e BB eram os primeiros beneficiários.
H. Se dúvidas existissem em torno dos factos considerados provados n.ºs 8 e 9 da Sentença Recorrida, as mesmas ficam dissipadas com a fundamentação apresentada na Sentença Recorrida para se ter considerado que os mesmos se encontravam cabalmente demonstrados nos presentes autos, da qual resulta que AA tem «interesse direto nos destinos daquela sociedade».
I. Pelo que, da matéria de facto considerada como provada – e da sua fundamentação – resulta a evidente conclusão de que AA é dono e beneficiário efetivo da Recorrida através do D....
J. Esta conclusão não é, modo algum, prejudicada pela natureza do D..., pois, tratando-se aquele de um trust (i.e., um veículo-fiduciário), o mesmo (i) é constituído no exclusivo interesse dos seus beneficiários, (ii) sendo estes os titulares de direitos sobre os bens que o integram.
K. Isto mesmo tem vindo a ser afirmado, de forma pacífica, pela nossa doutrina e pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que se têm pronunciado sobre a natureza e regime dos denominados trusts – vide compilação de doutrina e jurisprudência referida supra no ponto 20.
L. Por conseguinte, dúvidas não podem existir de que, atendendo à natureza jurídica do D... e à qualidade de beneficiário do mesmo de AA, é por demais evidente que AA tem um interesse direto nos resultados da atividade da Recorrida, sendo AA beneficiário efetivo da Recorrida.
M. Mas resulta também dos factos considerados provados que AA era administrador de facto da Recorrida, nomeadamente «dando ordens em nome desta mormente ao que se refere à parte operacional de tal entidade» (cfr. facto considerado provado n.º 11 da Sentença Recorrida), ao mesmo tempo que era administrador de direito da Recorrente (cfr. facto considerado provado n.º 13 da Sentença Recorrida).
N. Apesar desta factualidade, a Sentença Recorrida – por manifesto lapso no enquadramento jurídico dos factos – considerou não ser possível concluir pela nulidade dos fornecimentos aqui em discussão, porquanto, na sua ótica, não existiu um benefício direto ou mesmo indireto de AA, tal como é, no entendimento que ficou consignado na Sentença Recorrida, exigido pelo art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
DA APLICAÇÃO AO CASO SUB JUDICE DO DISPOSTO NO ART.º 397.º, N.º 2 DO CSC
O. Entende a Recorrente que a Sentença Recorrida incorreu numa incorreta qualificação jurídica da factualidade considerada como provada, desconsiderando aquela que é a ratio legis e o âmbito de aplicação do n.º 2 do art.º 397º do CSC – a tutela da sociedade e dos seus stakeholders perante potenciais situações de conflito de interesses.
P. A atuação de AA representa um evidente conflito de interesses: atua enquanto representante dos interesses da Recorrente numa situação em que o seu interesse pessoal se encontra alinhado com os interesses da contraparte dos Contratos Controvertidos – a Recorrida, da qual AA era dono e beneficiário efetivo.
Q. Relativamente a estas situações, o legislador, consciente do sério risco de violação dos deveres de lealdade do administrador perante a sociedade (art.º 64.º, n.º 1, al. b) do CSC) resultantes da situação de conflito de interesses em que se encontra, atribui primazia aos interesses da sociedade e dos seus stakeholders através da tutela antecipatória prevista no art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
R. Com efeito, os negócios jurídicos celebrados neste quadro de conflito de interesses só serão válidos perante a validação dos mesmos pelo conselho de administração (com impedimento de voto do administrador em conflito de interesses) e pelo órgão de fiscalização da sociedade, com isto se visando limitar, ao máximo, a atuação em conflito de interesses, em prejuízo da sociedade administrada.
S. Resulta dos factos não provados que: (i) não houve qualquer autorização prévia por parte do Conselho de Administração da Recorrente; (ii) nem houve qualquer parecer favorável do Conselho Fiscal da Recorrente.
T. Mais: não foi sequer alegado ou provado que alguma vez AA tivesse comunicado ao Conselho de Administração e ao Conselho Fiscal da Recorrente que era dono e beneficiário efetivo da Recorrida – pelo contrário, ficou cabalmente demonstrado nos presentes autos que AA atuou em conflito de interesses de forma oculta.
U. Pois bem, é de concluir que Sentença Recorrida terá desconsiderado o facto de o núcleo essencial do art.º 397.º, n.º 2 do CSC apenas exigir que o administrador seja também, direta ou indiretamente, a contraparte do negócio por si celebrado, i.e., ser, de algum modo, beneficiário ou destinatário das vantagens auferidas pela Recorrida resultantes dos Contratos Controvertidos.
V. Não valorando o facto de AA ser
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